Por Sérgio Tauhata e Talita Moreira — De São Paulo
22/11/2023 05h03 · Atualizado há 4 horas
Os países emergentes têm de se preparar para o risco de um eventual choque derivado do crescimento do déficit fiscal nos Estados Unidos, alerta o diretor do departamento do Hemisfério Ocidental do Fundo Monetário Internacional (FMI), Rodrigo Valdés, em entrevista ao Valor. “Existe risco de que déficits mais elevados [nos EUA] acabem por pressionar as taxas de juros”, diz.
Segundo o diretor do FMI, “os países deste lado do mundo têm de estar mais bem preparados para o risco de as taxas de juro subirem ainda mais [nos EUA]”. O dirigente ressalta ainda que o governo americano também precisa fazer sua parte para evitar a ocorrência de um eventual choque de liquidez global, diante da necessidade crescente de financiamento da dívida e do próprio aumento de custo devido aos juros mais elevados por mais tempo. “Os Estados Unidos têm sua parte a cumprir, têm de olhar para as obrigações e para a dinâmica [fiscal] de longo prazo.” Leia os principais trechos da entrevista.
Valor: Estamos vendo uma discussão nos EUA sobre risco fiscal. Como vê esse debate, que pressiona as taxas dos Treasuries?
Rodrigo Valdés: Há uma preocupação crescente com a dinâmica geral [dos juros longos americanos], em muitos países, porque isso irá exercer pressão sobre os mercados. Na verdade, nos últimos meses, desde o último evento do teto de endividamento nos EUA, o Tesouro americano teve de emitir muito [títulos de dívidas devido ao represamento das colocações]. Portanto, parte do aumento da taxa de juros foi apenas pontual devido a essas emissões incomuns. Mas isso mostra que o mercado não consegue absorver quaisquer números. É uma questão a ser analisada. Mais uma vez, não são apenas os EUA; nós, em certa medida, estamos deixando para trás o tempo do excesso de poupança. Estamos avançando para outra era onde há mais pressão para não gastar, [há questões como] defesa, clima, [desigualdade] social. E isso produz tensões no nível da taxa de juro que irá equilibrar o mercado.
Valor: Quais são as consequências dessas mudanças para os mercados emergentes?
Valdés: É sempre mais complicado ter taxas de juros altíssimas na economia mundial. E para os mercados emergentes, não é diferente. É mais custoso emitir, o câmbio em alguns momentos fica pressionado. O crescimento [econômico] pode, por vezes, ser afetado. É uma realidade que temos de enfrentar e tomar as medidas para conviver com isso. Isso significa ter um pouco mais de cuidado com o fiscal e estar atento à rapidez com que [o Banco Central] pode cortar taxas de juros. O elemento positivo é que a América Latina aprendeu muito nos últimos 20 ou 30 anos. Essa combinação de metas de inflação, regime cambial flutuante, bancos centrais com algum grau de independência, fiscal com regras está produzindo resultados muito bons. Passamos por choques enormes e não estivemos no centro dos problemas.
Valor: O que os emergentes podem fazer para reduzir os efeitos de eventuais choques, como o de taxa elevada por mais tempo?
Valdés: Choques acontecerão de qualquer forma. O ponto crítico é como as macropolíticas, tanto as que mencionei como também as regulamentações financeiras, são implementadas de modo a conter o choque, ou pelo menos não exacerbar os efeitos do choque. No passado, recebíamos choques e as políticas eram tais que os efeitos foram piores do que o choque em si. Hoje, um número crescente de países é capaz de gerir esses choques. Não de fazer com que desapareçam, mas ter efeitos menores.
Valor: O Federal Reserve (BC americano) tem sinalizado um cenário de taxas altas por mais tempo. O senhor acredita que os BCs da América Latina terão de desacelerar o ritmo de redução das taxas?
Valdés: É mais um elemento a considerar no ritmo [de corte de juros]. Mas há outros, como preços críticos – do petróleo e dos alimentos, que estão em movimento – e as próprias questões internas. É claro que as taxas de juro são importantes porque, ao produzir efeito cambial, trazem algum arrefecimento à economia global. Mas é algo que temos de tratar dentro do quadro existente. O bom é que temos uma maneira de processar e discutir isso. Talvez possamos estar errados sobre o custo do ajuste fino dos juros. Mas a definição do rumo a seguir é mais ou menos óbvia para os banqueiros centrais, o mercado e para todos.
