O historiador israelense Yuval Noah Harari tornou-se um dos mais importantes pensadores contemporâneos ao publicar livros em que explica conceitos complexos em linguagem acessível, repletos de exemplos históricos saborosos e análises originais. A primeira obra, “Sapiens: uma breve história da humanidade” (Companhia das Letras), foi lançada em 2011 e vendeu 25 milhões de cópias em todo o mundo. Seguiram-se outros best-sellers como “Homo Deus” (2015) e “21 lições para o século XXI” (2018). Em seu mais recente trabalho, “Nexus” (2024), ele aborda as redes de informação da Idade da Pedra à inteligência artificial.
Em São Paulo, onde participou do lançamento do SP2B Beyond Business, evento de inovação, empreendedorismo e urbanismo que vai ocorrer em agosto de 2026, e para o qual são esperadas 500 mil pessoas, Harari falou ao Valor. Disse que as mudanças em curso no comércio global não preveem uma nova ordem – “apenas um novo caos” -, alertou que a IA pode, sim, destruir a democracia, e afirmou que não se deve esperar que as “big techs” regulem a si mesmas. A seguir, os principais trechos da entrevista:
Valor: O presidente americano Donald Trump está usando tarifas não apenas como ferramenta econômica para redesenhar o comércio global, mas como instrumento estratégico para aumentar sua influência em outras áreas, como se vê no caso do Brasil. Que tipo de nova ordem vai emergir dessas mudanças?
Yuval Harari: O problema é que não existe uma nova ordem. Existe apenas um novo caos. A ordem liberal global dominou o mundo por décadas, e tinha seus problemas. Não era perfeita, mas ainda assim era uma ordem. Agora o que estamos vendo é que líderes como Trump estão simplesmente destruindo completamente os fundamentos da ordem global e não têm nenhuma alternativa para oferecer. Eles não apresentam uma nova ordem. Na verdade, estão apoiando essa desordem e esse caos. Eles não têm resposta para a pergunta mais básica que é: como potências rivais devem administrar suas disputas?
Na ordem liberal, existiam leis internacionais, normas e valores. Existiam organizações internacionais. A lei mais importante era o tabu da conquista imperial. Um país não pode simplesmente invadir e conquistar outro só porque é mais poderoso. Agora tudo isso está destruído. Você vê que líderes como Trump não acreditam em leis internacionais. Não acreditam em cooperação internacional. O maior tabu foi quebrado.
Valor: Pode dar um exemplo?
Harari: A Rússia já sofreu mais de um milhão de baixas tentando conquistar a Ucrânia sem nenhuma justificativa — apenas porque pode, apenas porque é poderosa. E você vê Donald Trump basicamente concordando com a linha russa. E isso está se espalhando pelo mundo: para o Oriente Médio, para a América do Sul. Os EUA dizem que querem o Panamá, ou o Canal do Panamá; a Venezuela diz que quer a Guiana. Isso vai afetar o mundo todo.
Valor: Existe alguma solução à vista?
Harari: Todos os países deveriam fazer tudo o que puderem para, antes de tudo, restabelecer alguma ordem — e, acima de tudo, o tabu sobre a conquista imperial. Porque se isso for quebrado, o impacto será enorme. Nenhum país se sentirá seguro a menos que invista cada vez mais dinheiro em mísseis, armas e armamentos cibernéticos, o que fará com que outros países se sintam menos seguros e gastem ainda mais em armas — e isso é apenas uma escalada da corrida armamentista.
Valor: Qual o papel do Brasil nesse cenário?
Harari: O Brasil é um país muito poderoso e tem uma relação tradicionalmente próxima — ou potencialmente próxima — da Rússia. Então, por exemplo, no caso da invasão russa à Ucrânia, eu esperaria que o Brasil usasse sua considerável influência em relação à Rússia para transmitir a mensagem de que isso é simplesmente inaceitável. Ok, a Rússia tem preocupações legítimas de segurança. Isso deve ser tratado. Mas a ideia de que se pode invadir e conquistar outro país por ser mais poderoso é totalmente inaceitável.
Valor: E em relação ao comércio global?
Harari: Enquanto cada país estiver tentando, sozinho, garantir o melhor acordo com os Estados Unidos, todos perdem. Porque é dividir para conquistar. É dividir para governar. Então, espero que vejamos uma coalizão de vários países tentando estabelecer e manter as regras do comércio global, de forma que os Estados Unidos não possam simplesmente manipulá-los individualmente, colocando-os uns contra os outros e assinando acordos diferentes com cada país.
Valor: Qual a relevância da inteligência artificial na disputa pela liderança econômica global?
Harari: A IA vai transformar completamente tudo — a economia, o setor militar, o sistema político. Será maior que a revolução industrial do século XIX, quando os poucos países que se industrializaram primeiro conquistaram e exploraram o resto do mundo. Agora, com a IA, isso está acontecendo de novo. E, atualmente, há apenas dois países liderando essa corrida: os Estados Unidos e a China. A menos que os outros países ajam rapidamente, eles em breve se verão completamente dominados, militar e economicamente, pelas poucas superpotências da IA.
Valor: Em seu mais recente livro, “Nexus”, o senhor aborda o tema das redes de informação em diferentes contextos políticos. Neste momento vemos a ascensão de vários regimes autoritários no mundo, não necessariamente ditaduras, mas governos que desafiam as normas da democracia liberal. Como as redes de informação influenciam esses modelos?
