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Alexandre Kalache faz questão de dizer que ele aparenta, sim, a idade que tem. “Sou careca, preciso de óculos, minha barba é branca e tenho orgulho dessas rugas, que indicam os sabores e os dissabores que experimentei ao longo da vida”, ele costuma dizer, sobretudo em palestras e lives, apontando para o próprio rosto. “Não tem problema: podem me chamar de velho.”
Para o Valor, ele diz que não chama ninguém dessa forma porque há quem se ofenda. “Mas precisamos desconstruir a ideia de que ‘velho’ é um termo ofensivo.” Não há melhor maneira, diz, para ganhar a simpatia de alguém do que afirmar algo do tipo: “Você está muito bem para a sua idade”. “No Brasil, é uma ótima frase para fazer novos amigos”, conta Kalache, que completa 80 anos em outubro.
No mesmo mês, vai celebrar 50 anos de dedicação à gerontologia. “Não há nada mais moderno, hoje em dia, do que envelhecer”, diz o médico que dirigiu o departamento da Organização Mundial da Saúde (OMS) focado em envelhecimento. Mais do que uma frase de efeito, a afirmação de Kalache é uma provocação a quem não dá a devida atenção para a própria longevidade e para os médicos.
“A anatomia, a fisiologia, a fisiopatologia, a dosagem dos medicamentos não dá para tratar de pessoas mais velhas sem considerar que tudo isso muda com o envelhecimento”, argumenta. “Um infarto de miocárdio, por exemplo, para quem tem mais de 75 anos não provoca, necessariamente, dor. Desnecessário dizer qual é o risco de os médicos não saberem disso.”
Kalache virou uma das mais respeitadas vozes no Brasil contra o etarismo, termo que considera impreciso. Prefere “idadismo”. “O preconceito, no caso, é contra a idade, assim como racismo tem a ver com raça”, diz. Ele também não gosta da expressão “melhor idade”.
“Só serve para dourar a pílula, jogar areia nos olhos”, critica. “Melhor idade é aquela na qual você dispõe de qualidade de vida, independentemente dos anos de vida.” Ele também reclama de outra célebre designação: “terceira idade”. “Há uma quarta idade?”
Kalache torce o nariz também para a palavra “aposentadoria”. “Remete a quê? Àquelas casas antigas nos fundos das quais havia um quartinho onde metiam os velhos”, afirma ele, que prefere usar o termo em inglês “retirement”. “Não estou envelhecendo em nenhum quartinho nos fundos. Vou envelhecer na sala da frente, ciente dos meus direitos e gritando por eles.”
Kalache diz que não tem nada contra a aposentadoria em si. “Não houve nada mais libertador do que ter sido aposentado pela OMS, compulsoriamente, 18 anos atrás, quando eu tinha 62”, afirma.
“Desde então não tenho chefe e decido o que eu quero fazer, quando, como e com quem. É o sonho de todo mundo, não é?”, diz. “Se eu tivesse começado a trabalhar dessa forma aos 40, teria sido melhor ainda. E estou tão ou mais ativo do que na época da OMS. Nunca estive internado, nunca fiz nenhuma operação ou fui diagnosticado com doença séria. Pressão alta, diabetes? Nada. Devo, portanto, estar fazendo alguma coisa certa. E não vejo, por enquanto, nenhuma necessidade em parar de trabalhar.”
Para este “À Mesa com o Valor”, o restaurante escolhido foi o Must, localizado no térreo do hotel Tivoli Mofarrej de São Paulo, a uma quadra da avenida Paulista. Kalache escolheu o endereço devido à proximidade com uma estação de Metrô, Trianon-Masp. A tranquilidade do restaurante, situado entre o lobby e a piscina, também contou pontos. “Aqui não costuma ficar lotado na hora do almoço, e a gente consegue se ouvir”, justifica-se, após os cumprimentos.
Alexandre Kalache veste camisa cinza listrada, calça da mesma cor, um pouco mais escura, e sapatênis avermelhados. Pontual como convém a alguém que mora parcialmente em Londres, no célebre bairro de Camden Town (seu outro endereço é em Copacabana, no Rio), ele chega minutos antes do horário combinado, 12h30.
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Kalache pede um Guaraná Zero com gelo e laranja. Entre o menu à la carte e o bufê de almoço à vontade, que rouba a cena entre as mesas, ele prefere a segunda opção por considerá-la mais prática. Ao se servir, monta um prato comedido com alface americana, ervilha, palmito, tomate-cereja, abóbora cabotiá, alcachofra grelhada e fraldinha com azeite de ervas. Dos itens que compõem a grande estrela do bufê, a feijoada, serve-se só de farofa e couve refogada.
