Junto às discussões sobre as dificuldades que bancos centrais pelo mundo enfrentam no “segundo estágio” do processo desinflacionário, as preocupações em torno do impacto de políticas fiscais expansionistas sobre a política monetária também têm se tornado um tema globalmente importante. O fato, no entanto, de que outros países enfrentam situações fiscais difíceis não permite ao Brasil ter complacência nessa área, alerta o chefe global de pesquisa macroeconômica do BNP Paribas Marcelo Carvalho, em entrevista ao Valor.
“Os mercados, até agora, têm sido relativamente tolerantes, mas não quer dizer que serão sempre assim. O mercado perdoa, mas não esquece”, enfatiza. O fiscal, diz, pode voltar a ser um tema central mais cedo do que o governo gostaria. “A gente tem de cuidar aqui do nosso quintal e fazer a coisa certa”, afirma Carvalho, ao citar a necessidade futura, por exemplo, de uma nova reforma da Previdência e de uma reforma administrativa.
Contar com a inflação para fazer ajuste fiscal, nota o economista, não costuma ser uma boa ideia, até porque as expectativas também se deslocam quando o mercado deixa de acreditar nas metas de inflação.
Em passagem pelo Brasil na semana que passou, o economista disse não acreditar que o país esteja em uma situação de espiral de inflação de salários, caminhando rapidamente para um cenário em que não há mais credibilidade monetária. “Tem, sim, um esforço para trazer a inflação para a meta.”
Apesar disso, Carvalho considerou confusa a comunicação do Comitê de Política Monetária (Copom) do Banco Central na sua decisão da semana passada, em que cinco membros votaram por reduzir o ritmo de cortes na Selic para 0,25 ponto percentual e saíram vencedores. “O texto do comunicado foi duro, mais duro do que se imaginava, mas sugeriu uma dificuldade de se achar a consistência entre os quatros membros do Copom que votaram por um corte de 50 pontos-base [0,50 ponto percentual] e o comunicado duro”, observa o economista.
Leia a seguir os principais trechos da entrevista.
Valor: O BNP Paribas já teve uma visão mais construtiva para o cenário externo, pensando em política monetária. Isso mudou?
Marcelo Carvalho: O cenário, hoje, está um pouco mais cauteloso em relação ao que os bancos centrais no mundo vão fazer, ainda que em um contexto de que o próximo movimento de juros, na maioria dos países avançados, é de queda – exceto no Japão. O que a gente discute são as nuances: quando vai acontecer, com qual intensidade, em qual ritmo… É, sim, um cenário de cortes, porém, menos ambiciosos do que se imaginava até pouco tempo atrás. O contexto global tem três grandes temas e uma palavra para resumir cada um deles: para o crescimento, resiliência; para a inflação, persistência; e, para os juros, a palavra-chave é cautela.
Valor: Pode destrinchar um pouco mais cada um desses pontos?
Carvalho: No cenário de atividade, o que temos visto é um mundo crescendo mais do que se imaginava, especialmente nos Estados Unidos. Na Europa, também vemos sinais muito encorajadores, de recuperação depois de um período de estagnação. E o terceiro grande bloco da economia mundial, que é a China, está indo melhor do que se imaginava, sempre no contexto de que tem um monte de desafio por lá. Mas tem uma distinção importante entre EUA e Europa.
Valor: Qual?
Carvalho: O ponto de partida dos EUA é o de uma economia que vinha crescendo acima do potencial e, talvez, tenha uma desaceleração. É uma ‘convergência por cima’. A economia europeia vai convergir para o crescimento potencial vindo de baixo. Isso tem implicações para a inflação, que é o meu segundo ponto. Se você está vindo de uma economia superaquecida, com pouca folga, a inflação é mais pressionada. Se você está vindo de uma economia menos aquecida, com mais folga, a inflação é menos pressionada. Isso ajuda a entender por que os cenários de inflação nos EUA e na Europa estão começando a divergir. A palavra que resume a inflação global é persistência porque vemos a inflação caindo em dois estágios. O primeiro foi mais fácil. Esse segundo, a tal “última milha” de que se fala nos EUA, é mais difícil. Gosto de usar outra analogia. Trazer a inflação para a meta é como apertar pasta de dente; é relativamente fácil no começo e vai ficando mais difícil no fim. De qualquer forma, eu acho que, na corrida desinflacionária, a “última milha” americana é mais longa do que o último quilômetro europeu.
