Em 2001, Thomas Buberl escreveu uma tese de doutorado sobre bônus corporativos, demonstrando minuciosamente uma característica dos mercados globais que todo bom gestor de fundos conhece bem: a dívida pública sempre leva a melhor.
Independentemente do cenário econômico, os investidores sempre atribuem mais valor às dívidas soberanas do que a títulos emitidos por empresas, e por uma boa razão. Em uma situação difícil, um governo pode (quase) sempre honrar suas dívidas, seja aumentando impostos ou mesmo imprimindo dinheiro novo. Já as empresas não contam com essa sorte, e, como resultado, pagam mais para captar recursos junto a investidores.
Buberl é hoje o executivo-chefe da Axa, a gigante francesa dos seguros, cujos bônus fizeram algo extraordinário este mês: superaram os títulos do próprio governo francês. A política da França voltou a mergulhar no caos e os títulos públicos do país vêm sofrendo, com os rendimentos – e, portanto, os custos de financiamento – disparando. Os bônus emitidos pela Axa, enquanto isso, continuam em alta demanda, fazendo da seguradora uma das várias empresas francesas cujos rendimentos caíram abaixo dos rendimentos dos títulos do governo na metade de setembro.
Esses casos são raros e expõem de forma dura o aperto em que o Estado francês se encontra. Os rendimentos do país já ultrapassaram os da Itália – teoricamente o “enfant terrible” da zona do euro – e até os da Grécia, cuja crise da dívida quase a expulsou da moeda comum europeia uma década atrás.
Isso é um alerta para os investidores: quando as coisas apertam, fica cada vez mais difícil encontrar um porto seguro. As velhas certezas estão ruindo, enquanto a hierarquia europeia se embaralha e o presidente Donald Trump mina as instituições que sustentam a grandeza financeira dos Estados Unidos.
“Hoje não existe mais porto seguro, porque uma crise pode estourar em qualquer lugar”, disse-me Buberl. A Axa sente isso de perto, já que é uma grande investidora que precisa honrar os passivos de seguros. “Achávamos que os títulos do Tesouro americano eram um porto seguro, mas vimos que a volatilidade tem sido bastante alta e a liquidez, um problema. O único porto seguro é a diversificação – essa é a melhor proteção”, disse ele.
A lista de refúgios é bem curta e nem sempre faz muito sentido. No topo estão ativos de grande liquidez e fáceis de negociar, como o ouro, o dólar e os títulos do Tesouro americano, além do franco suíço, os bônus do governo alemão e o iene japonês. Todo investidor sabe que eles tendem a disparar em momentos de turbulência, por força da convenção, da história e da memória muscular – tudo já incorporado nos algoritmos de negociação, de modo que a reação parece quase automática.
Dívida corporativa, especialmente nos EUA, tem hoje o menor prêmio de risco em relação aos Treasuries em várias décadas
Mas os solavancos recentes do mercado puseram isso à prova. Quando a pandemia de covid-19 surgiu, em 2020, o que realmente assustou os investidores não foi a queda abrupta das ações, mas sim a queda dos títulos do Tesouro americano. Mais recentemente, em abril deste ano, quando Trump anunciou suas tarifas, os Treasuries perderam valor – e o dólar também – mesmo com o colapso das ações. Como apontou o Banco de Compensações Internacionais (BIS) em sua última revisão trimestral, a relação histórica do dólar com os níveis de risco percebido nos mercados financeiros parece estar se desfazendo.
Mais cedo este ano, a Alemanha embarcou em um programa de gastos maciços, corroendo o valor de escassez de seus títulos públicos – do qual depende em parte a sua condição de porto seguro – e empurrando seus preços para baixo. Enquanto isso, a Suíça virou alvo de algumas das tarifas comerciais mais duras impostas por Trump. A interseção entre os títulos corporativos e soberanos da França é a cereja do bolo.
Analistas do BNP Paribas apontaram em uma apresentação recente que, nos mercados globais, os rendimentos dos títulos de governos supostamente seguros – Estados Unidos, Alemanha e França em particular – estão subindo, enquanto tomadores soberanos há muito considerados mais arriscados, como Itália e Espanha, estão corrigindo sua saúde fiscal e sendo recompensados pelos investidores. As percepções de segurança estão convergindo.
As altas taxas de juros referenciais significam que as empresas estão mais disciplinadas em seus esforços para manter os investidores satisfeitos, e menos inclinadas a tomar empréstimos por impulso, reforçando a segurança dos títulos corporativos. Atualmente, a dívida corporativa – especialmente nos Estados Unidos – está sendo negociada com o menor prêmio de risco em relação aos Treasuries em várias décadas. A volatilidade que observamos provavelmente se origina mais da dívida pública subjacente do que de choques específicos de empresas.
Ainda não chegamos ao ponto em que a previsível dívida corporativa francesa ou os tradicionalmente mais sólidos títulos do governo italiano sejam considerados globalmente como ativos de refúgio. Mas os sinais de falha nos procedimentos-padrão de segurança nos mercados refletem que tudo que os investidores consideravam seguro está agora em xeque. Na próxima grande crise – e haverá uma – é bem possível que todas as apostas estejam abertas.
Fonte: Valor Econômico

