Por Martin Wolf, Financial Times
01/08/2022 05h14 Atualizado há 4 horas
A inflação está de volta. O aumento dos preços pôs uma “crise do custo de vida” no topo da agenda econômica, política e social. Inevitavelmente, isso jogou os bancos centrais e a política monetária no centro das atenções. Mas as controvérsias a respeito dos dois não são novas. Pelo contrário, embora os tópicos mudem, o debate sobre a melhor maneira de sustentar a estabilidade monetária e financeira continua o mesmo. Ainda que tenham sido concluídos antes da volta da inflação, dois livros recém-lançados trazem perspectivas claramente conflitantes sobre questões de fundo.
No lado ortodoxo está Ben Bernanke, diretor do Federal Reserve (Fed, o banco central dos Estados Unidos) a partir de 2002 e seu presidente de 2006 a 2014, período que engloba a crise financeira mundial de 2007-2009. É possível afirmar que Bernanke é o teórico e prático de políticas de bancos centrais mais influente de nossa época. Seu livro “21st Century Monetary Policy” (a política monetária do século XXI) oferece um relato lúcido sobre a evolução das políticas dos bancos centrais e do banco central dos EUA desde a “grande inflação” do fim dos anos 1960, 1970 e início dos anos 1980 até hoje e para o futuro.
No lado oposto está Edward Chancellor, historiador, gestor de ativos, jornalista e escritor. “The Price of Time” (o preço do tempo) apresenta uma história dos juros desde os tempos da Babilônia, assim como a do debate sobre a própria legitimidade de exigi-lo. Mas o livro é sobretudo uma polêmica contra tudo o que Bernanke defende. Para Chancellor, a taxa de juro é “o preço do tempo” — a taxa à qual o dinheiro que alguém espera receber ou pagar no futuro deve ser ajustada para a de hoje. Ele argumenta que, sob a influência de pessoas como Bernanke, as taxas de juro estiveram demasiado baixas por tempo demais, com resultados desastrosos.
Cada um se respalda em um guru diferente. O de Bernanke é John Maynard Keynes, o pioneiro economista britânico. Como ele observa: “A economia keynesiana, em um formato modernizado, continua a ser o paradigma central do Fed e de outros bancos centrais”. O principal objetivo da política monetária, portanto, é conquistar e manter o pleno emprego.
Se a inflação tende a subir, a demanda deve estar forte demais; e se cai muito, a demanda deve estar demasiado fraca. Portanto, isso torna a inflação a melhor meta intermediária da política monetária. No entanto, essa meta também não deve ficar muito próxima do zero: os bancos centrais teriam muito pouco espaço para reduzir as taxas em resposta a uma recessão. Essa é a “armadilha” em que o Japão caiu nos anos 1990 e da qual teve tanta dificuldade para escapar.
O livro de Bernanke explora três realidades fundamentais de décadas passadas. A primeira é a resposta surpreendentemente fraca da inflação às mudanças no desemprego nos últimos anos. Em ocasiões anteriores, baixos níveis de desemprego tendiam a elevar os preços de forma mais rápida. A segunda é “o declínio de longo prazo no nível normal das taxas de juro”, em parte por causa da inflação mais baixa, mas também por causa do declínio de longo prazo das taxas de juro reais. A terceira é o “aumento do risco de instabilidade financeira sistêmica” no nosso mundo de finanças globalizadas e liberalizadas.
Bernanke explica que, em termos de política, as taxas de juro de curto prazo chegaram muito perto de, ou se igualaram a, ou em alguns casos até caíram abaixo de zero no período posterior à crise financeira mundial e à subsequente crise da zona do euro. Isso levou o Fed e outros bancos centrais na direção de uma série de políticas “não convencionais”, como a compra de ativos em grande escala (medida geralmente conhecida como “relaxamento quantitativo”) e a “forward guidance” (orientação futura) sobre a política monetária para os períodos seguintes.
Ele insiste em que, de forma geral, o Fed foi bem-sucedido em evitar outra Grande Depressão e levar a economia dos EUA de volta ao crescimento. Eu concordo com ele.