Valor: O BC brasileiro tem alertado sobre eventual enxugamento da liquidez devido ao crescimento dos gastos nos EUA e do custo de financiamento da dívida americana. Existe risco de redução de liquidez?
Valdés: Existe o risco de que déficits mais elevados [nos EUA] acabem por pressionar as taxas de juros. Até certo ponto, as agências de rating têm sinalizado isso. E alguns formuladores de políticas, como o presidente do BC brasileiro, sinalizaram isso. É um risco para o qual temos de estar preparados. Os EUA têm sua parte a cumprir, têm de olhar as obrigações e a dinâmica [fiscal] de longo prazo. E também os países deste lado do mundo têm de estar mais bem preparados para o risco de as taxas de juro subirem ainda mais.
Valor: Para os emergentes, esse seria mais um desafio pela frente?
Valdés: Nos acostumamos com níveis muito baixos de taxas de juros. E há cada vez mais evidências de que esse cenário talvez não seja real na próxima década. Mas passamos por tempos mais difíceis no passado e agora temos uma estrutura melhor. Isso não significa que sejam boas notícias. Em última análise, são condições que tornam um pouco mais difícil a forma como gerimos a macroeconomia.
Valor: Economistas têm mencionado forças que podem reduzir o processo desinflacionário, como “nearshoring”, transição verde e geopolítica. Vamos viver em um mundo com inflação mais alta?
Valdés: Vou separar a resposta em duas partes. Uma é que esses desenvolvimentos muito provavelmente produzem choques de preços que aumentam a inflação, pelo menos, durante algum tempo. A globalização que tivemos até 2010, com aumento da participação da China na economia mundial, gerou efeitos desinflacionários em alguns lugares. Então, é um choque que a gente tem de levar em conta. A segunda parte é que temos também de considerar a inflação, no fim das contas, como um fenômeno monetário. É mais difícil geri-la com alguns choques, mas inflação de longo prazo é algo que os BCs podem se comprometer [a controlar], se fizerem o que têm de fazer. A transição será mais difícil, mas não devemos perder a fé de que podemos controlar a inflação.
Valor: Dentro da ideia de “nearshoring” e “friendlyshoring”, o Brasil e outros emergentes podem aproveitar oportunidades?
Valdés: Isso é, por enquanto, uma grande oportunidade, mas não se concretizou em quantidades que ficam supervisíveis nos dados. As questões básicas têm a ver com a eficiência de infraestrutura e do Estado de direito. Na América Central, há países muito interessantes [além do México], como Costa Rica. Indo para a América do Sul, é mais complexo por dois motivos. Um é que não participamos tão fortemente dessas mudanças de produção. Primeiro, temos que entrar nisso. Segundo, poucos países têm acordos comerciais que facilitem isso [a entrada na cadeia de valores global]. Mas poderia ser feito. Ainda assim, o nearshoring, a fragmentação, não é boa notícia para a economia mundial. Antes [com produção globalizada] havia mais eficiência. Mas temos uma nova realidade, precisamos nos adaptar e tentar nos aproximar dos centros de consumo.
Valor: Quais lições os países, em particular o Brasil, têm de fazer para aproveitar as oportunidades?
Valdés: Em todos os países de toda a região [América do Sul] tem infraestruturas que precisam ser melhoradas. Em muitos países – eu não colocaria o Brasil nessa lista – há [problemas com] o Estado de direito, ou seja, como fazer com que os contratos sejam válidos. Outra é a previsibilidade, não mudar as regras. Cada vez que fazemos investimento mudamos algo [na AL]. Em muitos países, precisamos de mais estabilidade para que o nearshoring se materialize. E também as oportunidades relacionadas aos minerais verdes. Por exemplo, alguns países têm lítio, outros têm minérios críticos para veículos elétricos. Há muitas possibilidades. Mas, para que se tornem realidade, precisamos dar um empurrão extra [na melhoria de infraestrutura e segurança jurídica].
