Por Fernanda Guimarães e Mônica Scaramuzzo — De São Paulo
22/05/2023 05h02 Atualizado há 57 minutos
O fechamento do mercado de capitais não afetou apenas as ofertas iniciais de ações (IPO, na sigla em inglês), mas também as transações de empresas de propósito específico (Spacs, na sigla em inglês), chamadas de companhias de “cheque em branco”, modalidade que viu um boom entre 2020 e 2021.
O juro alto e a volatilidade global atingiram o segmento neste ano e mostram um novo retrato. Segundo dados da Spac Research, 98 desses veículos foram liquidados globalmente em 2023, ou seja, gestores devolveram recursos aos investidores depois de não conseguirem adquirir uma empresa, superando o número de Spacs que concluíram transações (31).
O salto inicial das Spacs foi resultado direto da ampla injeção de liquidez por bancos centrais em todo o mundo. Os bilhões de dólares que foram para as economias, em ambiente de juros baixíssimos, alimentaram o apetite por investimentos de risco. Para se ter uma ideia, de 2019 até maio de 2023, 921 Spacs foram anunciadas no mercado internacional, em um valor total de US$ 268 bilhões. Dessas, 328 concluíram a transação – ou seja, se fundiram a uma companhia no fim do processo.
A febre também chegou forte no Brasil, com alguns fundos tradicionais lançando seus produtos, até mesmo para atender uma crescente demanda de investidores. Por aqui, dos cinco negócios anunciados de dois anos para cá, apenas o da HPX, que fez uma fusão com uma subsidiária da Ambipar, virou uma história bem-sucedida.
Crescera e Pátria vão pedir extensão de prazo para buscar uma companhia de investimento, segundo fontes. Outros interlocutores, a par do assunto, afirmaram que a Spac lançada pela XP, por exemplo, deve ser liquidada. Com foco em acelerar o desenvolvimento do comércio digital na América Latina, o projeto da gigante de e-commerce Mercado Livre com o fundo de investimento Kaszek não foi anunciado até agora.
Na dinâmica de uma Spac, o gestor, também chamado de “sponsor”, com renome no mercado, passa o chapéu para lançar seu veículo. Ao fazer a captação, lista a Spac na Nasdaq, bolsa americana referência no setor de tecnologia. Depois, ao encontrar o alvo, faz a apresentação aos investidores para o aval. Eles podem, nesse momento, decidir entre manter o investimento ou sair, recebendo de volta o dinheiro aplicado. Se a compra da empresa for aceita, os gestores buscam mais dinheiro para bancar a empreitada. Feita a aquisição, a empresa-alvo faz a fusão com a Spac. A própria Spac, então, deixa de existir, e a empresa adquirida se torna listada.
“Na prática, a diferença entre IPO e Spac é a inversão de etapas do processo, mas o fim é o mesmo”, explica Eduardo Miras, responsável pelo banco de investimentos do Citi do Brasil. Na Spac, o preço é definido no início – no IPO, o “valuation” é no fim. Segundo o executivo, o mercado de Spacs não parou. “Esse sempre foi um produto de nicho e vai continuar existindo”, diz.
Entre os veículos brasileiros, o momento é de tomada de decisão. O Valor apurou que o Pátria e a Crescera estenderam seus prazos para buscar com calma a companhia de investimento. A Crescera, ex-Bozano Investimentos, levantou cerca de US$ 200 milhões em novembro de 2021 com o objetivo de fazer fusões e aquisições no Brasil, em setores como tecnologia, saúde, educação, varejo e bens de consumo. O prazo estipulado foi de 18 meses, prorrogável por seis meses.
No caso do Pátria, a precificação foi feita em março de 2022, quando a gestora levantou US$ 200 milhões para buscar investimentos em setores em que se especializou, como saúde, tecnologia e logística, além do agronegócio e educação. O prazo é de 15 meses mais seis, e vence em dezembro. Fontes afirmam que pode ser negociada maior extensão, se preciso.
No veículo lançado pela XP, fontes afirmam que o processo deverá ser liquidado. A XPAC, criada em julho de 2021, quando levantou US$ 200 milhões, anunciou em abril do ano passado a compra da empresa de biotecnologia brasileira SuperBac. No entanto, a empresa não conseguiu concluir o “pipe”, segundo fontes. “Havia investidores, mas o timing não foi o ideal por conta do momento difícil do mercado”, disse uma pessoa a par do assunto. O “pipe” é o momento em que os gestores vão ao mercado buscar mais capital para concluir a aquisição. No mercado, a expectativa é de que a XP faça a liquidação e invista na SuperBac por meio do seu fundo de private equity porque gosta da companhia.