Chancellor discorda enfaticamente. Seu guru é Friedrich Hayek, contemporâneo de Keynes, um dos líderes da escola austríaca de economia do “livre mercado” e opositor dos bancos centrais. Hayek também foi um expoente da ideia do “mau investimento” como explicação para as depressões, segundo a qual a recessão representava a purga necessária de erros anteriores.
Bolhas são terríveis, insiste Chancellor. Mas desemprego em massa? Tudo bem
— Martin Wolf
Hayek perdeu a discussão sobre macroeconomia nos anos 1930 e passou para a economia política, em especial com “O caminho da servidão”, publicado em 1944, que encontrou uma seguidora em Margaret Thatcher. Chancellor, contudo, acredita no Hayek dos anos 1930. Ele condena as baixas taxas de juro adotadas pelos bancos centrais e as considera como a origem de quase todos os males econômicos.
Na sua avaliação, as taxas de juro ultrabaixas são o resultado maligno do falso credo das metas de inflação. “Não importa que as taxas de juro zero tenham desestimulado a poupança e o investimento e prejudicado o crescimento da produtividade. Não importa que as taxas de juro ultrabaixas, ao manter empresas zumbis vivas artificialmente, tenham resultado na sobrevivência dos menos aptos. Não importa que as políticas dos bancos centrais tenham contribuído para o aumento da desigualdade, solapado a estabilidade financeira, encorajado fluxos de capital de ‘hot money’ e alimentado numerosas bolhas de preços de ativos, desde apartamentos de luxo até criptomoedas”, reclama ele.
Esta série de acusações faz sentido? Não muito.
Taxas de juro baixas têm efeitos de substituição e de renda: os primeiros tornam a ideia de poupar menos mais atraente, por causa dos retornos menores; mas os últimos trazem a necessidade de poupar mais, para compensar os retornos menores. O próprio Chancellor cita Raghuram Rajan, ex-presidente do Reserve Bank da Índia, ao dizer que “os poupadores fazem uma reserva de dinheiro maior à medida que as taxas de juro caem, a fim de chegar ao nível de poupança que acham que precisarão quando se aposentarem”. O efeito das baixas taxas de juro nos níveis de poupança em geral é simplesmente ambíguo.
O público não vai aceitar uma volta ao capitalismo americano do século XIX, sem nem mesmo bancos centrais
— Martin Wolf
Além disso, Chancellor insiste em que taxas mais baixas desestimulam o investimento, embora ele também enfatize que elas incentivam a tomada de riscos. Por que, então, elas não encorajariam mais investimentos de risco? Afinal, em um ambiente de taxas de juro baixas o financiamento, que inclui o financiamento de capital, será barato. Se de fato existem boas oportunidades de investimento, como assegura Chancellor, por que as taxas de juro baixas seriam um entrave impeditivo para financiá-las?
A sobrevivência das empresas “zumbis” pode ser uma explicação parcial. Mas empresas dinâmicas deveriam ser mais capazes de conseguir funcionários, fornecedores e clientes do que as “zumbis”. Mais ainda, as empresas capazes de cobrir seus custos variáveis deveriam sobreviver. É verdade que se a maioria das empresas que são produtivas apenas marginalmente fosse fechada, a produtividade dos trabalhadores que continuassem empregados aumentaria. Mas a produtividade da força de trabalho como um todo cairia, o que seria um mau negócio.
Por outro lado, o argumento de que baixas taxas de juro aumentam a desigualdade é grosseiramente enganoso. Mesmo a duplicação da riqueza dos bilionários não tem nenhum significado real para pessoas que não possuem quase nada. Assim, de acordo com o Censo dos EUA de 2020, o patrimônio líquido médio dos 20% mais pobres entre as famílias americanas era de menos US$ 6.029 e o patrimônio líquido médio dos 20% seguintes era de apenas US$ 7.263. O que importa para essas pessoas não é o quão imensamente rico Elon Musk é, mas se elas de fato têm um emprego. As respostas ativas às recessões por parte dos bancos centrais as ajudam a conseguir isso. Se Chancellor realmente se importa com a desigualdade, por que não fazer campanha por impostos sobre a riqueza?
Chancellor também tem muitas queixas sobre o efeito das baixas taxas de juro sobre a instabilidade e a fragilidade financeiras. Mas é pouco provável que as taxas de juro que ele recomenda, que são apenas modestamente mais altas, tivessem salvado o mundo de crises financeiras. Os EUA do século XIX, sem política de banco central, tiveram muitas delas. É por isso que o Federal Reserve foi criado no início do século XX.
