O elo do crime organizado com o sistema financeiro e o mercado de capitais revelou algumas brechas de conduta que permitiram ao Primeiro Comando da Capital (PCC) se engendrar na economia formal. As duas operações simultâneas deflagradas ontem pela Polícia Federal, com o apoio da Receita Federal mostraram que falta visibilidade sobre procedimentos e responsabilidades, em especial na administração de fundos.
Pela regulação do sistema financeiro nacional e do mercado de capitais brasileiro, tanto gestoras de recursos quanto administradoras de fundos têm que cumprir, tal qual os bancos e fintechs, requisitos de conformidade (compliance) previstos no questionário “know your client” (KYC, conheça o seu cliente). O objetivo é justamente fazer a diligência dos clientes até o beneficiário final, avaliar risco reputacional e suspeitas de lavagem de dinheiro.
Não significa que administradores que têm o dever fiduciário de controlar essas carteiras estejam envolvidos diretamente no uso de fundos para fins ilícitos, mas é responsabilidade deles fazer esse tipo de pesquisa, diz um advogado especializado na “cozinha” do setor de fundos. “A chance de não ter feito direito é enorme, porque em alguns casos, o ‘business’ é tomar risco que outros não tomariam. Não é que esteja envolvido deliberadamente, mas fecha o olho para um monte de coisa.”
Na megaoperação lançada ontem, três administradoras de fundos de investimento e uma fintech foram apontadas como operadoras fundamentais para movimentação e ocultação de dinheiro de origem duvidosa.
Segundo documentos da investigação ao qual o Valor teve acesso, auxiliaram “na movimentação e ocultação de bilhões de reais de origem duvidosa”: Reag Trust DTVM, Altinvest Gestão, Trustee DTVM. A Reag, que atua em gestão de recursos e administração de fundos, já tinha renunciado a oito dos dez fundos que estavam sob sua responsabilidade, ao identificar problemas num monitoramento feito no ano passado.
Também aparece na peça jurídica o Banco Genial, que renunciou ontem mesmo ao fundo que apareceu na denúncia, o Radford, um multimercado de crédito privado que assumiu um ano atrás. Procurada, a Genial afirma que apesar de citada não foi alvo da operação.
A Trustee fez o mesmo movimento, mas na véspera da operação. Outro nome apontado como crucial na estrutura financeira investigada foi o da fintech BK Instituição de Pagamentos.
Os citados refutam qualquer conduta criminosa e afirmam estar colaborando com as autoridades.
Um executivo da área de administração e gestão de recursos diz que “é impossível um administrador, um banco ou um agente do mercado descobrir o que as pessoas fazem” fora da economia formal, e que chega num ponto em que vira caso de polícia. O que se faz é sempre monitorar e, a qualquer indício, tentar se afastar. Renunciar à prestação de serviços ou liquidar os fundos são algumas das saídas.
Uma representante da indústria de fundos diz que um dos escapes foi que, debaixo dos veículos de investimentos, estavam fintechs como cotistas, não sendo possível saber quem era o cliente final dessas empresas. Uma novata de tecnologia financeira que atua no mercado de crédito não precisa informar ao Coaf depósitos acima de R$ 50 mil em espécie pela regulação atual, como os bancos têm que fazer.
André Martinez, autor do livro “Compliance Bancário Essencial”, diz que o “gap” não está na regulação do setor financeiro, que é uma das mais duras e respeitadas mundialmente, mas que a chegada das fintechs facilitou muito o caminho do dinheiro ilícito. “Todas têm que ter compliance, a brecha é fazer vista grossa para o programa.”