Com US$ 200 milhões levantados em fevereiro de 2021, a Spac da Itiquira Acquistion, do carioca Paulo Gouvêa, ex-grupo EBX e XP, teve o prazo vencendo em fevereiro e a decisão foi devolver os recursos.
Uma fonte explicou que muitos gestores que lançaram esses produtos estão optando pela liquidação e não por pedir mais prazo porque não há visibilidade de melhora do ambiente de captação. Há ainda um custo embutido, já que o responsável pela Spac precisa arcar com os gastos de manutenção do veículo com capital aberto.
Na contramão, três Spacs de grupos estrangeiros lançadas para investir em companhias brasileiras concluíram o processo. Uma é a Eve, resultado da união da Spac americana Zanite com a startup de “carros voadores” da Embraer. Outra foi a fusão da Spac da The Production Board (TPB), que reúne gestoras globais, com a Lavoro, companhia de agricultura do Pátria. E ainda a Semantix, absorvida pela Alpha Capital.
“Muitos desses gestores passaram a ter muito mais dificuldade de captar os recursos necessários para concluir a aquisição. A dinâmica desse mercado deve mudar e, com as mudanças das regras, acredito que as Spacs já serão lançadas com alguns alvos já definidos”, diz Ricardo Fernandez, sócio fundador da Signal Capital.
Uma fonte explicou que as Spacs sofreram mais com a volatilidade, que derrubou o preço das ações em todo o mundo, incluindo a Nasdaq. Muitos fundos de investimento com mandato em renda variável viram uma alternativa de tirar dinheiro das ações e migrar para as Spacs, consideradas renda variável. Mas isso não foi feito por verem uma oportunidade de rentabilidade, e sim para proteger o capital do fundo. As Spacs, antes de investirem, deixam os recursos em Treasuries, garantindo, assim, a proteção do dinheiro. “Na hora da Spac apresentar uma empresa para aquisição, os investidores tiravam todos os recursos. O objetivo não era investir na Spac”, disse uma fonte.
Com mais dificuldade de levantar recursos, as Spacs perderam poder de fogo diante dos fundos de private equity. “Os ‘deals’ que faziam sentido eram aqueles que estavam mais baratos, mas quem levava eram os private equities, que tinham dinheiro em caixa”.
Além da maior aversão ao risco prejudicando o desempenho do produto, novas regras impostas no ano passado pelo xerife do mercado de capitais dos EUA, a SEC, com mais camadas de proteção ao investidor, ajudaram a esfriar essa indústria.
Houve uma série de novas exigências, como divulgações adicionais sobre os sponsors, conflitos de interesse e fontes de diluição. Também exigiram divulgações adicionais sobre transações de combinação de negócios entre Spacs e empresas operacionais privadas. As novas regras ainda abordaram questões relacionadas a projeções feitas por Spacs e empresas-alvo.
“De um ano para cá, houve muita discussão dos impactos possíveis com a mudança de regras”, disse um banqueiro de investimento, que preferiu manter o anonimato. A percepção dessa fonte é que a Spac será um produto mais pontual e não de prateleira.
Na prática, os reguladores passaram a responsabilizar os bancos que assessoram esse tipo de operação pelos riscos, algo que ajudou a enxugar o número de operações. “Em 2020 e 2021, os bancos não estavam tão preparados para o boom dessas operações, que eram encaradas como um IPO. Em M&A, por exemplo, há menor ‘liability’ para os bancos. Em IPOs, há mais ‘requirement’. Bancos como Goldman Sachs e J.P. Morgan tiveram de travar suas operações”.
Outra fonte disse que, com as exigências, o custo de manutenção das Spacs, inclusive com advogados, também subiu, dada a maior percepção de risco. “Acredito que em alguns anos a SEC vai flexibilizar essas regras. Hoje a regulação fez essa classe perder a competitividade. E isso fez essa indústria perder seu propósito”, disse uma das fontes consultadas pelo Valor.
Procuradas, Crescera, Pátria e XP não comentaram.
Fonte: Valor Econômico
