Por Arthur Cagliari — De São Paulo
18/08/2023 05h03 Atualizado há uma hora
A aposta em moedas que se beneficiaram de juros elevados na primeira metade do ano foi triunfante e consagrou, em especial, divisas da América Latina, como o real. O início de ciclos de redução dos juros na região, porém, ameaça gerar uma mudança na estratégia dos agentes financeiros, o que pode pôr fim ao período de bonança nos mercados de câmbio desses países. No Brasil, com o primeiro corte na Selic já consumado, os fundamentos da economia, em especial no âmbito fiscal, e o cenário externo devem ter cada vez mais peso para o desempenho do real.
A incerteza relativa à performance do câmbio doméstico decorre do início de uma redução do carrego (“carry”), operação em que o investidor toma dinheiro emprestado em um país e aplica em outro com juros mais altos para ganhar na diferença entre as taxas de juros.
Enquanto no Brasil e no Chile há, em curso, um ciclo de flexibilização monetária, nos países desenvolvidos, em particular nos Estados Unidos, o mercado convive com uma indefinição sobre o fim do processo de aperto monetário. Ou seja, a Selic está começando a cair enquanto as taxas americanas ainda podem subir.
Além disso, a pressão de alta observada recentemente nas taxas dos Treasuries tem se refletido em um diferencial de juros ainda menor, o que resulta na apreciação global do dólar.
“Não é só o carrego do diferencial de juros que explica a performance de uma moeda. Há fatores fundamentais, como os fluxos comercial e financeiro e a evolução da dívida pública”, diz o diretor de investimentos (CIO) da Garde Asset, Carlos Calabresi. “O colchão do carrego do real perde, agora, parte do tamanho, ainda que permaneça entre os mais atrativos.”
Nos cálculos de Calabresi, o diferencial de juros entre Brasil e Estados Unidos caiu de 11,5% no começo do ano para algo em torno de 4,5%, ao se considerar o spread entre a taxa pré-fixada e o cupom cambial de um ano. “Essa redução acelerada ocorreu porque, ao mesmo tempo em que tínhamos perspectiva de corte de juros por aqui, havia expectativa de alta nos juros dos EUA. As duas taxas, portanto, caminharam em direções opostas, estreitando o carrego”, afirma.
Mas o patamar da taxa de juro, por si só, não basta para tornar atrativa a estratégia do carrego. Ainda segundo Calabresi, nesse tipo de aplicações, o investidor vai se posicionar de acordo não só com o diferencial de juros, mas também com a movimentação da divisa. “Se a volatilidade da moeda com carrego for muito alta, o sharpe [que avalia o retorno e o risco de um investimento] pode piorar.”
A volatilidade implícita para um mês do real esteve em torno de 20% (o que é considerado alto para o padrão da moeda brasileira) no começo deste ano, enquanto mais recentemente rondava os 14%, explica o economista-chefe do Banco Fibra, Marco Maciel. Para ele, a tendência é que a taxa de câmbio se afaste do período de volatilidade mais baixa observado nos últimos meses, ainda que isso ocorra de forma gradual.
Vimos redução no prêmio de risco. Mas ainda há questões acerca da dívida pública” — Jankiel Santos
“Não acredito que, em um primeiro momento, a volatilidade retorne para a casa dos 20%, mas deve buscar algo entre 16% e 18%”, afirma Maciel. “Mais para o fim do ano, vai ficar dependente da execução fiscal. Se o [ministro da Fazenda, Fernando] Haddad entregar um déficit mais perto de 1% do PIB, sem um controle de despesas, podemos ver a volatilidade chegar mais perto de 20%.”
As mesmas dúvidas em relação à execução do plano fiscal são mencionadas pelo economista sênior do Santander, Jankiel Santos, como um peso nos fundamentos para uma apreciação adicional do real neste segundo semestre. “Do começo do ano para cá vimos melhora, com redução no prêmio de risco. Mas ainda há questões acerca da dívida pública, principalmente do lado da geração de receitas, que é o necessário para fazer o arcabouço fiscal ficar de pé.”