Os mercados, até agora, têm sido relativamente tolerantes [com o fiscal], mas não quer dizer que serão sempre assim”
Valor: E qual é a implicação disso para o seu terceiro ponto, dos juros?
Carvalho: É por isso que a gente acha que o argumento para uma queda de juros na Europa é mais convincente, hoje, do que o argumento para uma queda de juros nos Estados Unidos.
Valor: Mesmo com a reaceleração da economia europeia?
Carvalho: Sim, porque o ponto de partida, como eu falei, é diferente. Mas, como eu disse também, a palavra que resume a história dos juros é cautela, com diferentes intensidades no mundo.
Valor: O Banco Central Europeu (BCE) é menos dependente das decisões do Fed do que o nosso Banco Central, no Brasil?
Carvalho: Todo mundo, em menor ou maior grau, tem de prestar atenção no que o Fed está fazendo, porque é o banco central mais importante do mundo, então, afeta a todos. Dito isso, a gente acha, sim, que o BCE começa a cortar o juro antes do Fed – o que, aliás, não é comum – e corta mais neste ano. Achamos que o BCE começa a reduzir o juro em junho e corta três vezes [de 0,25 ponto percentual]. Já o Fed, achamos que, dificilmente, ele corta o juro antes de dezembro. Os dados recentes não permitem ao Fed ter a confiança necessária para iniciar o corte de juros tão cedo. Com essa dinâmica diferente, vemos algumas coisas acontecendo.
Valor: Quais?
Carvalho: Primeiro, a curva de juros americana se ajustou, e ela tem impacto nas curvas de juros no mundo, inclusive no Brasil. O outro canal de transmissão é o câmbio. Economia dos EUA forte e com juros altos é receita para dólar americano forte. Esses dois canais, o dos juros e o do câmbio, fazem os bancos centrais pensarem duas vezes antes de cortar juros. Mas, em última instância, o mandato dos bancos centrais é a inflação doméstica, se ela está suficientemente caminhando em direção à meta. Isso vale para o Copom também, tanto que, lá atrás, o BC, como outros bancos centrais de países emergentes, começou a subir juros antes e, portanto, também foi capaz de ser um dos primeiros a voltar a cortar. É claro que tudo tem limite, e o canal de transmissão é, principalmente, o câmbio.
Valor: Em que sentido?
Carvalho: Uma desvalorização cambial no mundo tende a alimentar o processo de inflação. Se você está tentando combater a inflação e o câmbio está mais pressionado, complica a sua capacidade de cortar juros. Isso vale para o Copom, vale para o BCE… E há um tema também que tem se tornado globalmente importante, que é o impacto da política fiscal sobre a política monetária. O que a gente vê na política fiscal é uma mudança de regime desde a pandemia. Dá para entender isso; o problema dessas políticas expansionistas é quando elas duram mais do que deviam. A maioria dos países do mundo se encaixa nesse modelo. Se a gente tiver de contar com a inflação para resolver isso, estamos em maus lençóis. E mesmo isso funciona uma vez, porque, depois, as expectativas de inflação também se deslocam, já que o mercado pensa que as metas não são para valer.
Não acho que o Brasil esteja caminhando para um cenário em que não há mais credibilidade monetária”
Valor: Isso não é um pouco o que está acontecendo agora no Brasil?