“Aprendi com meu pai, que morreu aos 93 anos, a colocar ‘cor’ no prato”, diz. “Dou esse conselho para todo mundo que quer comer bem.”
Kalache serve-se uma única vez. Na fraldinha, mal encosta. “Não gostei muito”, explica. “Minha opção teria sido peixe, se tivesse.” Ele diz que quase não come carne vermelha e que cortou o consumo de bebidas alcoólicas completamente desde a pandemia. Tudo que ele bebia, até então, era uma taça de vinho.
“Nunca fui de abrir uma garrafa sozinho, bebia socialmente”, recorda. “Por isso, quando me vi completamente isolado, durante a quarentena, nem pensei em vinho. Quando voltei a tomar uma taça, no primeiro gole a bebida ‘bateu’ com força na cabeça. Daí concluí: eu não preciso beber.”
A rotina em prol da saúde inclui caminhadas e, em breve, musculação, de acordo com uma promessa que fez para si mesmo. “Preciso aumentar minha massa muscular”, afirma. “Todo velho precisa ter força nem que seja para conseguir sair da cama e ir até o banheiro sem a ajuda de ninguém.”
Na hora da sobremesa, começa pela travessa de frutas. Coloca no prato um morango, uma fatia de pitaya vermelha, uma de mamão, uma de abacaxi e duas de manga. Depois captura um mini creme brûlé e um mini quindim de maracujá, que não passa pelo seu crivo. “Podiam voltar a preparar a versão tradicional”, diz, antes de pedir um café.
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O lado materno da família de Kalache simboliza uma das duas grandes mudanças demográficas que marcaram o mundo nas últimas décadas, o enxugamento dos núcleos familiares e o fato de que a maioria da população passou a viver em centros urbanos. O avô materno tinha 16 irmãos e a avó materna, 12.
“Essa turma toda teve, em média, 8 filhos, e estes geraram cerca de 4”, resume. Segundo de uma prole de 4 filhos, o entrevistado teve dois rebentos. O primogênito está com 51 anos e a caçula, com 47. “A geração seguinte à minha está tendo um ou dois filhos ou nenhum”, acrescenta ele, avô de 3 netos. “Tenho um sobrinho que casou, disse que não vai ter filhos, adotou três gatas e castrou todas elas. Ou seja, no que depender dele, não haverá reprodução de nada.”
A velocidade com que os núcleos familiares encolheram no Brasil, diz, foi muito rápida. “Os países desenvolvidos primeiro enriqueceram e depois ‘envelheceram’”, afirma. “O Brasil está ‘envelhecendo’ na pobreza ou na miséria.”
Kalache critica mais uma expressão, “economia prateada”, que tem sido utilizada para descrever o mercado consumidor formado pelas pessoas com mais de 60 anos (os 60+). “Economia prateada? Pode fazer sentido na Califórnia”, diz. “No Brasil, 83% das pessoas que envelhecem só se aposentam se tiverem sorte.”
Baixando um pouco a régua, o otimismo relacionado à “economia prateada” talvez faça sentido. De acordo com a consultoria Data8, as pessoas com mais de 50 anos (50+) movimentam quase R$ 2 trilhões por ano no Brasil com o consumo de produtos e serviços. É uma faixa da população que responde por 23% do consumo de bens e serviços, com uma renda anual estimada em R$ 940 bilhões. Mundialmente, essa parcela da população movimenta cerca de US$ 7,1 trilhões por ano.
Kalache lembra, no entanto, que a quantidade de serviços e produtos criados exclusivamente para os idosos ainda é ínfima no país. “É mais um sintoma do ‘idadismo’”, diz. Para ele, outro sintoma é a baixa disposição das empresas, de maneira geral, para empregar pessoas mais velhas ou para não desligar os funcionários que atingiram certa idade. A inclinação para cortar salários que crescem com o passar dos anos costuma falar mais alto. O etarismo, diz, ainda é uma das últimas prioridades das agendas ESG das companhias.
