Com o avanço do ciclo de corte de juros e os bancos com menor apetite para captar recursos para colocar na ponta do crédito, 2024 tende a ser um ano de recuperação para o setor de fundos de investimentos, segundo Gustavo Pires, diretor-executivo e sócio responsável por serviços de gestão de recursos e seguridade da XP. Com o olhar privilegiado de quem acompanha o mercado numa das maiores plataformas de distribuição de produtos de investimentos de terceiros no Brasil, o executivo diz que a reação dos multimercados e das carteiras de ações, no rali dos ativos no fim do ano passado, pode ser um “indicador antecedente” de um período mais promissor para a tomada de risco.
“O ano de 2023 foi sofrível para captação. Foi o segundo consecutivo de muito resgate. E isso atrapalha muito do ponto de vista da indústria, porque você [a gestora] fica muito tempo debaixo d’água”, observa Pires, em conversa com o Valor, ressaltando que em mais de duas décadas nunca houve dois anos em sequência de saques e com volume tão representativo.
Mas mesmo com resgates líquidos acumulados de quase R$ 260 bilhões em 2022 e 2023, em 2021, melhor período da história para o setor, os ingressos somaram mais de R$ 400 bilhões, destaca Pires. Na conta de 36 meses, portanto, o saldo ainda é positivo. “A gente fala de resgate, mas houve crescimento.”
Com o início do afrouxamento monetário, em agosto, que já conduziu a taxa básica da economia de 13,25% para 11,75% ao ano e a continuidade do ajuste – que pode levar o juro para a casa dos 9% – é de se esperar do investidor uma dinâmica pró-diversificação.
Pelos dados da Anbima, considerando-se o último ciclo de corte da Selic, entre 2016 e 2020 – quando a taxa básica saiu de 14,25% para o nível ultrabaixo de 2% ao ano na pandemia de covid-19 -, o saldo entre captações e resgates dos multimercados e fundos de ações foi positivo em R$ 542 bilhões. Desta vez, contudo, a captação tende a ser “menos democrática, o sol não deve brilhar para todos”, afirma Pires. “Tem gestor já mais fragilizado, e o processo de consolidação dos últimos dois anos deve se acentuar. Alguns enfrentaram dificuldades para permanecer no jogo, com algumas casas fechando e outras se juntando”, afirma.
Se, no passado, bastava ter um terminal financeiro e dois gestores experientes saindo de tesouraria de banco para abrir uma asset com seu nome na placa, a exigência regulatória tornou esse passo mais espinhoso. “Quem tentou fazer isso não foi a lugar nenhum, virou ‘family office’, gerindo o próprio dinheiro. Mas fazer gestão de recursos de clientes, captar de fato, isso não aconteceu.”
O custo de empreender também ficou mais alto. Da gestão à estrutura operacional, os profissionais são caros e o mercado passou a ser mais competitivo. Casas multiprodutos têm uma resistência melhor que as dedicadas apenas a um multimercado macro ou a um fundo de ações. Pires diz que, no segmento de fundos tradicionais, a tendência é as assets juntarem times. Fusões e aquisições (M&A, na sigla em inglês) de fato devem ocorrer no rol dos alternativos, a fim de reunir competências que não tenham separadamente. “O mercado está começando a afunilar. E começa a ter algo que não se via no passado… as grandes casas não tinham apetite para ser plataformas de gestão”, diz.
Numa pesquisa com 32 gestoras da rede XP, 27 (84,4%) dos entrevistados apontam ter uma visão construtiva para a indústria
Um movimento emblemático é a recente entrada da Lumina Capital, especializada em crédito estruturado, no capital da Verde Asset, de Luis Stuhlberger, ao comprar 24,9% da fatia que pertencia ao UBS /Credit Suisse. A troca de gestão dos fundos imobiliários do grupo suíço, operação adquirida pelo Pátria numa disputa quente no fim do ano, traz um “cheiro” de que o universo dos alternativos listados ou carteiras de longo prazo, que têm múltiplos de avaliação mais elevados, tendem a dominar a agenda de M&A no Brasil de 2024.
Numa pesquisa feita com representantes de 32 gestoras da rede XP, 27 (84,4%) dos entrevistados apontam ter uma visão construtiva para a indústria de fundos em 2024, com 31 deles indicando estar num momento de expansão. Para 53,1%, o segmento que mais deve crescer é o de previdência, pelo empurrão da nova legislação tributária. A classe de ativos vista como de maior oportunidade neste ano é a de ações, de acordo com 25%.
A expansão do negócio, de acordo com a sondagem, não se limita apenas à grade de produtos ofertados, mas também ao lançamento de estratégias e à equipe de gestão. Embora algumas gestoras tenham enfatizado parceria com plataformas (19%), 72% das gestoras destacaram a inclusão de novos produtos na grade como principal vetor de crescimento.