Valor: Sobre as mudanças climáticas, quais os riscos para a região?
Valdés: Esse eventos são riscos de muito curto prazo. Tem eventos climáticos, furacões, destruição massiva em alguns lugares. É um problema já no Caribe e na América Central. Acabamos de ver no México uma enorme destruição, vários bilhões de dólares de destruição [com a passagem do furacão Otis]. Na América do Sul, vemos um problema mais gradual. Em alguns países, vimos, por exemplo, movimento de desertificação. Áreas que eram boas para produção de frutas estão se tornando piores por causa de condições muito secas. Portanto, há mudanças nos padrões climáticos que produzem estresse, mas isso é gradual para determinados setores. O mesmo acontece com a pesca. Esses não são movimentos que acontecem como um acidente, em um ponto, mas são desenvolvimentos graduais que estão ocorrendo hoje. Não sou um especialista, mas entendo que as correntes marítimas também podem estar mudando. E isso seria uma virada de jogo para o clima em diversas áreas. E também menos áreas serão habitáveis até certo ponto.
Valor: Qual o impacto dessas mudanças na economia?
Valdés: Em termos de políticas macroeconômicas, isso significa que precisamos de mais espaço fiscal para podermos enfrentar esses desafios. E também é preciso trabalhar para ter emissões mais baixas no final. Isso pode ser feito. É superdifícil, porque temos de juntar muitos países e fazer o que tem de ser feito. É claro que isso requer muito esforço. O preço do carbono é algo que tem de ser discutido.
Valor: Esses fatores estão se tornando mais importantes para a análise e as previsões econômicas?
Valdés: Absolutamente. Um dos aspectos da questão climática é econômico. Há outros muito dramáticos, como deslocamentos [humanos], mas economia é de primeira ordem. Algumas coisas são macrocríticas. Este é o nome que usamos para definir certos fenômenos, por exemplo, dizemos que crime é macrocrítico na América Latina. Para a economia mundial, dizemos que as alterações climáticas são macrocríticas. A diretora-gerente do FMI, Kristalina Georgieva, entende muito desse assunto e colocou-o na agenda como prioridade. Na verdade, temos uma nova linha de crédito no fundo chamada “facilidade de resiliência constante e sustentabilidade”. E há dinheiro dos países desenvolvidos para subsidiar crédito de longo prazo a países que não são grandes, nem ricos, mas que precisam investir no clima.
Valor: O presidente Lula colocou em dúvida recentemente a meta de déficit primário zero em 2024. Existe preocupação do FMI com a questão fiscal no Brasil?
Valdés: Quando olhamos para os países da região em geral, todos têm o mesmo desafio de como montar quadros fiscais capazes de reduzir a dívida em relação ao PIB. Não estamos tão interessados no ano seguinte, o que mais importa é ter um quadro que seja crível. Isso, em última análise, é o que produz a queda na relação entre dívida e PIB. Para o Brasil, era muito importante ter esses ‘frameworks’ funcionando para que as pessoas tivessem certeza de que isso é uma tendência para a meta.
Valor: Quais são os principais riscos para a América Latina?
Valdés: Claramente, a economia mundial tem alguns pontos preocupantes: a desaceleração de parceiros comerciais, como a China, os mercados financeiros, o nível das taxas de juros, o que acontece com a inflação. Claramente, estamos vivendo um processo de taxas de juros altas, mas a inflação está caindo. Seria uma notícia muito ruim se a inflação voltasse a subir. Olhando mais a médio prazo, é evidente que temos um problema na região em termos de alterações climáticas e de como nos adaptarmos a elas. E isso é um grande desafio. E também mencionaria, como questão crítica, que a nossa região cresce muito pouco, em média, em todos os lugares. A 2% ou 2,5% [de crescimento anual], nunca vamos convergir para o nível dos países mais ricos. Precisamos aumentar os esforços para realizar reformas que produzam crescimento e PIB mais elevados. Como, por exemplo, a que está em discussão no Brasil sobre o IVA [tributária]. Necessitamos de muitas reformas desse tipo. [Aumentar o] Comércio e outros aspectos também podem trazer mais atividade.
Fonte: Valor Econômico

