Surpresas inflacionárias repetidas da ordem da vista no Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) de dezembro podem colocar em pauta a antecipação do fim do ciclo de corte de juros por parte do Banco Central, diz Felipe Sichel, novo economista-chefe da Porto Asset Management.
Esse ainda não é o cenário-base da casa, que vê a Selic chegando a 9,25% até julho. Mas Sichel reconhece, em entrevista ao Valor, que o “mix” da inflação brasileira será um pouco pior daqui em diante. “Itens que estavam puxando para baixo estão puxando menos, alguns outros estão adicionando surpresa para cima e o que já estava colocando pressão está, talvez, colocando ainda mais”, diz Sichel, em referência ao comportamento de bens industriais, alimentos e serviços, respectivamente.
Desde a publicação, na semana passada, do resultado IPCA de dezembro de 2023 – que subiu 0,56%, ante expectativa de 0,49% -, o trabalho do BC “ficou um pouco mais difícil”, afirma.
Sichel já era economista-sênior da Porto Asset desde maio do ano passado e assumiu a área de macroeconomia da casa, que tem cerca de R$ 27 bilhões sob gestão, em janeiro deste ano, após a aposentadoria de José Pena, que foi economista-chefe da Porto nos últimos 12 anos. Antes, Sichel foi economista-chefe do Banco Modal.
Veja os principais trechos da entrevista.
Valor: A Porto Asset tem um olhar bastante voltado para o cenário internacional para pautar suas projeções. O que esperam da inflação e, consequentemente, da política monetária nos Estados Unidos?
Felipe Sichel: Ainda vemos um processo inflacionário presente na economia americana. A inflação ao consumidor acelerou em dezembro, olhando para o índice cheio. A inflação subjacente, que tira itens mais voláteis, ficou praticamente inalterada. Só que a composição enseja cautela. Tivemos, em 2023, uma contribuição muito forte da desinflação de bens, mas ela está ficando cada vez menos intensa, porque já passamos por um longo processo de normalização. Sobra a inflação de serviços, principalmente os subjacentes, mais relacionados à política monetária, e, aí, o que vemos é volatilidade. Há sinais de desaceleração, mas existe também a perspectiva de que, enquanto o desempenho econômico dos EUA continuar forte, dificilmente vamos ver um enfraquecimento significativo do mercado de trabalho. E, sem isso, não tem alívio da inflação de serviços.
Continuamos vendo 9,25% como a taxa consistente com a dinâmica econômica local”
Valor: O que isso implica para o comportamento do banco central americano, o Federal Reserve?
Sichel: Olhando para os componentes de inflação aos quais o Fed se atenta, vislumbramos tendência de queda e, nesse caso, o Fed parece muito propenso a querer cortar juros. Vemos um início dos cortes no primeiro semestre, com maior probabilidade de ser em março. Claro que, se a inflação se mostrar mais duradoura, com maior pressão, isso acaba sendo adiado. Acreditamos mais em um ciclo de ajuste do que de corte propriamente dito. E ciclos de ajuste, historicamente, giram em torno de três cortes de 25 pontos-base [0,25 ponto percentual]. Dado o grau de aperto atual, existe a possibilidade de que esse ajuste seja um pouco maior, com quatro a cinco cortes.
Valor: Os números recentes de emprego nos EUA não jogam contra a tese de cortes em março?
Sichel: Sim, é um risco que estamos monitorando. O mercado de trabalho tem surpreendido a nível global, inclusive no Brasil. Existe algo que não está sendo totalmente compreendido. Mas os sinais do emprego nos EUA também são mistos. Por um lado, a taxa de desemprego segue muito baixa, indicando um mercado de trabalho aquecido, mas isso não conversa bem com a taxa de demissões voluntárias caindo. A demissão voluntária ocorre quando a pessoa olha para o lado, vê todo mundo empregado e tem incentivo para mudar de trabalho, porque estão oferecendo, para um mesmo cargo, remuneração maior. Outro indicador relevante é que as horas médias trabalhadas na semana estão fracas. Se o mercado de trabalho está tão aquecido, por que não estão demandando, principalmente num mercado tão flexível como é o americano, que os empregados trabalhem mais horas? São informações contraditórias. Dito isso, não estamos falando de um ciclo de ajuste que vá levar a taxa de juros para um nível abaixo do neutro; estamos falando meramente que uma parte desse aperto monetário muito grande implementado deve ser desmontado.
Valor: Vimos, principalmente no ano passado, um câmbio muito bem comportado, o que, de certa forma, se mantém. Acreditam que esse cenário deve continuar em 2024?
Sichel: Sim, pelo menos neste primeiro momento. O que de fato está contribuindo para a movimentação dos mercados globais é a expectativa de juros nos EUA. Os momentos de estresse do ano passado foram muito associados à expectativa de juro americano mais elevado. Ou seja, a persistir o ambiente em que você tem expectativa de corte de juros nos EUA, isso deveria contribuir para o câmbio permanecer bem comportado.
Valor: Esse câmbio ajuda a inflação, mas ela voltou a surpreender para cima no fim de 2023. Acabou aquele período em que as surpresas, quando vinham, eram para baixo?