Harari: Ditaduras e democracias podem ser vistas como diferentes tipos de sistemas de informação. Numa ditadura, todas as informações vão para um único lugar, de onde todas as ordens são emitidas. A democracia é um sistema distribuído de informação, onde organizações, indivíduos, empresas podem trocar informações e tomar decisões sem precisar passar por um centro.
O que estamos vendo agora, por causa do surgimento de novas tecnologias da informação, é que o equilíbrio entre sistemas de informação centralizados e descentralizados está mudando. No fim do século XX, redes descentralizadas de informação funcionavam melhor, porque era impraticável tentar analisar todas as informações em um só lugar. Por isso, as ditaduras não funcionavam bem.
Agora, com o avanço da inteligência artificial, dos algoritmos e afins, as ditaduras têm o potencial de funcionar muito melhor, porque no centro não estão mais humanos, mas algoritmos e inteligências artificiais que conseguem analisar todas as informações. Então, o poder está se deslocando dos humanos para os algoritmos — algo que vimos até nos Estados Unidos, com todo esse esforço de redução de pessoal, em que demitiram dezenas de milhares de servidores civis humanos e os substituíram por algoritmos e IAs.
Valor: E quanto às democracias?
Harari: Elas estão enfrentando dificuldades com esse novo cenário informacional, porque estão sendo sobrecarregadas por “fake news”, mentiras, teorias da conspiração — e leva tempo para construir os mecanismos que verificam os fatos. Informação não é verdade. A maior parte da informação — isso sempre foi verdade ao longo da história — é lixo. É composta de mentiras, ficções e fantasias. A verdade é um tipo muito raro de informação, porque ela é cara. Leva muito tempo e dinheiro para pesquisar e encontrar a verdade. Já a fantasia é muito barata. Não custa nada inventar a primeira coisa que vem à cabeça.
Historicamente, para que funcionem, as democracias tiveram que construir mecanismos capazes de filtrar esse oceano de informações falsas e encontrar a verdade. Instituições científicas, meios de comunicação, tribunais — esses são os mecanismos que as democracias usam para esse fim. Mas leva tempo para construí-los e mantê-los. E agora, com a revolução da tecnologia da informação, as instituições antigas não sabem como lidar com o dilúvio de novas informações. E o processo para construir novas instituições e mecanismos é demorado.
Valor: A IA pode vir destruir a democracia?
Harari: Sim, isso não é inevitável. Não é uma profecia. Mas se não administrarmos corretamente a tecnologia da IA, ela pode destruir a democracia. Devemos lembrar que a democracia é construída sobre a tecnologia da informação. Durante a maior parte da história, não existiam democracias em larga escala. Os únicos exemplos de democracia que temos do mundo antigo são pequenas tribos ou cidades-estados como Atenas. Não há exemplos de democracias em larga escala — milhões de pessoas espalhadas por um país enorme gerenciando seus assuntos de forma democrática — porque faltava a tecnologia da informação necessária para que houvesse uma conversa democrática.
Democracia é uma conversa. É muita gente falando para decidir em conjunto. Já a ditadura é uma pessoa decidindo tudo. A democracia em larga escala só se tornou possível na era moderna tardia, por causa das novas tecnologias da informação — jornais, rádio, televisão — que tornaram possível, pela primeira vez, uma conversa em grande escala. Milhões de pessoas em todo o Brasil podem discutir políticas econômicas, sociais, em tempo real, porque têm rádio, televisão e jornais. Como a democracia é construída sobre a tecnologia da informação, qualquer grande mudança nessa tecnologia provoca um terremoto na democracia. E é isso que está acontecendo agora.
Valor: Em vários países, inclusive o Brasil, legisladores estão debatendo leis para tornar as plataformas de mídia social responsáveis por eventuais abusos. Há, no entanto, resistência da parte de pessoas que dizem que isso seria censura e argumentam que as redes sociais já têm controles internos para coibir atos ilícitos. Seria sábio deixar que as “big techs” regulamentem a si mesmas?
Harari: Você não pode confiar que elas vão se autorregular. O mais importante é diferenciar humanos de algoritmos. Humanos têm liberdade de expressão, e devemos ser muito cuidadosos antes de censurar ou banir a fala humana —em casos extremos, sim, mas com muito cuidado.
Algoritmos não têm liberdade de expressão. O problema nas redes sociais não é uma pessoa inventar uma notícia falsa. O problema é que um algoritmo — como o do Facebook, do TikTok ou do Twitter — pega essa notícia falsa e a espalha deliberadamente para milhões de pessoas, com o objetivo de chamar atenção, atrair usuários e gerar mais dinheiro para a plataforma. Esse é o problema.
É como imaginar uma situação de um século atrás, em que alguém na rua conta uma mentira. Você não o prende só porque ele mentiu. Mas então o editor de um grande jornal publica essa mentira na capa do jornal. E quando você reclama com o jornal — “Por que vocês colocaram ‘fake news’ na capa?” — eles dizem: “O que você quer de nós? Não inventamos isso. Foi aquela pessoa. Ela mentiu.” Sim, ela mentiu, mas vocês decidiram colocar isso na capa. É responsabilidade de vocês.
Deveria ser o mesmo com as redes sociais. Se alguém no Facebook mente, se é um ser humano, geralmente está protegido pela liberdade de expressão. Mas se o algoritmo do Facebook decide pegar essa mentira e espalhá-la no ‘feed’ de notícias de milhões de pessoas, isso é culpa do algoritmo. E isso não está protegido pela liberdade de expressão. Deve ser claramente regulado.
Fonte: Valor Econômico