Por Liane Thedim — Do Rio
26/07/2023 05h02 Atualizado há 4 horas
Um país em guerra, outro em desaceleração econômica e disputa comercial com os Estados Unidos, o terceiro em luta contra a inflação e os juros altos, o quarto, um gigante em ascensão e o quinto sem relevância na economia global. Um bloco heterogêneo, que ganhou peso na primeira cúpula de chefes de Estado em 2009, mas que hoje carrega um conceito ultrapassado, sem contornos geopolíticos ou agenda para além da ideia de cinco países com potencial de investimentos. Mais de uma década e uma pandemia depois, o Brics – que reúne Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul – busca retomar alguma relevância no novo desenho mundial, sob a sombra de mercados tão ou mais sedutores e que não carregam a carga política do grupo.
“São os novos mercados emergentes, representados sobretudo pelo Sudeste Asiático, como Malásia e Vietnã, com forte expansão econômica e grande atratividade, por terem estabilidade política”, diz Yi Shin Tang, professor do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo (IRI-USP). Na América Latina, nesse contexto entram, por exemplo, México, principal beneficiado pela proximidade geográfica e política dos EUA, Chile e Colômbia, com alinhamento claro às políticas da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE), além, é claro, do Brasil.
Esses países têm adotado papel contracíclico às nações desenvolvidas, em pleno aperto monetário que pode levar à recessão. Os Estados Unidos fizeram dez elevações seguidas nos juros, que estão no maior nível desde 2006. O BC do país fala em mais duas altas e já há temores em relação aos efeitos sobre a atividade econômica. Na União Europeia, Inglaterra e no Japão também ainda não há previsão para a inflação voltar à meta e encerrar a sequência de aumentos nas taxas básicas. Nesse contexto, o dinheiro busca novos destinos.
Em seu mais recente relatório, o Instituto de Finanças Internacionais (IIF) informa que seu monitoramento mostra um fluxo de alta frequência “muito forte para mercados emergentes não chineses”, o que a entidade atribui à perspectiva benigna de inflação nos países desenvolvidos, associada às “tensões EUA-China” e à invasão da Ucrânia. “Essa mudança pode ser especialmente positiva para a América Latina, onde os investidores globais agora estão mais dispostos a ignorar outras questões”, que o texto chama de “pontos problemáticos idiossincráticos” da região. “Com as cadeias de suprimentos globais sendo levadas para longe da China, projetamos que o investimento estrangeiro direto líquido em 2023 cairá ao nível mais baixo em 18 anos no país”, conclui o relatório. Outro relatório, este da agência de classificação de risco Fitch, prevê aumento significativo no fluxo para emergentes em 2024, excluindo China, à medida que o BC americano comece a cortar os juros e a diferença entre os crescimentos de países em desenvolvimento e ricos aumente.
“Dos cinco países do Brics hoje, a China não é mais vista só como mercado atraente, mas como uma ameaça. Rússia está fora do jogo, o Brasil acaba de sair da condição de pária internacional e a África do Sul só entrou por pressão chinesa”, diz Tang, da USP. “A economia indiana é a quinta do mundo, continua crescendo a taxas elevadas, próximas a 13%. Mas há cultura fechada e forte protecionismo”, completa Mauro Rochlin, coordenador do MBA de Gestão Estratégica e Econômica de Negócios da Fundação Getulio Vargas.
O mundo também tenta redescobrir a importância desse Brics que tenta se “ressignificar”. China e Rússia veem essa retomada do foco no bloco por parte do governo Lula, após anos deixado de lado, como oportunidade de narrativa política de um clube que se contrapõe ao mundo ocidental. Brasil e Índia, por sua vez, preferem a neutralidade, numa união de ocasião apenas para ganhar peso nas negociações comerciais. Quem vai ganhar a disputa? Sem acordo no encontro em julho, o grupo adiou para agosto a decisão sobre adesão de 13 países: Arábia Saudita, Irã, Indonésia, Argentina, Bangladesh, Cazaquistão, Comores, Cuba, Egito, Emirados Árabes Unidos, Gabão, Guiné-Bissau e Congo.
“Os Brics buscam redefinir seu papel diante de novos desafios na área de cibersegurança, gestão de dados, tecnologia e comunicação, num mundo ainda de ressaca de uma pandemia, sofrendo com uma guerra no coração da Europa e tentando lidar com problemas domésticos como o avanço da inflação”, diz Gustavo Macedo, professor de Relações Internacionais no Ibmec SP. “Na pandemia ficou cada um por si e agora abriu-se uma janela de oportunidade para buscar alternativas que estavam na geladeira. O Brics volta a aparecer na medida em que a guerra da Ucrânia reforça o racha entre Oriente e Ocidente”, acrescenta.
A questão, afirma, é saber quais países vão continuar aderindo à China, resistindo à estratégia ocidental de tentar diminuir a força do país. O governo brasileiro não vai abrir mão do parceiro asiático, mas há países cedendo às pressões. México, que vem crescendo brutalmente diante do acirramento da rivalidade entre EUA e China, por exemplo, não pediu para entrar; Colômbia e Chile também não. Para se ter uma ideia, os investimentos estrangeiros diretos (IED) no México cresceram 48% no primeiro trimestre frente ao mesmo período do ano passado.
