Por Katie Martin — Financial Times
25/07/2022 05h02 Atualizado há 39 minutos
A era dourada da inflação baixa e dos rendimentos dos títulos em queda suave deu ares de gênio a muitos investidores insípidos que apenas recorriam a índices básicos do mercado acionário. Agora, começamos a ver como ela também deu ares de super-herói às autoridades monetárias.
Leve a memória de volta a julho de 2012. O mercado de bônus governamentais da região do euro estava uma bagunça, com a Grécia no centro e suas ondas de choque reverberando em quaisquer outros países-membros vistos como instáveis em termos fiscais. Pessoas normalmente moderadas e pouco afeitas a exageros começavam a se perguntar se a moeda comum poderia sobreviver intacta à crise.
Entra em cena Mario Draghi, o então ainda novo presidente do Banco Central Europeu (BCE). Em viagem a Londres, ele proferiu uma frase agora célebre, a de que ele e o BCE fariam “o que fosse preciso” para salvar o euro.
Essas pequenas palavras foram suficientes para apagar o incêndio. Claro, o caminho à frente era acidentado, mas o mercado confiava no ex-executivo de banco de investimento do Goldman Sachs, que tinha certo jeito com as palavras e um talento especial para fazer operadores e investidores agirem como ele queria. O momento tornou-se motivo de lenda na política monetária.
Agora, mais uma vez, temos preocupações com os mercados da região do euro. Até agora, é um assunto mais contido, provocado, ironicamente, pela renúncia de Draghi a seu cargo seguinte, o de primeiro-ministro da Itália. O período prévio a sua saída enfraqueceu os títulos públicos italianos e ampliou a diferença entre o rendimento deles e o dos alemães, levando o BCE a se preocupar com o que chamou de “fragmentação”.
Horas depois de deixar o cargo de primeiro-ministro, a sucessora dele no BCE, Christine Lagarde, fez sua própria grande jogada: o primeiro aumento nas taxas referenciais de juros pela autoridade em 11 anos – um salto histórico de meio ponto porcentual -, para conter a inflação desenfreada.
Além disso, para combater a fragmentação, ela anunciou a criação do Instrumento de Proteção contra Transmissões (TPI, na sigla em inglês), um esquema para ajudar qualquer Estado-membro do euro (leia-se: Itália) a combater casos injustificados de instabilidade no mercado. “O BCE é capaz de agir grande” nessa frente, diz Lagarde.
A reação do mercado foi rápida, mas foi de um polegar virado para baixo. De início, o euro até chegou a dar um salto. O preço dos títulos italianos subiu. No entanto, quanto mais Lagarde falava sobre como o TPI funcionaria, mais essas variações se invertiam.
“O plano de manipulação do mercado de títulos é ‘fazemos o que queremos, quando queremos’”, foi a avaliação irônica de Paul Donovan, economista-chefe do UBS Global Wealth Management. “As condições são determinadas pelo BCE, deixando a manipulação do mercado correr solta, sem avaliação objetiva. O plano traz emoção à vida, de outra forma monótona, dos operadores de títulos, criando uma caça ao tesouro para descobrir os níveis de intervenção do BCE.”
Lagarde cometeu alguns deslizes de alta visibilidade no passado, principalmente quando indicou no início da crise da covid que não daria sustentação ao mercado de títulos, uma mensagem confusa, pela qual logo se desculpou.
Agora, graças em parte a esse plano, parece que o verão europeu será marcado por uma fragilidade ainda maior do euro e, possivelmente, também por um ataque aos títulos italianos. A diferença entre os rendimentos dos bônus de dez anos da Itália e da Alemanha já subiu para cerca de 2,4 pontos percentuais, dolorosamente próxima ao que se entende como zona de perigo, de 2,5 pontos.
Na aparência, trata-se de outro passo em falso. Mas seria injusto dizer isso. O problema aqui não são as pessoas, e sim a força que está abalando os mercados em todo o mundo: a inflação.
“Chegará o momento em que o BCE será testado com mais seriedade”, diz Sonja Laud, diretora de investimentos da LGIM em Londres. “Vamos precisar de algo equivalente a um momento ‘o que for preciso’. Mas Draghi só conseguiu fazer isso no contexto de uma inflação muito mais baixa.”
Draghi foi capaz de dizer efetivamente “confiem em mim, vou despejar dinheiro e flexibilização monetária em cima desse problema; peçam detalhes depois”. Lagarde não conta com a mesma margem de manobra.
A inflação anual mal girava acima de zero quando Draghi fez uso de seu feitiço, há dez anos. Agora, está em 8,6%. A tarefa de Lagarde é reduzi-la a 2%.
Além disso, o TPI (não confundir com o teste médico de mesmo nome de diagnóstico da sífilis, nem com a TPI Europe, firma que faz medidores de vibração de máquinas) tem suas restrições. Os países aptos a usá-lo devem ser capazes de demonstrar, entre outros atributos, sustentabilidade fiscal e políticas macroeconômicas sólidas.
Trata-se de uma tarefa complicada quando a Itália não tem mais um primeiro-ministro. E, se o mercado realmente acreditar nisso, não está claro com que rapidez o TPI poderia ser colocado em prática para ajudar.
“Acreditamos que a ambiguidade do BCE decepcionou as expectativas do mercado”, diz Vasileios Gkionakis, chefe de estratégia para moedas do G-10 no Citigroup. Continue vendendo euros, ele aconselha.
Tudo isso serve para colocar em evidência como as autoridades monetárias atuais simplesmente não são mais capazes de chegar com a cavalaria para socorrer o mercado com o “escudo” do banco central, da maneira que todos davam como certa no passado, seja para ajudar a mitigar os ataques de nervos do mercado ou para proteger os países de situações de estresse.
“Dávamos a inflação baixa como algo garantido”, diz Laud. “A inflação mudou a narrativa muito profundamente. A remoção do escudo do banco central mudou os mercados muito profundamente.”
Fonte: Valor Econômico