Sichel: O que a gente observa é que, aparentemente, aquele segundo estágio de desinflação a que o Banco Central tanto fez referência, de fato, está se mostrando mais persistente.Tal qual nos EUA, vimos um ajuste muito forte para baixo de bens industriais, mas, no último IPCA, ele já não foi tão grande assim. Parece que, efetivamente, o melhor momento dos industriais passou, salvo uma apreciação muito forte no câmbio. Vimos também uma contribuição para baixo de commodities alimentícias, mas que parece ter estacionado, porque temos agora pressão pelo lado de alimentos. Nos serviços, ficamos preocupados quando olhamos os intensivos em mão de obra. A sinalização de que eles vão continuar acelerando daqui para frente parece válida.
Valor: Por quê?
Sichel: Por trás, também tem um mercado de trabalho em patamar aquecido, se comparado à média histórica. Daqui para frente, a desinflação até continua, mas não vai ser tão unidirecional como foi até agora. Os itens que estavam puxando para baixo estão puxando menos, alguns outros estão adicionando surpresa para cima e o que já estava colocando pressão – notadamente, os serviços – está, talvez, colocando ainda mais pressão. Ou seja, o “mix” da inflação fica um pouco pior, mais forte. Olhando para a média dos núcleos que a gente mais gosta, as médias aparadas, também há sinais preocupantes na margem. O trabalho do BC para continuar com a desinflação que vimos nos últimos trimestres ficou um pouco mais difícil do que a gente achava antes da divulgação do IPCA de dezembro.
Outras economias têm um fiscal pior que o Brasil, o que justifica o mercado um pouco mais leniente”
Valor: Ainda assim, vocês têm uma projeção de IPCA de 3,3% em 2024, abaixo do consenso, que está mais perto de 4%. Por quê?
Sichel: O IPCA de dezembro coloca um viés altista no nosso número. Estávamos um pouco mais otimistas. Mas vemos riscos para a inflação: tem El Niño, que bate em alimentos; não temos alívio dos serviços e a gente precisaria de uma contribuição muito forte do câmbio para baixo para os industriais continuarem contribuindo de forma benigna.
Valor: Como o Banco Central deve se posicionar diante disso?
Sichel: Esperamos continuidade do ciclo de cortes. Mas em nenhum momento do ano passado acreditamos que haveria aceleração. Desde o início argumentamos a favor de um ciclo de cortes de 50 pontos-base [0,50 ponto percentual], antes mesmo do primeiro corte, e continuamos acreditando que a taxa de 9,25% será atingida em julho. O risco é essa taxa terminal ter de ser recalibrada, dependendo também do cenário externo.
Valor: O ciclo de cortes se encerraria antes de julho?
Sichel: Se tivermos surpresas inflacionárias repetidas da ordem do que vimos no IPCA de dezembro, eventualmente, sim, isso poderia entrar em discussão. Não temos evidência neste momento para apontar nessa direção. Continuamos vendo 9,25% como uma taxa consistente com a dinâmica econômica local. Obviamente, existem riscos em torno disso. Vimos momentos em que o cenário externo estava tão estressado, com a taxa do Treasury de dez anos em 5%, que a precificação do mercado era de Selic terminal acima de 10%.
Valor: Não dá para falar, então, que o IPCA de dezembro coloca um viés também na previsão de Selic?
Sichel: Ainda é cedo para dizer isso, porque esperamos um enfraquecimento da atividade econômica, vemos que o câmbio pode permanecer bem comportado e enxergamos um ciclo de cortes do Fed lá fora. Ou seja, não vemos nenhum movimento de ruptura que justifique, hoje, ir abaixo ou acima desse 9,25%. Mas, obviamente, as projeções são atualizadas à medida que a gente vai conhecendo novos indicadores sobre a realidade macroeconômica.
Valor: O sr. citou o enfraquecimento do PIB neste ano. A projeção da Porto é de 1,5%. O que faria esse número ser maior ou menor?
Sichel: Os riscos para o lado baixista são você ter um aperto das condições financeiras globais e, no ambiente doméstico, a eventual confirmação de que o grau de aperto monetário implementado sobre a economia vai levar a uma desaceleração mais abrupta do que o esperado. Entre os riscos altistas, um pouso suave [da política monetária] confirmado o quanto antes nos EUA, por exemplo, alivia as condições financeiras globais e os indicadores locais. São riscos múltiplos, mas balanceados.
Valor: As perspectivas fiscais também trazem riscos?
Sichel: O que a gente viu no segundo semestre foi muito ilustrativo: apesar de o fiscal ser um dos principais temas do risco doméstico, ele está de passageiro enquanto o ambiente global permanecer benigno. O ambiente fiscal brasileiro é desafiador por definição. Temos um ajuste muito baseado em aumento de receitas, as medidas implementadas até agora ainda não mostram isso e uma possível desaceleração da economia pode levar a queda da arrecadação. Ou seja, a perspectiva de que haverá uma revisão da meta do resultado primário em algum momento desse primeiro trimestre parece bastante compatível. Dito isso, comparativamente, existem outras economias que estão tendo desempenho fiscal significativamente pior do que o brasileiro, o que justifica parte do fato de que o mercado fica um pouco mais leniente com a situação fiscal doméstica.
Fonte: Valor Econômico