Além disso, o economista do Santander diz que a decisão não unânime do Comitê de Política Monetária (Copom) na última reunião do colegiado – quando a taxa Selic foi reduzida de 13,75% para 13,25% ao ano – deixa o investidor com a pulga atrás da orelha sobre uma possível aceleração nos cortes da taxa Selic à frente. “Logicamente, após essa divisão, o mercado fica em dúvida se o diferencial de juros não pode fechar [diminuir] muito mais rápido do que o projetado e, portanto, pode tornar a moeda menos atrativa.”
A diferença do perfil dos governos, dos fundamentos e da própria composição do Banco Central dificulta a busca por um padrão no desempenho do real em momentos de flexibilização da política monetária. Por exemplo, de junho de 2011 a outubro de 2012, quando a Selic saiu de 12,5% e foi para 7,25%, o dólar registrou valorização frente ao real de 30%, enquanto de julho de 2016 a março de 2018, com a taxa básica caindo de 14,25% para 6,5%, a moeda americana teve apreciação de 0,7%.
Essa diferença deixa claro que o carrego, sozinho, não conta toda a história do desempenho de uma moeda. Por isso, Roberto Motta, analista macro da Genial Investimentos, reforça a importância de que os fundamentos da economia sejam observados. “No período de queda de juros de 2016 a 2018, tivemos uma política de contração fiscal por conta do teto de gastos que tinha efeito. Não é à toa que a Selic veio a 6,5% e o Tesouro Nacional chegou a emitir papéis para 2050 em IPCA+3%. Hoje está em 5,5%”, afirma. “Foi um sinal de que o Brasil estava ficando sério e estava cuidando das contas públicas.”
Motta diz que o cenário hoje é diferente. “Temos um quadro fiscal expansionista, com chances de aumentar o gasto real em torno de 6%. Se compararmos, os fundamentos agora têm uma cara pior do que tinham durante o período em que o Ilan [Goldfajn] esteve à frente do Banco Central, com uma política ortodoxa, e com o Michel Temer na presidência, com uma série de reformas econômicas.”
Não bastassem os fatores domésticos, há ainda possíveis ventos desfavoráveis vindos do exterior que podem refletir no carrego da moeda brasileira. Os rendimentos dos títulos do Tesouro americano, principalmente os mais longos, dispararam em agosto, em meio a grandes leilões de títulos e à percepção de que a economia americana continua forte.
Além disso, o Federal Reserve (Fed, banco central dos EUA) não cravou o fim do ciclo de aperto monetário e há apostas entre os agentes sobre novas altas nos juros americanos. O dólar comercial já se valoriza 5,34% frente ao real neste mês, enquanto a aposta do investidor estrangeiro em dólar contra o real nos mercados de derivativos está perto das máximas históricas, acima de US$ 50 bilhões.
“Se o Fed elevar mais os juros, veremos o diferencial se afunilar mais rápido. Porque não há sinal de que o BC aqui vá parar se os Estados Unidos apertarem mais a política”, diz Santos, do Santander.
Outro fator externo que pode pesar nas negociações de carrego das moedas é a mudança da postura do Banco do Japão (BoJ). A autoridade monetária japonesa decidiu recentemente flexibilizar sua intervenção na curva de juros do país, em um primeiro sinal “hawkish” em anos. “Muitos investidores usavam o Japão como ‘funding’ no passado, captando dinheiro com juros negativos e aplicando em outros países e moedas com carrego”, explica Santos, do Santander. “Agora, se esse financiamento ficar mais caro, o investidor vai pensar duas vezes onde irá alocar seu dinheiro”, diz. “Estamos vendo agora destinos até então não muito atrativos para o investidor se tornando interessantes.”
Fonte: Valor Econômico

