.22 Dec 2023 Rolf Kuntz
Só há uma certeza, por enquanto, em relação ao grande ajuste prometido por Javier Milei para conter uma inflação próxima de 200% ao ano: a primeira fase vai ser dolorosa para a maior parte das famílias. Fora do governo, dificilmente alguém pode dizer como será a fase seguinte, porque nenhum plano com etapas e metas parciais foi apresentado.
Com dois pacotes lançados em duas semanas, o presidente se empenhou, até agora, em desmontar os gastos do governo central, em promover uma ampla limpeza orçamentária e, principalmente, em reduzir severamente a presença do poder público nos negócios. O ultraliberalismo impõe sua marca aos primeiros atos do novo governo. Falta saber quanto dela permanecerá, depois do primeiro esforço para reduzir a zero o déficit fiscal.
Nem tudo é novo. O choque inflacionário inicial, promovido com a desvalorização do câmbio, assemelha-se à disparada de preços na fase preparatória do Plano Real, quando se usou como padrão a Unidade Real de Valor (URV). Passado esse choque terapêutico, houve condições para o início de um ajuste efetivo, por meio da disciplina fiscal e monetária, e para a implantação da moeda até hoje usada no Brasil. Na Argentina, onde o dólar é usado, normalmente, como referência de valor, o câmbio foi usado no lance inicial do ajuste.
O amplo movimento inicial de liberalização pode ser muito duro para as indústrias, mesmo para aquelas competitivas, e muito penoso para os trabalhadores.
A ampla extinção de regras impõe custos maiores aos cidadãos mais vulneráveis, como os assalariados e grande parte dos trabalhadores por conta própria. A prometida “modernização do regime laboral para facilitar o processo de criação de emprego efetivo” parece indicar uma ampla desregulamentação do mercado de trabalho. Um dos poucos sinais de preocupação com os indefesos foi a manutenção de políticas sociais como a de Asignación Universal por Hijo (Subsídio Universal por Filho).
Não se mencionam, nos pacotes divulgados, políticas voltadas para o desenvolvimento industrial, a modernização produtiva e o aumento de competitividade. Se as mudanças prometidas favorecerão o crescimento e a renovação da indústria argentina é algo para ser verificado a partir do próximo ano. Com qualquer resultado, positivo ou negativo, essa experiência poderá ser muito instrutiva para o Brasil e outros emergentes.
Fonte: O Estado de S. Paulo