Ele cita que, se o tema for levado a sério, há regras de conduta para conhecer parceiros, fornecedores e funcionários, que podem eventualmente ser cooptados pelo crime organizado para abrir contas laranjas mesmo nos bancos tradicionais. “É um sistema que se retroalimenta porque todo mundo tem meta para bater”, diz Martinez. “Mesmo o gerente que não esteja ligado ao crime, se cai R$ 1 milhão na conta de uma senhora que só recebia dinheiro do INSS e aquilo faz bater a meta de aplicação em fundos no mês, talvez ele nem pergunte de onde veio o dinheiro. Dinheiro sujo bate meta e dá lucro.”
Martinez cita que pesquisa da Quod encomendada pela Febraban e divulgada em fevereiro revelou haver cerca de 10 milhões de CPFs no Brasil suspeitos de participar de golpes ao atuarem como contas laranjas. Ele afirma ainda que o Coaf tem poucos funcionários para atuar em cima das comunicações suspeitas. Sem isso, não investiga e o caso não chega ao Ministério Público. Apesar de o episódio ser escandaloso, ele entende que atinge uma pequena porção do sistema financeiro formal.
“O mínimo é conhecer o cliente. Mas os fundos e mesmo as fintechs, já com a regulação a que estão submetidos, têm deveres altos de conformidade, não corrupção e evitar lavagem de dinheiro”, afirma Eduardo Silva, presidente do Instituto Empresa. “Enquanto o mercado difunde discursos sobre responsabilidade social e sustentabilidade, na prática, mecanismos permissivos seguem abrindo espaço para infiltração do crime organizado.”
Num fundo é possível ao administrador saber quem é o cotista, o passivo, e do lado do ativo, a gestora de recursos é a figura que tem que garantir para onde está indo o recurso, se o seu uso não está dando margem para operações de lavagem de dinheiro, diz um advogado, citando que a Comissão de Valores Mobiliários (CVM) é muito vocal em relação a isso. O especialista afirma que algumas instituições simplesmente tomam o risco, ficam gigantes, “fazendo coisas que não deveriam fazer”.
Guilherme Cooke, sócio da área de fundos do Lobo de Rizzo Advogados, diz esperar que o episódio não traga a percepção de que a estrutura de fundos é que permite condutas que já não seriam possíveis em sociedades anônimas. “Houve outros casos de corrupção de agentes ligados a fundos, só que a responsabilidade, em vez de recair sobre eles, foi colocada na indústria.” Ele diz que transações dentro dos fundos são mais transparentes. O administrador não abre quem é o cotista publicamente, mas se o Judiciário pedir, tem como identificá-lo. “O fundo não significa blindagem patrimonial, e sim alguma busca por eficiência tributária, não dá para fazer mais coisas do que numa sociedade.”
Ontem, a Justiça Federal autorizou o sequestro integral de fundos de investimento utilizados para movimentação ilícita, além do bloqueio de bens e valores até o limite de cerca de R$ 1,2 bilhão, valor correspondente às autuações fiscais já realizadas. Também foi determinado o afastamento dos sigilos bancário e fiscal de pessoas físicas e jurídicas envolvidas.
O promotor do Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado (Gaeco), João Paulo Gabriel, afirmou que as investigações apontam envolvimento direto de fundos e agentes da Faria Lima em esquema de lavagem com o PCC.
“O que nós identificamos em termos de gestoras de fundos de investimento é que tem uma ação integrada entre elas e também com esse grupo criminoso. Não é simplesmente uma prestação de serviços para o crime organizado”, afirmou o promotor em coletiva no Ministério Público de São Paulo.
A Anbima divulgou nota em que afirma que “o setor de fundos de investimento é um dos mais sólidos do mercado de capitais brasileiro e está submetido a regras e controles rígidos, que são referência no mundo todo”.
Hoje, a indústria de fundos equivale a 85% do PIB brasileiro e conta com R$ 10 trilhões de patrimônio líquido, mais de 32 mil fundos e cerca de 41 milhões de contas. “A Operação Carbono Oculto envolve, segundo noticiado pela imprensa, cerca de R$ 30 bilhões e 40 fundos.”
Fonte: Valor Econômico

