Cenário é de alerta nas negociação entre comércio e indústria de alimentos, bebidas e limpeza
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O varejo e a indústria de consumo devem terminar o primeiro semestre repassando parte da pressão nos custos dos produtos vendidos, cotados em dólar, ao consumidor. A questão é que esse movimento tem ajudado as empresas a proteger a margem bruta, mas há um limite nesse processo, que já mostra sinais de esgotamento.
Isso porque, se o repasse de preços reduzir o volume consumido pela população de forma contínua, para além do impacto já existente hoje, o risco é a receita líquida perder fôlego, mesmo com os preços altos “inflando” o faturamento nominal – o que pode ter efeito em rentabilidade e em caixa.
Para entender melhor esse ciclo, o custo do produto vendido (CPV) inclui o custo de aquisição de mercadorias ou insumos dos fornecedores e mão de obra direta, por exemplo. Mas o gasto na compra é o principal peso. Ao se descontar isso da receita líquida que se chega ao lucro bruto, e logo, na margem.
Quando os preços sobem de forma consistente, o consumidor passa a rever a cesta de compras, muda hábitos e corta marcas – algo que já se percebe, de forma mais intensa, desde dezembro, segundo as consultorias. O varejista, então, é obrigado a rever a cesta e a desovar estoques por meio de promoções, e com isso, a margem bruta pode ser penalizada.
A ampliação da receita com serviços nas lojas, no atacarejo e no varejo de eletrônicos tem ajudado a proteger essa margem, dizem as redes, porque gera um ganho mais “limpo” dessas pressões. Só que seu peso na venda total é menor que a receita de mercadorias.
O tema da elasticidade de demanda é muito complexo e depende de diversas variáveis”
Esse ambiente tem gerado um alerta nas negociações, principalmente entre o comércio e a indústria de alimentos, bebidas e higiene e limpeza, apurou o Valor. O aspecto positivo é que uma desaceleração na inflação desses itens na segunda metade do ano pode elevar volume e reverter esse processo.
“O pequeno crescimento no volume, quando acontece, é de itens em promoção. E não adianta ficar fazendo venda só pelo repasse de preço. Até porque, no passado, você repassava muito mais fácil os aumentos, hoje já não consegue mais passar tudo, pelo maior comprometimento da renda da população com diversos gastos e dívidas”, diz o consultor Manoel Araújo, sócio diretor da Martinez de Araújo, e ex- CarrefourCotação de Carrefour e membro de conselho de administração de varejistas.
Além disso, o avanço das apostas digitais, como “bets” e os “joguinhos”, tem retirado ao mês de R$ 20 bilhões a R$ 30 bilhões da renda disponível da população, informou o Banco Central em abril, algo que inexistia anos atrás. Ao se anualizar o valor, isso equivale a duas vezes o tamanho da receita bruta anual do Grupo Carrefour.
De acordo com um diretor de uma rede de minimercados e supermercados, com R$ 700 milhões faturados em 2024, já há sinais de um desequilíbrio entre volume e receita nas lojas. Existe uma dificuldade em manter os repasses de preços e, ao mesmo tempo, a quantidade comercializada.
“O problema é que o volume está caindo todo mês, 2%, 3%. Nós até seguramos parte dos repasses neste ano, e temos repassado 90% a 95% das altas, mas o volume ainda cai”, afirma esse executivo.
“O que temos feito, no fim de todo os meses, é lançar promoções de redução de até 20% nos preços, para melhorar receita e o meu caixa. E temos buscado novas marcas para fugir dos reajustes das grandes indústrias”, diz.
Na avaliação do diretor comercial de uma rede de atacado e varejo com 55 lojas, a complexidade no “pricing” (estratégia para definição de preço) está maior hoje, o que mostra limitação em ganhar apenas com inflação.
“A pergunta de um milhão de dólares hoje está em acertar a conta da elasticidade-preço da demanda dos produtos-chave na cesta”, diz um diretor comercial de uma supermercadista com 55 lojas.
“Já sabemos quais são os itens mais ou menos sensíveis aos reajustes e isso evita tropeços. Mas como os hábitos de compra mudaram muito após a pandemia, e ainda precisamos repassar o resto da alta do dólar, negociamos preços e depois calibramos isso”, diz ele.