“Olhando para 23, os gestores não fizeram por onde. Se pegar os multimercados, eles rodaram ali por volta de 70% do CDI, na média. Os gestores de ações foram um pouco melhor, mais perto do Ibovespa. E os fundos de crédito tiveram os eventos de Americanas, Light, Unigel, então, no geral, a turma acabou ficando abaixo do CDI.”
No fim do ano, houve uma boa recuperação, prossegue Pires, com 2023 podendo ser dividido em duas fases, uma até outubro, em que “ninguém batia o CDI” e novembro e dezembro, quando a “cara ficou diferente, a foto ficou menos feia”. Em janeiro de 2024, até o dia 17, os fundos captaram R$ 97,8 bilhões, mas o dinheiro foi todo para a renda fixa, em estratégias de liquidez e caixa. Multimercados e fundos de ações ainda viram saques de R$ 12,9 bilhões.
Com a Selic em dois dígitos, o grande concorrente do setor no ano passado foram os ativos isentos de imposto de renda. Dentro dos bancos, foi o caso das letras de crédito imobiliária e do agronegócio (LCI, LCA), além dos certificados de depósitos bancários (CDB), que não têm benefício fiscal, mas são um instrumento tradicional de captação e têm estoque gigante, na casa dos R$ 2 trilhões.
“Quando chega 2024, sua LCI de 13% ao ano vai ser 10% na hora que vencer. O retorno de 1% ao mês já não está acontecendo mais como antes. E tem um segundo fator: os bancos pararam de expandir carteiras de crédito de uma maneira geral, ou têm expandido de forma mais tímida”, afirma Pires. E, se a disposição para captar é menor, a tendência é que a rolagem não seja mais a 99% do CDI, que era mais alto, mas a 92%, 91% de um CDI menor. “O produto de crédito bancário, naturalmente, perde atratividade. Neste ano, já perderia por conta do ciclo monetário, de redução de taxas de juros. E tem um duplo efeito negativo, que é o fato de o banco estar com menor apetite.”
Debêntures incentivadas e certificados de crédito imobiliário e do agronegócio (CRI e CRA), que têm benefício fiscal para a pessoa física, ainda podem fazer sombra à indústria de fundos, mas depois de emissões da ordem de R$ 300 bilhões em incentivados em geral em 2023, o espaço na carteira dos investidores pode ser menor.
A favor dos fundos de crédito, pesa o efeito-calendário, que a partir de fevereiro começa a mostrar uma base limpa do episódio da Americanas no desempenho de 12 meses. A varejista revelou um rombo bilionário no seu balanço em janeiro do ano passado e até mesmo carteiras líquidas, usadas para reservas de emergência, sentiram o baque.
Outras questões que vão mexer com a indústria são a nova regulação do setor, a Resolução 175, e a incidência do “come-cotas” nos fundos fechados exclusivos ou reservados a poucos cotistas. Muitos desses veículos usados para gestão patrimonial de famílias ultrarricas estavam sob a casca de multimercados, onde havia o diferimento tributário, que amplificava os ganhos de investimentos ali encapsulados no tempo.
“Cem por cento dos clientes com fundos exclusivos estão repensando o que fazer. Uma vez que pagou o IR com alíquota menor e ficando líquido, a primeira coisa que ele pensa é se vai manter os recursos no Brasil ou lá fora”, diz Pires. No tabuleiro de “War” que prevaleceu por cerca de duas décadas, com grandes private banks detendo um “pool” de recursos em veículos que dificilmente se movia, agora a chacoalhada tributária “zera o jogo”.
O executivo espera que um fluxo não desprezível vá para fora do Brasil, já que não haverá o diferimento fiscal. A tendência é diminuir a quantidade de fundos. “Um efeito colateral é que o multimercado não necessariamente toma resgate, mas perde espaço dentro da alocação. O grande vencedor deve ser a previdência privada.”
Pires cita que os veículos tradicionalmente usados para a reserva da aposentadoria hoje têm uma flexibilidade de alocação que não tinham no passado. “A regulação avançou, e para nem todo mundo entre os clientes abastados a ficha caiu.” O mandato abrange questões sucessórias, não há o imposto sobre doação e herança, a transferência dos recursos se dá fora do inventário.
Não vai ser de uma hora para outra, mas ao longo do ano, diz Pires. “Muitos clientes estão diminuindo ou encerrando os exclusivos porque não veem mais o benefício direto”, afirma. Pode ser um empurrão também para os fundos de investimentos em participações (FIP) de infraestrutura que preservam a isenção de imposto e “têm taxa de retorno nominal maior que o real estate [imobiliário]”.
Fonte: Valor Econômico