Qual é, acima de tudo, a alternativa do autor às baixas taxas de juro que ele despreza? Uma depressão. De fato, ele insiste em que “a economia como um todo se beneficia desse purgante”. Chancellor chega a citar Andrew Mellon, o secretário do Tesouro de Herbert Hoover, que ganhou triste fama por ter aconselhado seu chefe a “liquidar o trabalho, liquidar as ações, liquidar os agricultores, liquidar o setor imobiliário”. Mellon poderia ter acrescentado “liquidar a democracia”. Na Alemanha, o primeiro-ministro Heinrich Brüning conseguiu exatamente isso enquanto preparava o terreno para Hitler.
Bolhas são terríveis, insiste Chancellor. Mas desemprego em massa? Tudo bem.
Em suma, Chancellor escreveu uma polêmica exaltada e desequilibrada. Mas isso não significa que a perspectiva gerencialista de Bernanke seja completamente correta. William White, ex-economista-chefe do Banco de Compensações Internacionais, e Claudio Borio, que ainda trabalha lá (ambos citados de maneira aprovadora por Chancellor), de fato deram alertas preocupantes e às vezes prescientes sobre os riscos financeiros que se acumulavam.
O problema fundamental é que temos dois objetivos para a política monetária: estabilizar a economia real no curto e no médio prazos e conter os riscos financeiros. Não se pode alcançar duas metas com um instrumento. As alternativas são dividir o foco da política monetária entre os dois objetivos de alguma forma ou empregar outros instrumentos, como a regulamentação (para gerir as finanças) ou a política fiscal (para administrar a demanda).
A eficácia da primeira, às vezes chamada de “ir contra o vento”, não é clara. Elevações moderadas nas taxas de juro podem até nos ter dado o pior dos dois mundos — tanto a deflação quanto uma efervescência financeira persistente. Mas uma regulamentação mais rígida, embora necessária, criará oportunidades para arbitragem, à medida que operadores motivados encontrem maneiras de contorná-la. Ao mesmo tempo, os governos não têm usado bem a política fiscal ativa, o que sugere que a política monetária ainda será necessária para conduzir a economia.
De forma mais imediata, a questão é se a inflação alta de hoje pressagia um deslocamento fundamental do ambiente de política monetária de inflação baixa para algo mais parecido com o dos anos 1970. A revisão mais recente da política do Fed, com seu foco na média das taxas de inflação anteriores, está irremediavelmente ultrapassada. Mas não está claro até que ponto os choques dos últimos dois anos e meio alteraram de forma duradoura o ambiente da política monetária.
Bernanke está certo: o relaxamento quantitativo como resposta à “Grande Recessão” não criou a hiperinflação sobre a qual tantos alertavam equivocadamente. O erro a respeito da inflação foi mais recente, mais compreensível e mais modesto. Consistiu em não reconhecer com antecedência suficiente a escala da explosão da oferta de dinheiro em circulação em 2020 em resposta à crise da covid-19, a generalização das interrupções no fornecimento e a força da recuperação.
Achar a solução perfeita para a política monetária é como a busca pelo cálice sagrado, é o grande sonho dos bancos centrais. Mas, assim como no caso do cálice sagrado, é improvável que ela seja encontrada. Ao mesmo tempo, o público não vai aceitar uma volta ao capitalismo americano do século XIX, sem nem mesmo bancos centrais.
Continuaremos a gerir o dinheiro e as finanças, não retomaremos o padrão ouro nem adotaremos o bitcoin e seus rivais como soluções.
Hoje, a meta de inflação que Bernanke defende parece a abordagem menos ruim. Mas ainda permanece a questão sobre a melhor forma de conter os riscos financeiros enfatizados por Chancellor. A maior preocupação, nós sabemos, é a tendência à expansão incontinente do crédito e, portanto, também da dívida. A regulamentação é uma parte da solução. Mas a fonte estrutural mais importante de alavancagem excessiva é a dedutibilidade fiscal dos juros. Devemos eliminar isso agora. (Tradução de Lilian Carmona)
Fonte: Valor Econômico
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