Regulamentado em março, texto deve impulsionar ações para que os ambientes organizacionais sejam menos tóxicos, mas critérios ainda são vagos e requerem maturação
PorAdriana Fonseca, Para o Valor
Uma nova lei, de número 14.831/2024, instituiu, recentemente, o Certificado Empresa Promotora da Saúde Mental. A proposta é que, a partir do momento que a organização cumpra as iniciativas apresentadas no texto da legislação, uma comissão certificadora nomeada pelo governo federal fará a avaliação a fim de conceder o certificado.
Para especialistas ouvidos pelo Valor, a lei é uma iniciativa positiva, mas ainda vaga e que requer tempo de maturação.
Gabriela Lima, sócia da área de direito trabalhista de TozziniFreire Advogados, vê a nova legislação de forma “muito positiva, considerando o incentivo às empresas a realizarem ações e políticas para promoção da saúde mental e do bem-estar dos trabalhadores”.
Ela ressalta, porém, que o tema ainda é incipiente, uma vez que a lei foi publicada no final do mês de março e depende de regulamentação para:
- Previsão do procedimento aplicável para a concessão, revisão ou renovação do Certificado Empresa Promotora da Saúde Mental e
- Nomeação da comissão certificada pelo Governo Federal (a qual será responsável para aferir a conformidade com as práticas elencadas na lei).
“Em nossa análise, a lei possui boas diretrizes para atestar que a empresa promove a saúde mental e o bem-estar dos seus trabalhadores”, afirma.
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Uma das diretrizes previstas pela lei é a “transparência e prestação de contas”, na qual há a previsão de “divulgação regular das ações e das políticas”, “manutenção de canal para recebimento de sugestões e de avaliações” e “promoção do desenvolvimento de metas e análises periódicas dos resultados relacionados à implementação das ações”.
“Por meio dessa diretriz, entendemos que a comissão certificada pelo Governo Federal poderá avaliar como está sendo a implementação efetiva das ações e políticas para promoção da saúde mental, especialmente pela análise periódica dos resultados relacionados à implementação de referidas ações”, comenta a advogada. “Contudo, não sabemos, na prática, como será realizada a análise da comissão certificada pelo Governo Federal para aferir a conformidade com as práticas desenvolvidas pelas empresas para obtenção da certificação. Além disso, não sabemos como será a fiscalização de eventual descumprimento das diretrizes, o que acarretaria, de acordo com a lei, a revogação do certificado.”
Para o advogado João Guilherme Porto, professor e diretor da Faculdade Arnaldo, a precisão da lei em atestar que uma empresa certificada de fato promove a saúde mental depende muito da regulamentação e fiscalização efetiva dos requisitos estabelecidos para a concessão do certificado.
“A lei em si não pode garantir a promoção da saúde mental, mas estabelece critérios que, se cumpridos e fiscalizados adequadamente, podem contribuir para a criação de ambientes de trabalho mais saudáveis”, afirma. “No entanto, é importante ressaltar que a existência do certificado não exclui a possibilidade de ambientes tóxicos e inseguros psicologicamente, uma vez que a promoção da saúde mental envolve uma série de fatores complexos e inter-relacionados.”
Como cuidar da saúde mental dos funcionários
Thiago Liguori, chief medical officer da Pipo Saúde, plataforma de gestão de benefícios de saúde para empresas, afirma que um dos maiores desafios para a saúde corporativa nos últimos anos têm sido tangibilizar o que é uma empresa que cuida, de fato, da saúde mental dos seus funcionários. “Com esse novo certificado, as empresas poderão submeter as ações realizadas na empresa e comprovar para o mercado que estão em conformidade com as melhores práticas nacionais e internacionais”, afirma. “Dessa forma, uma pessoa que aplica para uma vaga de trabalho poderá saber se a empresa realmente tem iniciativas de cuidado à saúde mental do colaborador.”
Vitor Cavalcanti, head de estratégias da The School of Life Brasil, que oferece cursos relacionados a autoconhecimento e inteligência emocional para pessoas e empresas, diz que a nova lei propõe ampliar a consciência sobre o investimento no tema da saúde mental.