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Kalache adora citar “Um Senhor Estagiário” (2015), filme estrelado por Robert De Niro e Anne Hathaway, ao elencar as vantagens de manter pessoas mais velhas no quadro de funcionários. Nessa comédia dramática, o ator nova-iorquino interpreta um viúvo de 70 anos que se emprega como “estagiário sênior” em um site de moda. “Com a presença dele na empresa, todo mundo ganha”, conta Kalache. “O capital humano, fundamental para a sociedade, é velho. Mas as pessoas mais novas precisam estar dispostas para ouvi-lo.”
Kalache é presidente no Brasil do Centro Internacional de Longevidade e codiretor do Age-Friendly Institute, organização sediada em Boston, nos EUA, que milita para melhorar a qualidade de vida dos idosos. Uma das iniciativas desta entidade, o selo Certified Age-Friendly Employer (Cafe), foi criado em 2016 e atesta o compromisso das empresas em acolher funcionários 50+.
O site do instituto lista mais de 230 companhias certificadas nos EUA, como AT&T, Macy’s e Wells Fargo. No Brasil, onde o selo é concedido em parceria com a Maturi, 16 empresas já foram certificadas, entre as quais Boticário, Eurofarma, TIM e banco BMG.
Filho de um sírio e de uma paulista de Ribeirão Preto (SP), Alexandre Kalache nasceu em Copacabana quando o bairro estava longe de abrigar uma vasta população idosa. “Era um bairro ainda caracterizado pela juventude”, recorda. “Hoje, virou um retrato de como o Brasil será em 2050.”
Quase 16% da população brasileira tem 60 anos ou mais. Em 1980, essa parcela correspondia a apenas 6,1% do total. A expectativa, para 2050, é de que ela chegue a 30%, o que fará do Brasil o sexto país com mais sexagenários, septuagenários etc.
O primeiro endereço de Kalache foi na avenida Atlântica, depois trocado por um apartamento na rua Sá Ferreira. Quem morava no prédio em frente era Juscelino Kubitschek, que foi presidente do Brasil entre 1956 e 1961. Kalache continua a frequentar a mesma quadra, pois comprou um apartamento no mesmo edifício onde viveu boa parte da infância.
No 18º Congresso Internacional de Geriatria e Gerontologia, em 2005, Kalache anunciou o resultado de uma pesquisa informal, em que idosos de Copacabana foram questionados sobre quem consideravam seus melhores amigos. A resposta da maioria: o porteiro do prédio.
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“É quem ajuda e monitora o idoso que mora sozinho e quem avisa para os filhos, quando estes aparecem, se há algo de errado com o pai ou a mãe deles”, afirma Kalache.
Um dos reflexos dessa pesquisa foi um guia, cuja elaboração ele coordenou na OMS, para cidades que querem ser vistas como amigas do idoso. “A verdade é que se a cidade é mais amigável para os velhos, ela é melhor para todo mundo”, argumenta. “Se um ônibus é mais fácil para um idoso subir e descer, por exemplo, também é para mulheres grávidas e para jovens que machucaram o joelho.”
Em função da maior disposição das gerações anteriores à dele para se reproduzirem, o médico cresceu rodeado de uma porção de primos e idosos. “Ou eu brincava com os primos, brigando com eles para conseguir o meu espaço, ou ficava ouvindo as histórias dos idosos da família”, recorda ele, que tinha mais inclinação para a segunda opção.
Essa convivência com idosos logo cedo foi decisiva para sua trajetória. Na capital da Inglaterra, onde desembarcou em 1975 para fazer um mestrado em medicina social na Universidade de Londres, o médico formado na UFRJ concluiu que um background do tipo faz toda a diferença na vida dos profissionais da área da saúde que lidam com idosos.
Tudo começou com sua surpresa, quando chegou ao país, com a enorme proporção de velhos. “Foi um choque”, recorda. “Quando eu me formei, em 1970, a expectativa de vida no Brasil era de 57 anos.” No mesmo ano, os ingleses chegavam, em média, aos 71.
Quando ele nasceu, em 1945, os brasileiros viviam, no geral, só até os 46. “Na Alemanha, em 1900, esta era a expectativa máxima de vida no mundo todo”, diz. Ao se debruçar sobre esses números, que deixam claro que a humanidade está cada vez mais longeva, pensou: “há uma revolução a caminho”.
“Hoje, não há nenhum país com expectativa de vida menor do que a mais alta registrada no mundo todo há 125 anos”, afirma Kalache. “Qualquer país da África, por mais pobre que seja, já passou dos 55 anos.”
