Já que os temores de dominância fiscal voltaram à baila entre os economistas, a gestora Kinea decidiu dar um mergulho no assunto da sua carta mensal aos investidores, distribuída nesta quarta-feira. A casa lembra as longas discussões sobre o tema durante 2015, “a mais severa recessão da história recente do Brasil” e em 2002, quando o real se depreciou para os menores valores históricos já registrados (contra os pares, em termos reais), gerando o maior ajuste em conta corrente dos últimos 30 anos.
A moeda sempre foi a principal válvula de escape – que nunca conseguiu recobrar tudo que perdeu quando a crise passa – respingando na inflação e na taxa de juros. A Kinea nota que o real se depreciou mais de 50% no período mais agudo das crises e se “reequilibrou” num patamar cerca de 30% mais fraco após a estabilização econômica.
“O segundo impacto relevante foi uma desaceleração da atividade de magnitude expressiva, compatível com um ajuste em conta corrente que estabilizasse fluxos de capitais”, emenda. No comparativo com os dois períodos, as famílias hoje estão em situação mais vulnerável, com maior endividamento – cerca de 30% da renda mensal está comprometida com o pagamento de dívidas, um nível crítico na série histórica.
As companhias também estão com nível de endividamento mais alto e maior despesa financeira, mas num contexto empresarial (e policial) menos problemático do que na crise passada – quando com bancos e fornecedores expostos ao colapso do Grupo OGX e da Sete Brasil e às encalacradas empreiteiras na Lava-Jato e as instituições financeiras eram basicamente a única fonte de financiamento, hoje com grande fatia no mercado de capitais.
O que melhorou notadamente foram as contas externas. “Em 2002, por exemplo, a crise foi intensificada pela forte necessidade de capital estrangeiro: o governo tinha 2,5x mais dívida externa que reservas. Quando comparamos com 2015, a situação externa também nos parece melhor.” A dívida externa do setor privado, quando comparada com exportações, vem caindo desde o pico da crise de 2015.1 de 1 Comparativo histórico mostra onde Brasil melhorou e onde ficou mais vulnerável — Foto: Pixabay
Apesar do chamado risco do parafiscal ter ressurgido entre as preocupações de investidores e analistas, a Kinea avalia que a situação das dívidas e gastos fora do orçamento é melhor hoje do que foi em 2015. “Durante o governo Dilma, o Tesouro chegou a aportar R$ 500 bilhões no BNDES, que emprestava a taxas subsidiadas (TJLP). Hoje a situação é bastante distinta, e a sociedade, de modo geral, é bastante atenta a qualquer tentativa de uso desse canal”, avalia a gestora.
O crédito do governo junto ao BNDES caiu de patamares perto de 10% do PIB em 2015 para abaixo de 2% atualmente, e os desembolsos do BNDES caíram de um pico próximo a 5% para um patamar atual de 1,5%, “embora a trajetória atual ascendente comece novamente a preocupar”, pondera.
Na última crise fiscal brasileira, em 2015, o choque de credibilidade veio com o teto de gastos e as reformas do governo Temer. Em 2002, parte relevante da dívida era em dólar. Hoje, apesar da falta de confiança e das despesas públicas em crescimento, as dívidas são em sua própria moeda e financiada por locais. “Deixemos claro: o Brasil não é um país insolvente”, escreve.
O caminho para evitar o buraco já é consenso: cortes de gastos e subsídios e desindexação de benefícios sociais, agendas que têm se mostrado difíceis politicamente e são impopulares. Mas, ainda que se diga cética, a gestora deixa um tom de otimismo num realinhamento (ainda que a fórceps) da rota de governo e Congresso.
“Churchill mencionou durante a Segunda Guerra Mundial, enquanto esperava pela ajuda dos Estados Unidos, que ‘os americanos sempre fazem a coisa certa, mas apenas depois de tentarem todas as outras alternativas’. Aqui, ao sul do equador, parece que vivemos uma questão similar: o Brasil parece sempre tomar as decisões necessárias, mas somente depois de muita dor na economia.”
Fonte: Pipeline
