Por Lucinda Pinto e Mônica Scaramuzzo — De São Paulo
25/08/2022 05h03 Atualizado há 55 minutos
Depois de anos atuando como agentes de transformação do mercado financeiro, as fintechs de crédito enfrentam o primeiro grande teste. A inflação alta e o aumento da taxa de juros têm impacto no sistema financeiro de forma geral, mas o efeito é ainda mais devastador sobre essa classe de instituições de pequeno porte, com atividade concentrada no crédito e que dependem do mercado de capitais para obter funding. Ao mesmo tempo, o aumento da inadimplência coloca à prova os modelos de concessão de crédito e de recuperação desses ativos, desafio que ainda não havia sido enfrentado por essas companhias.
“É a primeira tempestade, e ela está vindo forte”, afirma Alexandre Cruz, sócio e fundador da Jive Investments, gestora especializada em ativos alternativos. Segundo ele, o cenário adverso já tem provocado o crescimento da inadimplência a ponto de trazer desequilíbrios importantes em FIDCs (fundos de investimento em diretos creditórios) estruturados por fintechs para levantar funding.
Por isso, pela primeira vez, a Jive está analisando a compra de carteiras de FIDCs com inadimplência. A operação de compra dos ativos é uma modalidade de investimento inédita na gestora e, se levada adiante, será uma forma de garantir o pagamento aos cotistas de FIDCs, cuja inadimplência pode afetar a chamada cota sênior, ou seja, a parte do fundo composta por recursos de investidores.
O problema fica ainda mais evidente entre aquelas fintechs que atuam com crédito sem garantia
“Acho que haverá uma correção saudável desse segmento, que deve diminuir de tamanho. É um mercado novo que não tinha experimentado um ciclo invertido”, afirma Cruz. Ele explica que, durante o período de juros muito baixos, as fintechs receberam muito investimento e ampliaram de forma excessiva a oferta de crédito, o que acaba potencializando o aumento da inadimplência com o atual cenário economico.
O problema fica ainda mais evidente entre aquelas que atuam com crédito sem garantia, para clientes de baixa renda, público que tende a sofrer mais com a alta da inflação. Muitos desses consumidores, inclusive, tiveram acesso a outras linhas de crédito oferecidas pelo próprio governo, o que forçou muitas fintechs e reduzir ainda mais a taxa de financiamento, além de elevar o endividamento das famílias.
Outro aspecto a ser monitorado é o desempenho dos modelos de recuperação de crédito – e de garantia, no caso das linhas que previam essa segurança. “Dar crédito por meio digital é mais fácil, mas cobrar fica mais difícil”, afirma Cruz.
Além da inadimplência pesando sobre a carteira de crédito das fintechs, o que tem castigado esse segmento é o descasamento entre a taxa de empréstimos das instituições, que é prefixada, e o custo de captação, normalmente pós-fixado. Afinal, os financiamentos que têm taxa prefixada foram fechados num momento em que a Selic estava muito baixa, enquanto a captação é atrelada ao CDI e, portanto, dispara junto com a taxa de juros.
“O custo de funding, que é o CDI, subiu muito, e muito rapidamente. Já a taxa de empréstimo da fintech tem que subir devagar, como forma de manter seu mercado”, explica Leonardo Ono, gestor de crédito privado da Legacy Capital.
Ele observa que esse descasamento não é privilégio das fintechs: afeta qualquer instituição de crédito. Mas os bancos têm diferentes linhas de negócios, diversificação de receita, além de mais alternativas de funding. Muitas fintechs, por sua vez, têm sua atividade concentrada na concessão de crédito, uma atividade de maior risco. E isso representa um fator adicional de custo para quem precisa tomar recursos junto ao investidor no mercado de capitais.
O principal instrumento utilizado por fintechs para captar recursos no mercado de capitais é o FIDC. Por meio desse fundo, uma gestora contratada pela fintech levantará recursos junto a investidores institucionais que serão aplicados em títulos de crédito formados por contas a receber dessa instituição.
A remuneração do investidor que aplica no FIDC é baseada na variação do CDI mais uma taxa de juros. E como a taxa dos empréstimos da carteira vinculada aos FIDCs, sempre prefixados, não subiu na mesma proporção, muitas instituições precisaram fazer, nos últimos meses, aportes para cobrir esse desequilíbrio e não prejudicar a chamada cota sênior – a primeira a ser paga em caso de inadimplência.
Esse descasamento de taxas é um grande problema hoje para as fintechs, mas deve se equilibrar ao longo do tempo, na opinião de Bruno Balduccini, sócio do Pinheiro Neto Advogados. Ele explica que o crédito concedido pelas instituições tem prazo relativamente curto, de cerca de 24 meses. E a operação acabará sendo limpa à medida que os empréstimos vencem ou são rolados. Os FIDCs estruturados por essas fintechs podem sofrer um “chacoalhão”, avalia, mas na maior parte dos casos isso será absorvido pela chamada cota subordinada, ou seja, pelo pedaço do FIDC detido pela própria fintech. “No geral, essas fintechs ficam sem ganhar, mas também não perdem”, afirma.