No mestrado, Kalache descobriu que 83% dos médicos no Reino Unido que se dedicavam à geriatria tinham nascido em ex-colônias britânicas como Índia, Bangladesh e Paquistão. Com o apoio da Sociedade Britânica de Geriatria, decidiu fazer uma pesquisa para descobrir se essas pessoas tinham satisfação nessa especialidade, da qual nunca ouvira falar no Brasil. Dos 850 profissionais contatados, 92% responderam a ele.
Uma das perguntas incluídas no questionário era: na sua infância ou durante a adolescência, você teve contato íntimo com velhos? “Os que tinham satisfação no trabalho, a metade dos respondentes, tinham convivido intimamente, no passado, com pessoas idosas, em geral os avós”, lembra Kalache. “A outra metade, que não estava satisfeita, optara pela geriatria simplesmente porque era uma especialidade pouco concorrida.” Foi a principal conclusão da pesquisa.
Não demorou para ele concluir que o propósito da geriatria é um pouco diferente da medicina tradicional. “O currículo médico é todo voltado para a cura, mas não se cura com facilidade, por exemplo, alguém que adoeceu gravemente com 80 anos”, argumenta. “O papel do cuidado, portanto, é enorme. Médicos, psicólogos, fisioterapeutas e até nutricionistas que pretendem lidar com idosos, no entanto, precisam gostar de cuidar dessa parte da sociedade.”
Neste ponto do almoço, a trilha sonora do restaurante está a cargo de um pianista. Quando o músico começa a tocar “Carinhoso”, o médico diz que sua mãe adorava essa música. Ela morreu aos 103 anos. O pai dele, com 93. Já o sogro de Kalache faleceu aos 104 anos, e a sogra está à beira dos 100 anos.
Kalache lembra desses números para contar uma piada que ouvia com frequência na época de estudante de medicina: “Você quer viver bem e muito? Escolha bem seus pais”. Depois explica que o papel da boa genética na longevidade se resume a 25%. “A forma como cada um leva a vida contribui com os 75% restantes”, afirma. “Meus filhos tiveram sorte, pois nasceram em uma família longeva. Se não derem atenção a esses 75%, porém, vão se dar mal.”
Como aumentar a longevidade? Esta é uma pergunta que ele ouve com frequência. O que Kalache preconiza é o “envelhecimento ativo”. Hábitos alimentares saudáveis são fundamentais, assim como o sedentarismo e o cigarro são limitantes. “A saúde é criada no dia a dia, tanto na maneira como você se locomove quanto na forma como você se diverte”, diz ele, acrescentando que nunca é tarde para começar a envelhecer melhor.
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“Fumou durante anos e acha que o estrago já está feito? Se você parar agora poderá evitar, pelo menos, um enfisema pulmonar.”
Outro pilar do envelhecimento ativo, ensina ele, é o aprendizado ao longo da vida. “É preciso aprender a aprender sempre”, diz. “Sabe qual é o principal fator de risco para a demência no Brasil? O analfabetismo.” A baixa reserva cognitiva está relacionada a doenças como o Alzheimer, cada vez mais frequentes em função do aumento da expectativa de vida da população. Vem daí a vantagem da leitura da infância à velhice.
O objetivo é esticar ao máximo o “healthspan”, os anos em que gozamos de boa saúde, e não só aumentar a expectativa de vida. “Mais anos de vida a humanidade já conseguiu. Mas será que a gente está conseguindo aproveitá-los?”
Kalache se diz esperançoso em relação aos avanços da medicina para debelar doenças como Parkinson e Alzheimer, mas acredita que a cura ainda levará muito tempo. “Mas devo reconhecer que, nos anos 1960, quando eu ainda estava na faculdade, muitas promessas da medicina soavam como ficção científica”, recorda. “É o caso da reposição de fêmur, por exemplo, hoje um procedimento corriqueiro.”
Kalache lembra do presente que deu para sua mãe quando ela completou 100 anos: uma tiara. Era uma brincadeira com o fato de os amigos dele sempre a chamarem de “baronesa”. “Acho que agora chegou o momento de você deixar de ser baronesa para virar rainha”, disse ele, colocando o acessório na cabeça da mãe. “Tira, tira”, disse ela na mesma hora. “Eu não quero ser rainha, prefiro ser princesa.” Ele contou essa mesma história numa palestra na qual a rainha da Suécia, Sílvia Renate, cuja mãe era brasileira, estava presente. Kalache conta que, no intervalo, a monarca disse para ele: “Sua mãe tinha razão”.
Fonte: Valor Econômico