A resposta exige cuidado. O álcool não é um adereço: ele é parte integrante da estrutura do vinho
Nos últimos anos, o teor alcoólico dos vinhos passou a ocupar o centro de muitas discussões, tanto no universo da saúde quanto no meio do vinho. Há uma verdadeira cruzada contra os vinhos alcoólicos, capitaneada inicialmente pelos críticos ingleses, e alimentada por uma crescente preocupação com os impactos do álcool sobre o organismo.
Não se trata de uma questão irrelevante: estudos mais recentes e rigorosos vêm apontando que mesmo pequenas quantidades de álcool podem aumentar o risco de câncer, hipertensão e doenças hepáticas. Um relatório da OMS (Organização Mundial da Saúde) chegou a afirmar que não há nível seguro de consumo de álcool.
Esse novo olhar não significa, porém, que a ciência tenha “mudado de ideia”. O que mudou foi a qualidade das evidências. Muitos estudos que sugeriam benefícios do álcool eram observacionais e não conseguiam distinguir causa e efeito com precisão. Pessoas que bebem moderadamente tendem, em geral, a ter hábitos mais saudáveis — dieta equilibrada, melhor nível educacional, mais atividade física. Tudo isso pode ter mascarado os verdadeiros efeitos do álcool. A moderação, como conceito, ainda tem seu valor, mas já não poderia ser usada como justificativa confortável para o consumo diário e irrestrito.
Em todo caso, a discussão sobre o consumo de álcool — não consumir ou consumo moderado (e o que seria consumo moderado) — está longe de chegar a um consenso. Uma reportagem da revista “Meininger” em dezembro passado faz referência a um novo estudo espanhol que confirma que o consumo moderado de vinho traz benefícios cardiovasculares para pessoas em risco — “bebedores moderados apresentam menor mortalidade por todas as causas do que os que não bebem. Em outras palavras, beber uma pequena quantidade de álcool é melhor para a saúde do que não beber nada”.
Liderada pelo professor Ramon Estruch, da Universidade de Barcelona e do Hospital Clinic de Barcelona, Espanha, a pesquisa faz parte de um estudo em andamento sobre a dieta mediterrânea; um estudo anterior já concluiu que o vinho é uma parte importante da dieta.
O que a equipe fez nessa última rodada foi selecionar um grupo de 1.232 pessoas com diabetes tipo 2 ou alto risco de doença cardiovascular e colocá-las na dieta mediterrânea. Eles foram acompanhados por um período de quatro a cinco anos. No início do estudo, os participantes coletaram uma amostra de urina e, um ano depois, realizaram o mesmo procedimento. Os pesquisadores buscavam ácido tartárico, um subproduto da produção de vinho. Em outras palavras, os pesquisadores conseguiam identificar se alguém havia consumido vinho.
“Ao medir o ácido tartárico na urina, juntamente com questionários sobre alimentos e bebidas, conseguimos fazer uma medição mais precisa do consumo de vinho”, disse Estruch em um comunicado.
Ao final do estudo, havia 685 casos de doenças cardiovasculares, incluindo ataques cardíacos e derrames. Os pesquisadores concluíram que o consumo leve a moderado de álcool “reduz o risco de desenvolver um evento cardiovascular em 50% neste grupo de pessoas com alto risco de doenças cardiovasculares que seguiam uma dieta mediterrânea”.
Estruch afirmou que os resultados demonstraram “um efeito protetor do vinho muito maior do que o observado em outros estudos. Uma redução de 50% no risco é muito maior do que a que pode ser alcançada com alguns medicamentos, como as estatinas”.
A discussão sobre não consumir ou consumo moderado se complica quando passamos do campo da saúde pública para o do vinho como produto cultural, agrícola e sensorial. A relação entre o teor alcoólico e a qualidade do vinho é tudo, menos simples. Não faltam hoje vozes que pedem por vinhos mais leves, menos alcoólicos, mais “saudáveis”. Mas a pergunta que raramente se faz é: até onde é possível reduzir o grau alcoólico sem comprometer a integridade do vinho?
A resposta exige cuidado. O álcool não é um adereço: ele é parte integrante da estrutura do vinho. Mais do que isso, sua presença está diretamente relacionada ao nível de maturação das uvas. E há castas que simplesmente não funcionam bem se colhidas antes do tempo.
A maturação fenólica — isto é, o amadurecimento de compostos presentes nas peles, sementes e engaços — é essencial para suavizar os taninos, e só acontece quando a uva atinge um estágio mais avançado de maturação. Do contrário, os taninos se mantêm verdes, agressivos, adstringentes.
É o caso de uvas como a grenache (presente majoritariamente em Châteauneuf-du-Pape e no Priorato, onde o clima e o solo áridos são adequados), da alicante bouschet portuguesa ou da carmenère chilena. Todas exigem um ciclo mais longo de amadurecimento, o que, inevitavelmente, eleva o teor alcoólico dos vinhos.
Reduzir esse álcool de forma artificial — seja por colheita precoce, seja por técnicas de engenharia enológica — pode prejudicar o equilíbrio, a textura e a expressão aromática. Pior: pode trair o terroir.
Por isso, o mais sensato talvez seja evitar generalizações. É preciso cuidado tanto com o excesso quanto com a ortodoxia das novas tendências. O que define se um vinho está “alcoólico demais” não é o número no rótulo, mas sua presença no conjunto. Já provei brancos e tintos com 12% de álcool que provocam uma sensação de calor desagradável na boca — sinal de álcool mal integrado — e vinhos com 15% que se mostram frescos, equilibrados, sedutores, sem que o álcool se destaque. Mais do que seguir uma tabela ou uma cartilha, é preciso confiar na taça — e na sensibilidade de cada um.
A crítica ao excesso é válida. Existem, sim, vinhos inchados, pesados, que parecem ter sido concebidos para bater recordes, não para dar prazer. Mas isso não invalida, por exemplo, um Malbec argentino com 14,5%, bem-feito, ou um tinto mediterrânico estruturado e quente. Devem ser encarados com naturalidade os tintos à base de grenache com 14,5% ou 15% de álcool, assim como se espera que a maioria dos brancos não ultrapasse 13,5%. Cada região, cada casta, cada estilo tem seu ponto de equilíbrio. O bom produtor é aquele que sabe lidar com as condições que a natureza oferece e, a partir delas, alcançar um vinho íntegro — qualquer que seja o grau alcoólico resultante.
É legítimo, portanto, buscar moderação — tanto no copo quanto na análise. Afinal, mais importante que o número é a harmonia.
Jorge Lucki escreve neste espaço semanalmente. E-mail: Colaborador-jorge.lucki@valor.com.br
Fonte: Valor Econômico