A questão é que elas precisarão de mais tempo para se rentabilizar. E, com a inadimplência em alta, a disposição do investidor – seja aquele que compra FIDC, seja o de fundo de venture capital, fica mais seletivo para fazer novas alocações. Quem tem caixa consegue atravessar esse período, mas muito provavelmente vai optar por parar de crescer, de forma a preservar esse colchão. “A economia com juro alto preserva quem tem mais capital”, diz Balduccini.
Segundo a Associação Brasileira de Fintechs, ABFintechs, existem hoje cerca de 1.200 fintechs, sendo 600 delas filiadas à entidade. Nesse universo, as de meios de pagamento representam o maior número, seguido do grupo de fintechs de crédito. A acelerada expansão desse segmento, calcada em muita tecnologia e modelos inovadores de análise e concessão de crédito, foi capaz de incluir clientes das classes C e D, que antes desatendidos pelo setor bancário. E também empurrou as chamadas instituições incumbentes para o investimento em mais digitalização de seus serviços. Em certa medida, contribuiu também para aquecer a competição e reduzir o custo das linhas de financiamento. Agora, o cenário de inflação e inadimplência em alta muda a dinâmica.
“Num cenário de juro alto, o investidor de renda fixa vai dar prioridade para títulos públicos, e por isso o cenário de crescimento das fintechs corre o risco de perder velocidade”, explica Diego Perez, presidente da ABFintechs. Ele diz que o momento vai testar o modelo de concessão de crédito adotado por muitas dessas instituições e que, por isso, o investidor estará “menos efusivo, mais pé no chão” quando se trata de fintechs.
“O cenário de disponibilidade de liquidez mudou”, afirma Ricardo Josua, CEO da Pismo, empresa de tecnologia para serviços bancários e pagamentos. A alta de juros, explica, dificulta o acesso ao capital e, portanto, torna mais complexa a situação das fintechs pouco capitalizadas e, portanto, mais dependentes do mercado de capitais. “As empresas tiveram mais dificuldade de construir um balanço robusto e muitas estão desequilibradas”, afirma. Isso deve levar a uma “depuração” do mercado, em que apenas as fintechs mais sólidas vão sobreviver. “O fluxo de investimento para esse setor continuará vindo, mas será mais criterioso”, afirma. “Não existe no mercado financeiro uma história de pulverização como essa.”
De janeiro a julho deste ano, as fintechs receberam investimentos de US$ 1,6 bilhão, majoritariamente de gestoras de venture capital. Do total, 32% foram para as fintechs de crédito, que continuam liderando os investimentos. Outros 21,1% são para serviços digitais. “De uma maneira geral, é inegável que existe uma desaceleração do volume de investimentos desses fundos no Brasil. Isso aconteceu, sobretudo, no ‘late stage’ (estágio de startups mais maduro)”, diz Gustavo Gierun, CEO da plataforma de inovação Distrito, que faz o mapeamento das startups.
“É importante ressaltar que, quando o volume investido de 2022, o total já é igual ao todo de 2020. Mesmo sendo 2021 um cenário fora da curva, com liquidez excessiva, 2022 tem números firmes. Isso simboliza que não existe uma ruptura de oferta de capital, o que existe é uma posição mais cuidadosa na alocação de capital dos fundos que atuam no Brasil”, diz Gierun.
Segundo Gierun, o cenário macroeconômico afeta o humor do gestor. “É natural que essa seletividade permaneça até a economia melhorar.” Mas o executivo não acredita que em um estouro da bolha. “As fintechs vão continuar aparecendo.”
Para Fabio Braga, sócio em Bancário e Financeiro do Demarest, a inadimplência é uma preocupação, mas essa variável está prevista no plano de negócios das instituições. Para ele, à medida que houver definição do cenário político e do fiscal, o ambiente geral deve melhorar. Mas, até lá, é possível que se veja um encolhimento do setor. “Existem muitas entidades no mercado, o que talvez não se justifique. Acho que se criou um espaço para consolidação”, diz.
Marcos Toledo, cofundador da gestora de venture capital Canary, vê as fintechs atreladas a crédito em uma fase mais difícil por conta do cenário macroeconômico. Ele ressalta, contudo, que a Canary é uma gestora que investe na fase inicial da startup. “Recebo cerca de 300 sugestões de negócios por mês”, conta. “Nós priorizamos investimentos sem foco setorial.”
Para um gestor de um dos maiores fundos de venture capital, embora as gestoras estejam muito capitalizadas, elas estão sendo muito seletivas para os próximos seis a 12 meses. “Com esse cenário macroeconômico, é natural que os aportes sejam em empresas com teses comprovadas.”
Fonte: Valor Econômico