“É muito comum um RH tentar instituir um programa de saúde mental e esbarrar em resistência ou ceticismo e conseguir, quando muito, uma ação de Setembro Amarelo, Janeiro Branco ou uma palestra sobre a importância de cuidar da saúde mental”, comenta Cavalcanti. “Nesse sentido, a lei empodera os RHs e as áreas de saúde mental por atestar que, tratar o tema da forma devida, demanda atenção e investimentos devidos.”
Para ele, o cuidado com a saúde mental no ambiente corporativo não deveria acontecer apenas por meio de ações isoladas, uma vez ao ano. “O assédio, as humilhações, o cansaço e o esgotamento físico e mental não têm mês certo para acontecer”, pontua. “Além disso, questões de saúde mental não são como uma gripe, que pode se apresentar da noite para o dia. É resultado de um acúmulo de pensamentos e sentimentos.”
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Para Tatiana Pimenta, CEO e cofundadora da Vittude, que atua na gestão estratégica de programas de saúde mental para empresas, a nova lei é um avanço crucial não apenas para a sustentabilidade dos negócios, mas também para a saúde pública em geral. “Essa legislação reconhece e valoriza as empresas que implementam práticas eficazes de promoção da saúde mental, trazendo benefícios múltiplos tanto para o ambiente corporativo quanto para o sistema de saúde como um todo”, diz. Esse incentivo, acredita Pimenta, pode contribuir diretamente para a redução dos casos de adoecimento mental entre os trabalhadores. Hoje, transtornos como depressão e ansiedade estão entre as principais causas de afastamento do trabalho e sobrecarregam significativamente o Sistema Único de Saúde (SUS) e o Instituto Nacional do Seguro Social (INSS).
Além disso, ela entende que a lei tem um impacto positivo sobre a sustentabilidade dos negócios.
“Empresas que são vistas como promotoras da saúde mental de seus funcionários tendem a ter maior facilidade em atrair e reter talentos, melhorar a satisfação e a produtividade de seus colaboradores, e reduzir custos relacionados a licenças médicas e rotatividade de pessoal.”
Pimenta frisa que a lei promove uma abordagem integrativa e contínua para a gestão da saúde mental, exigindo não apenas a implementação, mas também a avaliação e o ajuste regular das políticas adotadas. “Isso garante que as ações sejam efetivas e ajustadas conforme as necessidades dos trabalhadores e as mudanças no ambiente de trabalho.”
Os riscos de um “greenwashing” da saúde mental
O desafio, agora, é o detalhamento dos aspectos técnicos da nova legislação. “Acredito que a lei é o começo de um processo”, afirma Liguori, da Pipo Saúde. “Ela ajuda a dar os primeiros passos para uma avaliação técnica sobre o cuidado à saúde mental nas empresas.”
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No entanto, a lei é vaga, afirma Liguori, e deixa muitas interrogações em pontos-chave, como:
- Quais documentações deverão ser apresentadas para validação dos três principais pontos
- Quais serão os pesos de cada critério?
- Como será avaliada uma das principais causas de transtornos mentais nas empresas hoje? A sobrecarga de tarefas e liderança tóxica.
- O que será definido como “uma empresa que incentiva o equilíbrio entre vida pessoal e profissional”? É difícil aterrissar algo um tanto quanto subjetivo.
“Para evitar o ‘greenwashing’, acredito que seria interessante colocar maior peso para critérios objetivos, como a implantação de programas de promoção à saúde mental e treinamentos recorrentes das lideranças”, afirma o especialista.
Para ele, os funcionários também precisam ter voz na avaliação, já que são principais impactados pela falta destas iniciativas hoje.
Pimenta, da Vittude, diz que é fundamental garantir que essa certificação realmente ateste a promoção efetiva da saúde mental nas empresas e não seja apenas uma fachada para práticas de relações públicas.
“Para assegurar que empresas certificadas estejam realmente contribuindo para um ambiente de trabalho saudável e seguro, é crucial que os critérios e processos de avaliação sejam robustos e baseados em evidências claras e mensuráveis”, afirma.
