Por Matthew Dalton e Eric Sylvers — Dow Jones, de Bir Rebaa (Argélia)
25/09/2023 05h02 Atualizado há 3 dias
Lugares antes pouco conhecidos do mundo da energia, que vão da costa do Congo até o Azerbaijão, vivem um boom de crescimento à medida que a Europa encontra novas fontes de gás natural para substituir os estoques russos que costumavam abastecer o continente. Esse deslocamento está redesenhando rapidamente o mapa da energia mundial.
Em Bir Rebaa, nas profundezas do Saara, a empresa de energia italiana Eni e a estatal de energia da Argélia perfuraram dezenas de poços em uma questão de meses para produzir gás em campos que ainda não eram explorados.
Três gasodutos sob o Mar Mediterrâneo ligam as vastas reservas de gás da Argélia à Europa. Durante grande parte da última década, a Gazprom, a gigante russa do gás, manteve preços baixos, o que acabou por excluir fornecedores como a Argélia do mercado europeu.
A Argélia mantém uma forte aliança com a Rússia há muito tempo, e compra grandes quantidades de armas de Moscou. O súbito entusiasmo da Europa pelo gás argelino complica essa relação.
“Temos laços de amizade e políticos, mas negócios são negócios”, disse o ministro da Energia da Argélia, Mohamed Arkab, em uma entrevista.
Autoridades argelinas negociam novos contratos de gás com compradores na Alemanha, na Holanda e em outros países da Europa. A italiana Eni tem feito grandes investimentos na produção da Argélia. O governo argelino também está em negociações com as gigantes americanas Chevron e Exxon Mobil, a respeito de acordos que permitiriam às duas empresas produzir gás no país pela primeira vez.
Um consórcio liderado pela BP, que tem sede em Londres, impulsiona a produção de gás no Azerbaijão, a antiga república soviética no Cáucaso. Uma rede de gasodutos de 3.380 quilômetros liga o Azerbaijão ao sudeste da Itália. Autoridades azerbaijanas dizem que estão mais perto do que o previsto de cumprir a promessa de dobrar as remessas de gás para a Europa até 2027.
A Eni está a ponto de começar a produção de gás natural liquefeito (GNL) em uma planta flutuante de liquefação na costa do Congo.
Toda essa atividade tem redirecionado o fluxo de gás natural ao redor do mundo. Antes o gás fluía principalmente para o sudoeste, da Rússia em direção ao Mediterrâneo. Agora a Europa se prepara para aumentar as importações da África, e o gás chegará à Itália e de lá seguirá para a Áustria e outros países. As exportações mundiais de gás natural liquefeito saltaram para um nível recorde, alimentadas pelo forte aumento das remessas dos EUA para a Europa.
A Europa espera que os novos fluxos proporcionem uma reserva de energia ao longo dos próximos três anos, período em que autoridades e analistas temem que a crise de abastecimento seja mais grave. Também existe a expectativa de que o novo fornecimento baixe os preços do gás, em alta desde a interrupção dos serviços dos gasodutos Nord Stream 1 e 2, os principais canais de transporte do gás russo, avariados por sabotagem em setembro de 2022. Os novos estoques de gás substituiriam ainda alguns dos combustíveis mais caros de que a Europa dependeu no ano passado, entre eles o gás natural liquefeito dos EUA e do Catar.
Antes de invadir a Ucrânia, a Rússia fornecia 45% do gás importado pela União Europeia. Hoje ela é responsável por apenas 13%. Ainda assim, Moscou pode pressionar os estoques de energia da Europa se suspender essas remessas, como fez nos meses logo antes e depois de invadir a Ucrânia, em fevereiro de 2022.
A invasão russa ocorreu em um momento complicado para o setor energético. Durante a pandemia de covid-19 as empresas cortaram investimentos por causa do colapso dos preços do gás natural e do petróleo. E depois os produtores não estavam preparados para o forte aumento da demanda quando os lockdowns foram relaxados – ou para os transtornos do mercado provocados pela guerra.