Carvalho: Acho que a gente ainda não está nessa situação. É verdade que as expectativas de inflação não estão ancoradas na meta e o próprio Copom escreveu isso explicitamente. Tem de ancorar. Mas não é também uma desancoragem total, de estarmos em um ciclo de espiral de inflação salarial. Não acho que o Brasil esteja caminhando rapidamente para um cenário em que não há mais credibilidade monetária. Tem, sim, um esforço para trazer a inflação para a meta. Mas, voltando à questão fiscal, pensando nos próximos anos, tem um monte de pressão contratada para os governos. A conclusão é que a pressão sobre o fiscal, provavelmente, veio para ficar, e, quanto mais expansionista é a política fiscal, menos expansionista consegue ser a política monetária. Isso vale para todo mundo, para o Brasil também. O próprio Copom já disse isso. Uma das preocupações que ele revelou foi com o fiscal, compreensivelmente, porque o quadro não sugere que a estabilidade da dívida/PIB está garantida.
Valor: Qual é o nível de preocupação do investidor estrangeiro com isso no caso do Brasil?
Carvalho: Realmente, a piora do quadro fiscal é uma realidade que ultrapassa as fronteiras do Brasil. É uma preocupação em vários países do mundo, inclusive nos Estados Unidos, na Europa, no Japão… Nesse contexto global, é verdade que o Brasil não parece tão ruim assim na foto. Isso dito, o fato de outros países estarem enfrentando situações fiscais difíceis não nos permite ter complacência nessa área. Os mercados, até agora, têm sido relativamente tolerantes, mas não quer dizer que serão sempre assim. O mercado perdoa, mas não esquece. Isso pode voltar a ser um tema mais cedo, talvez, do que os governos gostariam. A gente tem de cuidar do nosso quintal e fazer a coisa certa.
Valor: E estamos fazendo?
Carvalho: Eu acho que tem mais para ser feito. Quando eu olho as contas do governo, eu vejo duas grandes pressões sobre o gasto. Uma é a Previdência. Já houve uma reforma – várias, na verdade -, não acho que será a última. O outro grande gasto do governo é com folha de pagamento, o que me leva a pensar que uma reforma administrativa poderia trazer ganhos importantes. De eficiência, pelo menos. Além disso, como em qualquer país do mundo, a questão chave para o crescimento é a produtividade. Para isso, é preciso investir em capital humano, força de trabalho bem qualificada, educação e também em infraestrutura física adequada, de rodovias, aeroportos. Estamos avançando, houve privatizações e concessões, mas ainda tem muito para ser feito.
Valor: Em relação à política monetária, o que achou da última decisão do Copom?
Carvalho: Foi uma decisão que confirmou o que a maioria do mercado esperava, inclusive a gente, de um corte de 25 pontos-base [0,25 ponto percentual]. A decisão dividida surpreendeu. Acho que o texto do comunicado foi duro, mais duro do que se imaginava, mas sugeriu uma dificuldade de se achar a consistência entre os quatros membros do Copom que votaram por um corte de 50 pontos-base [0,50 ponto] e o comunicado duro.
Valor: Não pareceu confuso?
Carvalho: Eu achei, para ser sincero. Eles concordam com a avaliação de que o cenário doméstico e externo está mais desafiador, mas dão 50 pontos-base… Como? No mercado, ficou essa percepção, sim, de uma certa inconsistência. Dá a impressão de que ou a opinião daqueles que queriam 50 pontos-base não foi totalmente incorporada no texto ou tem alguma coisa ali que não está muito bem explicada. Em resumo, eu acho que a comunicação não foi ótima, podia ser melhor. Acho que a ata vai ser lida com pente fino para entender melhor essa aparente dicotomia. Mas, dando um passo para trás, se é 50 ou 25 pontos-base, é mais um detalhe de ajuste fino no percurso. Eu acho que não muda o quadro geral de que o BC, provavelmente, deve cortar a Selic mais algumas vezes. Mas o ritmo agora, claramente, é de 25 pontos-base.
fonte: valor econômico