Nesse contexto, ela sugere a utilização de soluções de inteligência de dados como uma ferramenta poderosa para as comissões responsáveis pela avaliação das empresas. “Ao integrar indicadores como o volume de afastamentos por transtornos mentais, a adesão dos colaboradores ao tratamento psicológico e psiquiátrico, e até mesmo evolução clínica da saúde dos trabalhadores, é possível obter uma visão mais precisa e fundamentada sobre o impacto real das políticas de saúde mental implementadas pelas empresas”, comenta. “Além disso, a conexão com bases de dados já existentes, como o eSocial e o Fator Acidentário de Prevenção (FAP), pode enriquecer a análise e fornecer uma avaliação mais profunda.”
O eSocial é uma plataforma que consolida as informações trabalhistas, previdenciárias e fiscais, incluindo dados sobre acidentes de trabalho e afastamentos. O FAP, por sua vez, é um índice que reflete a frequência, gravidade e custo dos acidentes e doenças do trabalho em cada empresa em relação à média de seu setor. “Utilizar esses dados pode ajudar a identificar padrões de risco e promover uma avaliação mais rigorosa das práticas de saúde mental no ambiente de trabalho”, acredita Pimenta.
Por fim, ela pontua que para que a certificação seja de fato um selo de qualidade e não apenas uma validação superficial, é necessário que o processo de avaliação seja transparente e contínuo.
Cavalcanti, da The School of Life, diz que promover uma consciência que envolva acolhimento, escuta ativa e preparação das lideranças – aspectos fundamentais para um ambiente promotor de saúde mental – leva tempo e mexe com aspectos importantes da cultura organizacional.
“Diversas empresas já contam com gerências ou diretorias de saúde mental e apostam em programas variados para conscientizar, facilitar o tratamento ou mesmo treinar”, afirma Cavalcanti. “Alguns têm funcionado, outros não e, muito provavelmente, pela falta de continuidade, às vezes falta de consistência ou mesmo ausência do chamado patrocínio da liderança. O tema precisa ser uma questão de todos e as pessoas precisam entender que a preocupação deve ser genuína e não apenas para constar em um relatório.”
Dados do Fórum Econômico Mundial apontam para um custo global da saúde mental perto de US$ 6,6 trilhões, incluindo os custos de saúde, absenteísmo, afastamentos e aposentadorias precoces. No Brasil, estima-se quase 5% do PIB, alerta o especialista.
Liguori comenta que o tema saúde mental nas empresas ganhou uma proporção maior apenas após a pandemia e, assim como Cavalcanti, vê casos de empresa fazendo um bom trabalho de conscientização, educação e direcionamento correto para o cuidado em saúde mental. Mas ainda são poucas as que olham para as causas reais do problema, como:
- Sobrecarga das atividades no trabalho (uma pessoa fazendo o trabalho de duas);
- Controle de estresse em áreas com interface direta ao cliente;
- Áreas operacionais com alta cobrança, mas sem um direcionamento claro;
- Metas inatingíveis que geram sobrecarga mental.
“Com o tempo, isso acaba acumulando e gerando um desequilíbrio do bem-estar mental, que pode levar ao adoecimento e afastamento do trabalho”, afirma.
Ele reforça que cuidar da saúde mental não é só fazer uma palestra. “As empresas precisam ter um olhar integral à saúde mental, atuando em três frentes principais”, diz, listando:
- Prevenção – avaliação do ambiente de trabalho, cobrança e sobrecarga
- Diagnóstico – Identificar as pessoas sob risco e com transtornos mentais
- Tratamento – Direcionamento adequado para o cuidado em saúde e monitoramento
“Poucas empresas estão atuando nos três pilares”, conclui. “Ainda temos muito a fazer pela saúde mental dos colaboradores.”
De acordo com a nova lei, o Certificado terá validade de dois anos e, após esse período inicial, a empresa deverá passar por nova avaliação para sua renovação. Mais recente Próxima O que recebo se eu pedir demissão? Veja quais são os direitos dos trabalhadores
Fonte: Valor Econômico