Autoridades e executivos ocidentais embarcaram em uma campanha intensiva de diplomacia energética. O então premiê da Itália, Mario Draghi, e depois sua sucessora, Giorgia Meloni, viajaram para a Argélia para acertar novos acordos de compra de gás. O premiê alemão, Olaf Scholz, visitou países africanos com reservas energéticas significativas nos meses que se seguiram ao início da guerra. O executivo-chefe da Eni, Claudio Descalzi, e Guido Brusco, que supervisiona a produção de petróleo e gás da empresa, percorreram todo o continente em busca de novas fontes de gás para a Itália.
“Começamos imediatamente a nos conectar com nossos vizinhos, em especial aqueles que tinham mais possibilidade de reagir rápido, como a Argélia”, disse Brusco.
O populista Luigi Di Maio, que era ministro das Relações Exteriores da Itália quando a guerra começou, visitou o Azerbaijão para garantir acordos de entrega de novos suprimentos.
A planta de petróleo e gás da Eni em Bir Rebaa fica no Saara, quase 800 quilômetros a sudeste da capital da Argélia, Argel. O governo reforçou a segurança das instalações depois que militantes islâmicos ligados à Al-Qaeda atacaram uma planta de petróleo e gás da BP no sudeste da Argélia há dez anos, fizeram reféns entre os trabalhadores e mataram 38 pessoas.
O complexo da Eni é protegido por soldados argelinos armados e por pessoal da área de segurança. Os trabalhadores permanecem no local em turnos de várias semanas. Um bando de gatos combate os escorpiões do deserto.
Alessandro Tiani, diretor-executivo da Eni na Argélia, chegou ao país poucas semanas depois do início da guerra, com a missão de garantir que a Itália – e, por extensão, todo o continente – teria gás suficiente para suportar uma suspensão do fornecimento russo. “Pusemos o pé no acelerador até o máximo”, disse ele.
Autoridades argelinas dizem que neste ano o país poderá exportar 100 bilhões de metros cúbicos de gás – o equivalente a cerca de 65% dos quase 160 bilhões de metros cúbicos importados da Rússia pela UE em 2021, antes da guerra.
Anos atrás, antes do ingresso do gás russo, de baixo preço, a Argélia era o principal fornecedor da Itália. Atualmente, o país norte-africano voltou a deter o primeiro lugar, ao ajudar a Itália a substituir, quase totalmente, o gás que recebia da Rússia, que em 2021 respondia por 40% de suas importações.
A Itália quer aproveitar esse sucesso para exportar parte dos suprimentos de gás para o outro lado de sua fronteira norte, para a Áustria, a Alemanha e outros países vizinhos. O governo aprovou recentemente em rito sumário a construção de um novo gasoduto para transportar gás rumo ao norte. A Snam, a empresa que controla a rede de gás na Itália, administra os fluxos a partir de um prédio exageradamente discreto situado a alguns quilômetros ao sul de Milão. Em seu interior, um muro de luzes de LED mostra gás fluindo para dentro e para fora da Itália e percorrendo a península. O ano passado foi a primeira vez em que a Itália enviou grandes quantidades de gás ao exterior – para a Áustria.
Em vista da recente importância adquirida pela Argélia como fornecedora de produtos energéticos, os EUA e a Europa tentam afastar o país da influência da Rússia. A Argélia é uma das maiores compradoras de equipamento militar russo, e gerações de autoridades argelinas foram treinadas na Rússia. Em junho, o presidente argelino, Abdelmadjid Tebboune, se reuniu com Vladimir Putin, em Moscou, e os dois pactuaram o que as duas nações chamaram de “uma parceria estratégica ampliada”.