Sobre a elasticidade-preço da demanda, ela mede a variação percentual da procura por bens em relação ao valor da mercadoria. Há produtos mais ou menos sensíveis aos aumentos.
Se esse índice é maior do que 1, as variações no preço tendem a afetar a procura pelos clientes, e se ficar abaixo de 1, há menor risco de uma perda na demanda.
Segundo Priscila Ariani, diretora de marketing da Scanntech, fornecedora de dados ao varejo, isso varia segundo marca e categoria de produtos.
“No caso do café, a demanda é bastante inelástica. Os preços por quilo aumentaram 98% [em 12 meses], mas o volume caiu somente 4,3%. Já no chocolate, na média deste ano, o preço subiu 14% e o volume caiu 4%. Ou seja, muito mais elástico do que o café”, disse ela. “O tema da elasticidade de demanda é muito complexo e depende de diversas variáveis.”
Dados obtidos pelo Valor junto à Scanntech Brasil mostram que, em abril, excluindo o efeito Páscoa, a maioria das categorias no varejo alimentar teve queda de volume em unidades frente a 2024, e com preços até acima da inflação oficial do período, disse no relatório Pedro Fernandes, sócio da consultoria McKinsey & Company.
De janeiro a abril, segundo a Scanntech, o total vendido em unidades nos supermercados, hipermercados e atacarejos caiu 0,6%, e as embalagens reduziram quase 1% de seu tamanho.
Ao mesmo tempo, o preço pago por volume pelo consumidor no quadrimestre subiu 7,8% frente a 2024 (veja tabela acima).
“Essa inflação alta é reflexo da pressão maior do custo da mercadoria sentida pelas companhias”, afirma Fábio Bentes, economista da CNC, a confederação do comércio e turismo.
Bentes lembra que ainda pesa nessa linha do CPV o custo da mão de obra direta, só que as negociações de dissídios salariais ainda não foram iniciadas. Esses aumentos salariais no setor em São Paulo são fechados entre setembro e outubro, portanto, é outra variável a considerar nos próximos meses.
Uma possível desaceleração da inflação no segundo semestre, como projeta o governo, e eventual retomada dos volumes, pode trazer maior equilíbrio nessa conta.
Há uma previsão mais positiva por parte dos especialistas sobre esse tema para o médio prazo. Ariani diz que a empresa tem ouvido de clientes uma menor pressão nos preços, que andaram de mãos dadas com o dólar. No ano passado, diz ela, 75% do aumento nas tabelas veio de categorias que tinham alta correlação com dólar, que tem mostrado maior controle em 2025.
A inflação de alimentos e bebidas ficou em torno de 1% de janeiro a março, em média, e atingiu 0,82% em abril, segundo o IPCA/IBGE. Houve uma certa desacaleração, mas ainda está acima da média geral.
Neste ano, as grandes empresas do setor mostraram, nas últimas semanas, em teleconferência de resultados, as dificuldades em equilibrar vendas, custos e margens.
E embora exista uma expectativa mais positiva para a segunda metade do ano, mesmo as companhias que conseguiram gerenciar essas linhas afirmam que há “ventos contrários” que ainda podem afetar esse cenário em 2025.
A HyperaCotação de Hypera errou na conta de estoques, e tem reduzido esse volume estocado desde o ano passado. Outros competidores sentiram o mesmo, mas, com isso, ela acabou vendendo menos no começo do ano, mas o custo das mercadorias caiu num ritmo menor que as vendas.
A empresa foi obrigada a dar descontos nos medicamentos genéricos para desovar produtos, mas disse a analistas, em abril, que está na fase final de ajustes.
A receita líquida caiu 41% de janeiro a março frente a 2024, o custo dos produtos vendidos recuou menos da metade disso (19,7%), e por isso, a margem bruta diminuiu de 61% para 47% no período. “A redução da margem é consequência, principalmente, do patamar mais baixo de receita, que diminui a alavancagem operacional pela menor diluição de custos fixos”, disse, em abril, diretor financeiro, Ramon Sanches.
Para a analista Andréa Aznar, do BBCotação de BB Investimentos, a queda também teve a ver com uma alteração do mix de produtos vendidos. “Houve queda no faturamento de medicamentos com margens melhores”, disse ela em relatório. Procurada, a Hypera não comentou.
