Economista está pouco otimista com possibilidade de conclusão do acordo entre bloco sul-americano e União Europeia
Por Rafael Rosas e Francisco Góes — Do Rio
A vitória de Javier Milei na Argentina vai jogar mais pressão sobre o Brasil no Mercosul, diz a economista Sandra Rios, diretora do Centro de Estudos de Integração e Desenvolvimento (Cindes). A tendência, afirma, é que Milei se alie a Luis Alberto Lacalle Pou, presidente do Uruguai, que tenta há tempos uma mudança de regras: “O bloco vai ficar mais fragmentado do que está, e isso tende a levar a uma paralisação [do Mercosul]”. Rios disse ainda estar pouco otimista com a conclusão do acordo Mercosul-União Europeia. A seguir os principais pontos da entrevista ao Valor:
Valor: Com a vitória de Milei, aumenta a pressão no Mercosul pela flexibilização de regras?
Sandra Rios: No governo [Jair] Bolsonaro, havia no Ministério da Economia um núcleo que era a favor da flexibilização da União Aduaneira [do Mercosul], que queria fazer uma reforma da TEC [Tarifa Externa Comum, aplicada à importação de terceiros países] para reduzir as tarifas e enfrentava resistência no Brasil pelos lobbies setoriais, mas também na Argentina. Agora, no Brasil, o governo Lula considera o Mercosul um instrumento de política externa importante, uma vez que passa a ideia de que vamos negociar juntos, o que aumenta o poder de barganha. Mas há um problema de descompasso entre as visões da direita e da esquerda nos nossos países.
Valor: Mas a vitória de Milei na Argentina muda o Mercosul?
Rios: Milei vai encontrar em Lacalle Pou [Luis Alberto, presidente do Uruguai] um aliado para pressionar a União Aduaneira do Mercosul, mas enfrentará resistências domésticas entre os lobbies da indústria, que vão continuar insistindo na manutenção da TEC, refratários a negociações com terceiros que signifiquem redução da proteção ou alguma ameaça ao setor industrial. Milei tem agenda vasta de problemas para enfrentar. Não creio que vá conseguir fazer movimentos drásticos em relação a essa agenda [do Mercosul] porque tem outras batalhas mais urgentes. Mas deve ser menos conivente com demandas eventuais de aumentar a proteção no bloco.
Valor: O Brasil pode ficar mais isolado no debate do Mercosul?
Rios: Haverá maior dificuldade do governo Lula aprovar no bloco posições que tenham a ver com reforço de instituições como o Unasul, e de estratégias que são importantes para os governos do PT, mas que vão encontrar resistência, não só de Lacalle Pou, mas também de Milei. Essa configuração vai levar a mais estagnação do Mercosul, porque haverá menos possibilidades de acordos, de convergência. O bloco vai ficar mais fragmentado do que está, e isso tende a levar a uma paralisação [do Mercosul].
Valor: E a senhora vê saída?
Rios: A saída seria o governo Lula adotar postura mais pragmática para evitar a derrocada do Mercosul. Talvez seja necessário ceder em algumas coisas, conceder a possibilidade de os países negociarem acordos em separado, flexibilizar a União Aduaneira. Eu esperaria pragmatismo do lado argentino em relação ao Mercosul. A melhor estratégia para o Brasil é uma certa paciência estratégica. O Brasil teve essa postura com os governos kirchneristas e com os arroubos protecionistas da Argentina. Agora vai precisar ter paciência estratégica com eventuais arroubos liberais, que devem ficar mais no âmbito da retórica que na implementação.
Valor: E a flexibilização da TEC?
Rios: O Brasil fez, no fim de 2021 e no primeiro semestre de 2022, dois movimentos de redução de 10% da tarifa de importação para um conjunto de produtos. Na época, o país recorreu a medidas de caráter excepcional para implementar de forma unilateral. O Brasil recorreu a um artigo da Aladi [Associação Latino-Americana de Integração], que foi o mesmo artigo ao qual se fez menção na covid-19, para reduzir tarifas de importação de equipamentos de proteção e medicamentos. Mas não houve flexibilização do Mercosul.
Se Milei quer avançar na liberalização, deveria fechar o acordo com a União Europeia”
— Sandra Rios
Valor: A TEC média do Mercosul está abaixo dos 13%?
Rios: No Brasil, está perto de 11%. No Mercosul, continua perto de 13% porque tem muitos setores que foram excetuados dessas reduções, inclusive no Brasil: automotivo, confecções, calçados, móveis. Há muita exceção.
Valor: E o que está na mesa na Cúpula do Mercosul em dezembro?
Rios: A discussão está dominada pela tentativa de concluir o acordo com a União Europeia.
Valor: Como a eleição do Milei influencia a expectativa de fechamento do acordo com a UE?
Rios: Há pontos importantes em aberto e pouco tempo nessa última janela de oportunidade que se encerra agora no fim do ano porque acaba a presidência espanhola, e ano que vem há diversas eleições na União Europeia. Houve demora do lado do Mercosul para responder à proposta de documento adicional que a União Europeia apresentou sobre o capítulo de comércio e desenvolvimento sustentável. Não sou otimista de que seja possível concluir o acordo, independentemente de Milei. Se ele quer avançar na liberalização comercial, deveria fechar o acordo. Por outro lado, fechar o acordo com a União Europeia o amarra mais ao Mercosul.
Valor: O que falta?
Rios: No governo Bolsonaro, se anunciou o que chamaram de acordo em princípio e disseram que faltavam detalhes a serem negociados, faltava a revisão legal do texto, a tradução para os diversos idiomas oficiais da União Europeia para que então fosse assinado pelas partes e enviado aos parlamentos. Passou o tempo, houve resistências, oposição na Europa à conclusão do acordo em função das questões ambientais no Brasil. E no ano passado os europeus vieram com a ideia do instrumento adicional, procurando aprofundar o entendimento, a interpretação dos compromissos na área ambiental.
Valor: Que Lula criticou…
Rios: Quando o documento foi entregue, o governo Lula criticou. No Cindes, a leitura é que o documento aprofunda o entendimento que já estava negociado no texto de acordo, no capítulo de comércio e desenvolvimento sustentável. Traz um ou dois pontos que mereceriam discussão porque podem avançar mais em relação ao que estava escrito. Mas não é que o documento adicional fosse um problema. O que aconteceu é que nesse período recente a União Europeia adotou legislações que afetam os interesses dos exportadores brasileiros, a regulação anti-desmatamento, que entrou em vigência em outubro e determina que não poderão ingressar na União Europeia produtos que provenham de zonas desmatadas a partir de 2020.
Valor: Qual é o efeito?
Rios: Isso vai além do Código Florestal Brasileiro, que define o que é que é desmatamento ilegal, mas que não significa desmatamento zero. É uma regulação unilateral da União Europeia.
Fonte: Valor Econômico