Os juros altos e as incertezas macroeconômicas em 2023 foram um duro golpe para o segmento de venture capital, e o Brasil teve o segundo ano seguido de queda nos investimentos em startups. Levantamento feito para o Valor pela Sling Hub, plataforma de inteligência de dados do setor, mostra que, no ano passado, o recuo foi de 39%, melhor que a América Latina (-41%).
Com a trava nos negócios, segundo relatório da KPMG, há hoje no mundo US$ 111 bilhões de investidores já comprometidos com gestoras, mas que estão aguardando a chamada de capital para ser alocados em startups. Daniel Malandrin, sócio-líder de venture capital e inovação da consultoria, explica que o aumento na aversão a risco elevou a seletividade de gestores e investidores, que hoje preferem empresas maiores, com capacidade comprovada de gerar lucros. E, para 2024 o cenário deve se manter difícil, com muitas startups em dificuldades e os donos do dinheiro ainda retraídos.
“A curva de empresas iniciantes quebrando porque não conseguiram captar recursos ainda será ascendente em 2024”, diz.
Até agora, não há certeza sobre o início do processo de afrouxamento monetário nos Estados Unidos, fator importante para dar força a esse mercado.
Pesquisa da plataforma de inovação Distrito, divulgada em dezembro, identificou que 60% dos gestores de fundos de venture capital só esperam retomada das atividades do setor nos níveis anteriores à crise em prazo acima de 18 meses.
Oscar Decotelli, CEO da DXA Invest, que tem R$ 1 bilhão em fundos que investem em “growth equity”, uma espécie de meio do caminho entre venture capital e private equity, vê as empresas que sobreviveram a 2023 entrarem 2024 mais fortes, após cortarem custos e melhorarem a eficiência. Ele afirma que, para cada real de que precisavam no início do ano passado, agora apenas R$ 0,30 são necessários. Mas acredita que somente no segundo semestre o investidor voltará a ter mais interesse em investimentos em empresas tanto iniciantes quanto já estabelecidas.
Para Decotelli, as incertezas no cenário externo e no doméstico tiveram um peso maior na tomada de decisão dos investidores. Nos Estados Unidos, a expectativa era que a inflação cederia diante da forte elevação dos juros, mas vários sinais de força da economia foram levando as expectativas de cortes nas taxas mais para longe. No Brasil, havia temores em relação à política fiscal, que acabaram diminuindo após medidas do governo. “Em 2022 nossos juros já estavam altos e, mesmo assim, tivemos fluxo grande para startups”, pondera. Segundo ele, 2023 foi o ano do “duplo negativo”: as empresas não venderam seus produtos nem levantaram capital para financiar suas operações. “Foi o ano mais difícil dos últimos dez anos.”
Outro fator de impacto foi a crise de crédito no início do ano passado, pós- Americanas e Light, que encareceu e levou a fortes quedas nas captações via mercado de capitais e nas concessões de empréstimos bancários. “Empresas pequenas com produtos inovadores esperavam no início do ano ter capital para crescer ou manter suas operações saudáveis e não levantaram funding”, diz Decotelli.
A pesquisa da Distrito mostra que 35,7% dos gestores tiveram operações negativamente afetadas pela crise, enquanto 11,1% afirmam que aproveitaram oportunidades como a compra de ativos a preços descontados. “As gestoras que conseguiram captar nos últimos dois anos estão no melhor momento de negociação com boas startups em busca de capital para crescimento”, afirma Malandrin, da KPMG. Para o segmento se recuperar, observa, é preciso que os investidores percebam que o prêmio de risco do venture capital é no mínimo suficiente.
/i.s3.glbimg.com/v1/AUTH_63b422c2caee4269b8b34177e8876b93/internal_photos/bs/2024/e/Y/Aj1ZY1QkegSY2HYVl1Xg/arte16fin-102-venture-c1.jpg)
O executivo da KPMG explica que a alta dos juros espalhada em vários países foi uma mudança macroeconômica relevante, que em dez anos de venture capital não havia sido vista. “Até 2022, o ganho de produtividade das startups era tão explosivo que não afetava os investimentos. Tínhamos excesso de capital. A tese era crescer a qualquer custo e depois atingir a rentabilidade.” Agora, comenta, há pressão por resultado diante da competição com os juros americanos: antes, a estimativa de retorno de investimentos em venture capital era de 12 % ao ano em dólar; com a taxa básica dos EUA a 5%, o diferencial caiu para 7%.
Dados da Associação Brasileira de Private Equity e Venture Capital (ABVCAP) mostram que, isoladamente, o terceiro trimestre de 2023 mostrou alguma recuperação, com fundos de venture capital investindo R$ 1,9 bilhão em 62 rodadas, valor 19% superior ao R$ 1,6 bilhão de abril a junho do ano passado. O número de operações, no entanto, caiu 16%. Já em relação ao terceiro trimestre de 2022, o valor investido diminuiu 29,6% e o total de transações, 66%.
Malandrin diz que esse movimento inversamente proporcional entre total investido e número de operações é explicado pela maior seletividade, ou seja, mais dinheiro para menos startups – as maiores e já no caminho da lucratividade. De acordo com ele, porém, não é uma mudança estrutural, e sim cíclica, uma espécie de memória que pode ser perdida no futuro, com a chegada de novas tecnologias e gestores. “Mesmo assim, é um momento de aprendizado para toda a indústria.”
No mundo, conforme dados da KPMG, o volume global de transações caiu para um nível não visto desde o quarto trimestre de 2018 – de US$ 81,4 bilhões em 9.563 transações no segundo trimestre de 2023 para US$ 77,05 bilhões em 7.434 transações no terceiro trimestre. Foi um recuo de 5,35% em valor e de 23% em número de negócios.
No Brasil, o segmento que mais atraiu investimentos em 2023 foi o de fintechs. Segundo o levantamento da Sling Hub, 54% das transações feitas no país foram com empresas do setor. A fatia em 2021 havia sido de 43% e, em 2022, de 45%. João Ventura, fundador e CEO da Sling Hub, diz que grandes rodadas vistas no ano puxaram essa participação.
Ele cita o caso da fintech Meutudo, que anunciou a estruturação de um novo Fundo de Investimento em Direitos Creditórios (FIDC), com gestão e administração da BTG Pactual Asset, no montante de R$ 2 bilhões, destinados a crédito consignado do INSS. E do investimento de US$ 466 milhões do Citi no Mercado Pago, que com o dinheiro pretende expandir suas operações de crédito no Brasil e no México. “Não víamos operações desse tamanho há algum tempo”, diz Ventura. De acordo com dados da KPMG, o Brasil tem hoje 13,3 mil startups ativas, sendo que 11% são fintechs.
Fonte: Valor Econômico