Fabricante de massas e biscoitos, a M. Dias BrancoCotação de M. Dias Branco sentiu o efeito do câmbio e do aumento do óleo de palma (24% de um ano para cá). Em linhas gerais, a empresa subiu seus preços em 3,7% de janeiro a março, e perdeu volume (- 0,7%).
A receita avançou 3,2%, menos que o custo das mercadorias, com quase 12% de alta (só insumos subiram 17%). Isso tudo atrapalha no processo de diluição de custos, e a direção avisou, em abril, em teleconferência, que fez novos repasses em massas e biscoitos, para tentar ganhar no valor faturado.
Esses reajustes podem melhorar a diluição dos custos no segundo trimestre, se gerarem receita maior e o volume não cair – o cálculo que está na mesa das empresas neste momento. A companhia é dona de marcas como Adria (massas), Piraquê (bolachas) e Jasmine (bolos, biscoitos).
Gustavo Theodozio, vice-presidente de investimentos e controladoria da M. Dias Branco, disse, em entrevista ao Valor em maio, que acredita num começo de recuperação de unidades vendidas neste segundo trimestre. Procurada, a empresa não se manifestou, para além do já publicado.
A NaturaCotação de Natura também mencionou a questão dos custos dos produtos. Na empresa, o CPV e a receita subiram praticamente na mesma velocidade neste ano porque, de janeiro a março, segundo disse, ainda não tinha sentido os efeitos cambiais e pressões inflacionárias em seus custos. Mas, ao mesmo tempo, as receitas já haviam se beneficiado dos reajustes após o início do ano.
Embora inicialmente protegida, a Natura afirmou, em seu material de resultados do primeiro trimestre, que pode haver volatilidade temporária com a desvalorização cambial da Argentina, a inflação de outros países e as efeitos adversos do câmbio no país.
Procurada para comentar, a Natura disse que “está no processo de integração entre as marcas Natura e Avon na América Latina, e essa fase deve ser concluída neste ano, e com isso, o ciclo dos custos de transformação serão encerrados em 2025, e não deve superar o total registrado em 2024”. Ainda disse que as eficiências geradas são reinvestidas em frentes estratégicas, e que há alguma volatilidade entre trimestres com isso, mas de maneira mais regular em comparação com anos anteriores.
Na área de bebidas, a AmbevCotação de Ambev conseguiu diminuir o custo das cervejas em mais de 2% e a receita subiu 3,2% no país. Em bebidas não alcoólicas (refrigerantes, sucos, águas), aconteceu o oposto.
O custo subiu mais do que receita, e a margem bruta caiu no Brasil, com efeito de “ventos contrários em commodities, especialmente PET [embalagens de plástico]” e mix de marcas vendidas.
Sobre o risco de mais pressões no segundo trimestre, a Ambev disse, em seu balanço, que fará escolhas disciplinadas de gestão de receita, e uma governança rigorosa de custos e despesas.
Procurada para comentar, a empresa disse que a expectativa para 2025 é que custo de produto vendido (por hectolitro) cresça entre 5,5% e 8,5%, e que as ferramentas de hedge (protegem parcialmente de altas no câmbio) ajudarão a expandir margem de forma consistente.
Para a indústria de alimentos e bebidas, cerca de dois terços do custo de produtos, em média, é o peso da compra de insumos (que reflete dólar), e depois vêm mão de obra, embalagens e outros. No varejo, também o impacto maior é o preço de compra da indústria.
Mas há uma diferença, porque o varejo desconta dessa linha os acordos comerciais fechados com os fabricantes, que podem gerar verbas comerciais e bonificações. Só que, para isso existir, é preciso alcançar metas negociadas para receber essas verbas.
Na maior varejista do país, o Carrefour, o custo das mercadorias e serviços subiu 5,5%, para quase R$ 24 bilhões de janeiro a março, e a venda de produtos e serviços, cresceu 4,5%. No Assaí, o custo avançou 7,4% e a receita, 7,7%.
“A inflação de mercadorias está bem alta, está difícil repassar. Mais difícil que mão de obra” explica uma fonte próxima às empresas. “E também tem o ‘downgrade’ de marcas, a população está comprando mais produtos de entrada, de menor margem”, disse. (Colaborou Helena Benfica).
Fonte: Valor Econômico