A Advocacia-Geral da União (AGU) encaminhou na segunda-feira, 25, ao Supremo Tribunal Federal (STF) manifestação na qual pede a declaração de inconstitucionalidade de alguns dispositivos das Emendas Constitucionais (EC) nº 113/21 e nº 114/21, que criaram um teto anual para pagamento de precatórios até 2027.
A AGU também pediu que o pagamento do acumulado de precatórios possa ser feito por crédito extraordinário, de forma segregada. O valor principal dos precatórios seria quitado como despesa primária, e os encargos financeiros, como despesa financeira.
“Buscar saída via STF é ruim, é contra a ordem natural das coisas, é querer que o STF legisle”, diz Carlos Kawall, sócio fundador da Oriz Partners e ex-secretário do Tesouro Nacional.
A saída via Judiciário é uma “solução forçada”, diz Gabriel Leal de Barros, sócio da Ryo Asset e ex-diretor da Instituição Fiscal Independente (IFI). “O local correto para esse debate é o Congresso, onde já há, inclusive, um projeto de lei para modernizar a lei de finanças públicas. A AGU está provocando o STF a violar sua área de competência.”
Há no Congresso a PEC da reforma tributária, diz Kawall, a agenda da meta fiscal com as medidas secundárias que o governo tem proposto, “um monte de coisas que são urgentes”. “Há grande chance de isso melindrar mais uma vez o Legislativo e atrapalhar pautas urgentes. A questão dos precatórios não é tão urgente. Isso causa preocupação do ponto de vista do jogo político do governo com o Legislativo.”
“O que realmente surpreende mais negativamente é o lado da contabilidade criativa, é querer buscar uma interpretação própria para uma regra que é internacional, via uma decisão do Poder Judiciário”, diz Kawall.
O único mérito da proposta, diz, é assumir que o precatório é devido. O economista lembra que em 2021 foi frontalmente contra a criação de um teto para pagamento de precatórios, o que considerou uma “violência jurídica”.
Voltar a uma regra anterior à criação de um limite anual para precatórios contribuiria para aumentar a segurança jurídica, defende Kawall. “Mas a proposta quer dar um passo para corrigir um erro que gerou insegurança jurídica por meio de um outro erro.”
Tiago Sbardelotto, economista da XP, diz que a proposta “resolve um problema, mas cria outro”.
“É positiva ao promover quitação do estoque de precatórios expedidos e não pagos até agora. Ao colocar em dia as obrigações do governo, diminui-se substancialmente a pressão adiante”, diz. As informações disponíveis indicam estoque de aproximadamente R$ 95 bilhões considerando-se os valores acumulados nos orçamentos de 2022, 2023 e 2024.
“Mas a mudança na classificação das despesas é problemática”, diz Sbardelotto, Para ele, os precatórios continuam representando obrigações relacionadas à sua natureza original. Os precatórios são dívidas relacionadas a ações judiciais que o governo perdeu de forma definitiva. “Despesas com pessoal que se originam de precatórios continuam sendo despesa de pessoal, ainda que sejam pagas anos depois, logo a natureza primária se mantém”, comenta.
O economista lembra que pelo parecer conjunto da Secretaria do Tesouro Nacional e da Procuradoria Geral da Fazenda Nacional, que respalda a iniciativa da AGU, os juros de mora têm natureza autônoma em relação à natureza jurídica da verba em atraso e por isso não seriam tratados como despesa primária. “Entretanto, pode-se argumentar o mesmo para as receitas decorrentes de juros de mora do pagamento de tributos, que são receitas primárias. Logo, acatar a interpretação [do parecer da STN e da PGFN] implica adotar tratamento diferenciado para juros de mora relacionados a receitas e despesas dentro das estatísticas oficiais.”
Um entendimento de juros e encargos como despesa ou receita financeira, diz Leal de Barros, poderia até mesmo afetar a arrecadação que o governo almeja com as mudanças no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf), que tem parte relevante em juros, multa e mora.
“Parece que se quer legitimar no Judiciário uma mudança à revelia do conceito da norma contábil. Quem zela pela contabilidade do setor público é o FMI, que tem um manual para isso. E quem é o gestor que se atem a esse cálculo, segundo as regras internacionais do FMI, é o Banco Central, não ao Tesouro. Não cabe ao Brasil dizer que a norma contábil não será seguida. Isso é péssimo, é mudar o tamanho da régua”, diz Kawall.
Leal de Barros lembra ainda que a lei que rege a contabilidade pública no Brasil não autoriza esse “entendimento heterodoxo” nos precatórios de que o principal é primário e os juros ou correção monetária são despesa financeira.
Para Kawall, o governo poderia propor um tratamento extraordinário para os precatórios em 2024 em relação ao limite de gastos, mas contabilizando todos os pagamentos como despesa primária. “Porque no final não faz diferença do ponto de vista da dívida bruta se é despesa financeira ou despesa primária. Qual o benefício de se colocar a parte de precatórios ligada a juros fora da despesa primária? Isso ao longo do tempo pode gerar mais espaço para gastos numa situação em que se sabe que está muito difícil o cumprimento das metas estabelecidas”, diz, acrescentando que também é preocupante eventual intenção de abrir mais espaço para gasto primário.
A mudança em precatórios não deve afetar o Orçamento de 2024, avalia Sbardelotto. “A princípio, diz ele, o Orçamento de 2024 tem uma previsão de R$ 16 bilhões destinados integralmente ao pagamento de precatórios expedidos e não pagos, provavelmente do ano de 2022”, diz ele, lembrando que há uma “fila” criada pela EC 114/2021, que trouxe limites e condições para esses pagamentos. Com o pagamento desses precatórios, diz, o valor deve ser preenchido por precatórios que seriam pagos regularmente em 2024, o que não altera a previsão orçamentária.
Na avaliação de Rafaela Vitória, economista-chefe do Banco Inter, o governo acerta no sentido de dar encaminhamento à questão dos precatórios, que poderia significar, por si só, um déficit acima de 1% do PIB em 2027. Ela argumenta, no entanto, que o tratamento contábil deveria ser outro. “O pagamento precisa ser considerado como despesa primária e a discussão sobre exclui-lo dessa contabilidade é bastante negativa, passa a falsa impressão de que existe espaço para crescimento de outros gastos e a expansão fiscal efetiva poderia ser ainda maior entre 2023 e 2024”, diz.
Do ponto de vista do mérito, o advogado Eduardo Gouvêa, presidente da Comissão de Precatórios da OAB-RJ e ex-presidente da Comissão de Precatórios da OAB Nacional, considera que o encaminhamento via Supremo é a melhor solução. “O Supremo não pode limitar sua própria atuação como poder independente, já que o Judiciário fixa seu pagamento obrigatório e o Legislativo e Executivo limitam esse cumprimento.”
Fonte: Valor Econômico

