À medida que conflitos regionais se prolongam sem sinal de solução e grandes potências militares se mostram mais preocupadas em garantir posições vantajosas do que manter a ordem mundial, atores com capacidades relativas menores se rearranjam no tabuleiro global em busca de segurança. Enquanto EUA, Rússia, China e países da Europa dedicam esforços para ampliar seus arsenais, incluindo suas capacidades atômicas, uma série de outras nações investem na criação de alianças alternativas e parcerias estratégicas, criando uma rede complexa de relações que dificulta cálculos geopolíticos isolados.
Perto do principal conflito envolvendo uma potência nuclear nos últimos anos, a Polônia (que faz fronteira com a Ucrânia) anunciou no começo do ano medidas para aumentar o número de militares treinados na reserva de 200 mil para 500 mil. Apesar de o país estar protegido pela defesa coletiva da Otan (aliança militar liderada pelos EUA), o premier Donald Tusk não descartou a possibilidade de acessar armas nucleares para garantir sua defesa territorial integral.
Em diferentes contextos regionais, países têm buscado soluções de defesa em meio aos tensionamentos — incluindo acordos de proteção mútua, com estruturas semelhantes ao Artigo 5º da Otan, que considera o ataque a um membro da aliança um ataque a todos. Em setembro, Arábia Saudita e Paquistão anunciaram um acordo de defesa de ampla repercussão para o Oriente Médio, enquanto Austrália e Papua-Nova Guiné firmaram um acordo bilateral no contexto da Ásia-Pacífico.
Corrida nuclear
Especialistas ouvidos pelo GLOBO apontam que tanto a nova corrida nuclear quanto o surgimento de acordos de defesa mútua são parte de uma reordenação da ordem global, com consequências de longo prazo ainda pouco previsíveis, que se assemelha a uma “nova paz armada” — na qual a lógica é demonstrar antecipadamente que qualquer eventual agressão cobrará um preço alto.
— Essa é uma mudança de longo prazo, não só de uma conjuntura específica, mas um novo cenário que vai durar algum tempo, cuja razão principal é um acirramento das tensões entre as grandes potências — explica o cientista político Maurício Santoro, professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) e colaborador do Centro de Estudos Político-Estratégicos da Marinha do Brasil. — Isso tem influenciado as políticas de defesa e a diplomacia de vários países ao redor do mundo, principalmente aqueles que estão perto das zonas de conflito.
O presidente americano, Donald Trump, anunciou no fim do mês passado que ordenou ao Pentágono a retomada de testes de armas atômicas após a Rússia testar peças de seu arsenal com capacidade de transportar ogivas nucleares. Ao tornar a decisão pública, o republicano também mencionou o desenvolvimento nuclear da China, que apresentou novos armamentos em setembro. Pequim e Moscou condenaram a decisão americana e argumentaram que suas ações não eram comparáveis à retomada de testes nucleares.
A disputa entre as potências atômicas não fica restrita apenas às partes e suas estratégias de dissuasão, que remontam à Guerra Fria. O acirramento ressoa também entre países inicialmente alheios às questões entre as potências, que tentam suprir suas próprias necessidades defensivas.
— [A corrida nuclear] leva a um processo de aceleração de pactos de segurança e gastos militares, no qual veremos iniciativas de defesa mútua ou coletiva sendo firmadas em maior grau em tempos contemporâneos — avalia o professor de Ciências Militares da Escola de Comando e Estado-Maior do Exército (Eceme), Sandro Teixeira Moita. — Essa marcha indica que continuará até a solidificação de grandes blocos de segurança ou, ainda, algo mais dramático, como um conflito. Neste momento, é difícil enxergar uma saída dessa lógica de escalada.
Defesa mútua
Em uma avaliação sobre o contexto mais abrangente, Santoro afirma que os acordos entre Arábia Saudita e Paquistão e entre Austrália e Papua-Nova Guiné representam um tipo de estratégia adotada por potências médias, que, apesar da implicação secundária na disputa mundial, sentem impacto em suas regiões e tentam manter seus entornos estáveis.
— Não são países que têm um alcance global, como os EUA e a China, mas têm um certo nível de influência e de poder militar, pelo menos em suas regiões — explica Santoro, acrescentando que cada acordo atende a uma lógica própria.

No caso do texto assinado em Riad pelo príncipe herdeiro saudita, Mohammed Bin Salman, e o primeiro-ministro paquistanês, Shehbaz Sharif, a enunciada estratégia de “dissuasão conjunta contra qualquer agressão” acrescenta capacidades importantes para os dois lados. Os sauditas ganharam — ao menos no plano hipotético — uma garantia de defesa nuclear, algo que mexe com o equilíbrio de forças no Oriente Médio, onde apenas Israel detém tecnologia atômica.
Na visão do Paquistão, o acerto com os sauditas garante a proteção do detentor do 19º maior PIB do mundo, com acesso a equipamentos militares ocidentais e uma grande capacidade de interlocução internacional — inclusive com a Índia, rival histórica com quem entrou em confronto no começo do ano.
— Para a Arábia Saudita, a aliança com o Paquistão agora, quando Islamabad acaba de sair de uma crise com a Índia, é um movimento geopolítico de custo muito baixo, porque é um país que sempre foi próximo — avalia Moita. — Também sinaliza a Washington que Riad não está mais tão confiante apenas na sua aliança com os EUA, sobretudo depois do que aconteceu no Catar, bombardeado pelos israelenses no ataque contra lideranças do Hamas.
Em entrevista ao GLOBO, o ex-diplomata Fausto Godoy, professor de Relações Internacionais na ESPM e ex-embaixador junto ao governo do Paquistão, afirmou que, no caso envolvendo os países, há um componente de disputa por influência dentro do mundo islâmico.
— O que está por atrás desse acordo entre Paquistão e Arábia Saudita é o Islã sunita — disse Godoy, apontando a relevância do contexto específico. — O acordo é de defesa [das partes], mas também de defesa do mundo islâmico sunita contra a ameaça do Irã (xiita). Os países sunitas estão muito preocupados com o ativismo iraniano, o que, por sua vez, também é uma reação a tudo que está acontecendo na região.
Estratégias sobre a mesa
Nenhum dos atores internacionais tem apostado em uma estratégia unidimensional. Moscou, em guerra com a Ucrânia, construiu um acordo de defesa mútuo com a Coreia do Norte — que efetivamente entrou em vigor com o envio de soldados norte-coreanos ao país — enquanto desenvolve suas capacidades nucleares. A China, que tem apostado em um desenvolvimento da indústria militar nacional, há anos investe no que Godoy chama de uma estratégia voltada a fatores geoeconômicos, que une os poderes sobre os mercados e a presença política chinesa, sendo um desses vetores a Organização para a Cooperação de Xangai.
No caso americano, Trump investiu em uma série de iniciativas para a contenção da China, por exemplo, ao fechar o recente acordo para construção de submarinos de propulsão nuclear na Coreia do Sul — fortalecendo a posição de um aliado asiático — e ao se aproximar de regimes da Ásia Central. Para a América Latina e o Caribe, porém, a estratégia passa por uma volta à imposição de sua agenda por meio da força, facilitada pela mobilização militar sob argumento de combate ao tráfico drogas, equiparando cartéis ligados ao tráfico a grupos terroristas.
Fonte: O Globo