O orçamento da Argélia para este ano contém o esboço de um plano que prevê a utilização dos lucros da venda de petróleo e de gás para praticamente dobrar seu orçamento de defesa. Autoridades ocidentais temem que uma grande parcela desses gastos vá para a indústria armamentista russa. Graduados membros do governo americano alertaram a Argélia de que compras significativas da Rússia a poriam em risco de sofrer sanções dos EUA, segundo prevê lei destinada a fazer frente às vendas de armas da Rússia, Irã e Coreia do Norte. Os EUA e potências militares europeias dizem ser capazes de preencher a lacuna.
“Compras militares não podem ser revertidas da noite para o dia”, disse uma autoridade americana em Argel. “No entanto, a Argélia pode evitar fazer compras adicionais significativas de equipamentos militares russos, e estamos estimulando o país a diversificar as compras, distanciando-as das aquisições de equipamentos de defesa russos.”
Quando a invasão começou, o governo autoritário da Argélia emitiu sinais desencontrados sobre qual seria sua reação, dizem analistas. Dias após o início da guerra na Ucrânia, o CEO da Sonatrach, a estatal argelina de petróleo e gás, foi citado pelo jornal argelino “Liberté” como tendo dito que a empresa estaria pronta para aumentar as exportações de gás para a Europa a fim de substituir os suprimentos russos.
A Sonatrach recuou rapidamente, dizendo que a fala do CEO tinha sido reproduzida incorretamente, e moveu queixa-crime contra o “Liberté”. Nas semanas que se seguiram, autoridades argelinas deixaram claro que estavam ansiosas por ocupar a participação de mercado deixada pela Rússia. Em abril de 2022, Draghi, o premiê da Itália, se reuniu com o presidente da Argélia em Argel, onde executivos da Eni e da Sonatrach assinaram um contrato que previa o aumento das entregas de gás à Itália.
No Azerbaijão, o consórcio encabeçado pela BP se empenha para ampliar a produção do projeto doméstico de Shah Deniz, no mar Cáspio. As empresas também estão trabalhando para extrair o gás preso debaixo das reservas de petróleo no campo ACG, cerca de 96 quilômetros a leste de Baku, a capital do país, no Cáspio. Somados, esses novos suprimentos contribuirão para que o país cumpra um acordo assinado no ano passado que previa o aumento de suas remessas de gás de 10 bilhões de metros cúbicos para 20 bilhões de metros cúbicos até 2027.
No Congo a Eni produz petróleo a partir de campos em alto-mar há anos, além de bombear o gás natural excedente para um reservatório de armazenamento localizado debaixo do fundo do mar. Quando a economia global aboliu os lockdowns adotados contra a propagação da covid-19, os executivos implementaram um plano de vender esse gás e de produzir maior quantidade do produto por meio do uso de um barco capaz de liquefazer o combustível para navios-tanque de GNL.
A empresa deu então início a negociações para comprar uma das poucas embarcações desse tipo existentes no mercado, da empresa belga Exmar. Ela estava parada, sem uso, em um porto no Uruguai. As concorrentes, no entanto, tinham tido a mesma ideia.
“Todos estavam indo atrás desse ativo”, disse Jonathan Res, diretor-executivo de infraestrutura da Exmar. A Eni anunciou um acordo de compra do navio em agosto de 2022. A empresa disse estar em condições de começar a liquefazer gás neste ano.
Alguns parlamentares europeus temem que a crescente dependência do continente em relação à Argélia e ao Azerbaijão possa expô-lo, mais uma vez, aos caprichos de um fornecedor de produtos energéticos autoritário. Roberto Cingolani, o ex-ministro do Meio Ambiente italiano que comandou a reação diplomática do país à crise energética, após o início da guerra, disse que a melhor política é manter a diversificação entre fornecedores do continente.
“É preciso ter o maior número de fornecedores possível”, disse ele, “para diminuir o risco de que alguém use o gás como alavanca em uma disputa geopolítica”. (Tradução de Lilian Carmona e Rachel Warszawski)
Fonte: Valor Econômico