“O México hoje é visto como destino importante de capitais produtivos, num movimento de afastamento da China. E também o Brasil pode ter o papel repensado nessa ótica”, diz Rochlin, da FGV. É o chamado “nearshoring”, movimento em que as empresas estão trazendo de volta sua produção para perto de seu país de origem, ou, mais claro ainda, o “friendshoring”, ou seja, buscando se instalar em países alinhados culturalmente.
Para Luiz Fabiano Gomes Godoi, sócio e diretor de Investimentos da Kairós Capital, o bloco dos não alinhados automaticamente a um dos dois lados pode se aproveitar dessa reorganização das cadeias de produção. “E o que vai determinar isso? Como cada país está lidando com questões internas. Mas não podemos abrir mão do nosso parceiro comercial que é a China, que compra o grosso das nossas commodities.” No ano até junho, o Brasil vendeu US$ 50 bilhões ao país asiático, aumento 5,8%. Já os EUA compraram US$ 17,2 bilhões do Brasil, valor 2% menor que o mesmo período do ano passado.
Nesse jogo de forças, o Brasil pode se beneficiar por ser uma espécie de nível intermediário. “O país não faz parte da OCDE mas tem feito esforços recentes para ganhar esse selo de qualidade, sobretudo no governo Bolsonaro, e deu sinais de estabilidade econômica, com a atuação de Fernando Haddad no Ministério da Fazenda, que vem superando desconfianças”, avalia Tang, da USP.
À Índia também não interessa tomar partido. O país, cujo primeiro-ministro, Narendra Modi, foi recebido com tapete vermelho nos EUA e na França, já tem Washington como maior parceiro econômico. “A manutenção do grupo se reveste de importância porque estamos falando de países de relevância econômica, embora só a China permaneça na primeira linha no ranking mundial”, diz Rochlin, da FGV. O Brics corresponde a 26% do PIB mundial e a 40% da população, e o G7 a 49% e 10%, respectivamente. “Estamos falando de países que, pela extensão territorial e população, têm importância estratégica”, acrescenta.
Ressignificar o bloco sem elevar as tensões, portanto, poderia acontecer por meio do fortalecimento do Novo Banco de Desenvolvimento (NDB, na sigla em inglês), conhecido como Banco do Brics e presidido pela ex-presidente Dilma Rousseff. Seria uma forma de redesenho rápido, em contraposição ao Banco Mundial, por exemplo. “A instituição poderia financiar países pobres com menos requisitos ou condicionantes que bancos multilaterais normalmente impõem”, diz Tang. “É uma forma de expansão alternativa, porque outros países poderiam virar clientes e não membros, em projetos de desenvolvimento. Seria mais interessante para o Brasil”, acrescenta Macedo, do Ibmec SP.
Ao cenário complexo, soma-se a desaceleração da economia chinesa, ingrediente que aumenta as incertezas. O gigante ainda sofre os efeitos da política de covid zero e recente reabertura, elevando temores sobre os rumos de sua política econômica, já que o governo não vem usando os estímulos de outras crises. Nesta semana, dados oficiais mostraram crescimento de apenas 0,8% no segundo trimestre em relação aos primeiros três meses do ano, menos que a metade dos 2,2% do primeiro trimestre.
O resultado é reflexo da fraqueza das vendas no varejo e dos investimentos apenas moderados do setor privado, assim como a forte desaceleração das exportações puxada pela menor demanda externa, afetada pela alta dos juros no mundo. Diante disso, economistas já rebaixam suas previsões de expansão para este ano de 5,5% para 5%. “Esperava-se uma paulada de crescimento com a reabertura. Há um gosto amargo agora”, comenta Godoi, da Kairós Capital.
Para os especialistas, porém, a economia continua forte, mesmo com a relutância em adotar medidas de estímulo em larga escala. “A China está guardando bala para quando precisar, não quer inflar bolha ainda. A reabertura pós-covid já é o estímulo na transição para consumo e serviços”, avalia Andrew Reider, CIO da gestora WHG. O executivo se refere ao remodelamento da economia: “Era baseado em infraestrutura, modernização das cidades e migração rural. Subia mais de 10% ao ano, agora cresce a 5%. Quando desacelerava, investia em obras e estava tudo resolvido. A construção civil corresponde a 25% do PIB”, explica Paula Moreno, cogestora da Apex Capital.
Desde o início de 2022 a base se voltou para consumo, tecnologia, transição energética, menos dependente de exportações, já como reflexo do acirramento nas relações com os EUA na era Trump. “Vivemos hoje um processo de ‘japanização’ da China? Investidores estrangeiros estão tentando entender”, diz Moreno. Mas Macedo, do Ibmec SP, ressalta que é preciso pensar o país fora das métricas ocidentais. “Sempre tem que ser a médio e longo prazos, diante do poder concentrado no Partido Comunista. Política de Estado e de governo se misturam. A China sempre se planeja em termo de décadas”, explica. “É como se o país estivesse aguardando seu momento, porque se mantém poderoso na medida em que o Ocidente, principalmente os EUA, tem perdido relevância por instabilidades econômicas e políticas.”
O país vem avançando em parcerias em nações latino-americanas e africanas, em infraestrutura, comunicação, manufatura e energia. “A China não pode ser subestimada. O que ninguém responde claramente hoje é qual é a prioridade, se restaurar o mercado interno ou aumentar a influência sobre outros países. E esse vai ser o ponto-chave para superar os EUA daqui a 10 ou 20 anos, se tornando a maior economia do mundo”, pondera Tang.
Fonte: Valor Econômico

