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Solange Srour: “Quando você mira o piso, dá uma sensação de maior leniência” — Foto: Gabriel Reis/Valor
A banda de resultado primário criada pelo novo arcabouço fiscal, prevista para acomodar choques inesperados que afetem as receitas ou as despesas, não está cumprindo sua função e virou a meta buscada de fato durante a execução orçamentária. Isso ficou claro neste ano, durante os relatórios bimestrais, quando o governo passou a contingenciar somente quando o limite inferior da margem de tolerância esteve ameaçado de descumprimento. A avaliação de economistas é que a prática afeta a credibilidade da política fiscal, gerando uma distorção entre o compromisso sinalizado pela equipe econômica e o resultado efetivamente entregue.
O novo arcabouço fiscal criado pelo governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva trouxe uma inovação à aferição do resultado primário ao considerar que a meta é considerada cumprida caso o resultado fique dentro da banda de tolerância, que é sempre igual a 0,25 ponto percentual do Produto Interno Bruto (PIB) para mais ou para menos. Em 2024, isso significa que a meta é zero, ou seja, de receitas iguais às despesas, mas ela é considerada atingida se o déficit for de até R$ 28,8 bilhões. No próximo ano, a meta é novamente zero, mas a banda permitirá um resultado negativo de até R$ 30,9 bilhões.
Na teoria, a lógica é a mesma da meta de inflação: buscar o centro da meta, com intervalos de tolerância para acomodar eventuais choques, o que evitaria mudanças da meta a cada evento inesperado. Porém, no caso da política fiscal, o governo tem deturpado o uso da banda, porque vem mirando o limite inferior para contingenciar recursos, o que permite um esforço fiscal menor ao longo do ano, diferente do sinalizado na Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) e na Lei Orçamentária Anual (LOA).
O contingenciamento é um mecanismo previsto na Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) que obriga o governo a congelar recursos dos ministérios ou de emendas parlamentares para garantir o cumprimento da meta fiscal do ano. Antes do arcabouço, só havia um número para a meta. Com a nova regra fiscal, a equipe econômica tem contingenciado apenas quando há risco de descumprir o limite inferior da banda, ou seja, quando há risco de que o déficit seja maior que R$ 28,8 bilhões.
“A ideia da banda em si é excelente, porque você não precisa ficar fazendo ao longo dos exercícios alterações na meta. Mas, do jeito que ela está sendo utilizada, está comprometendo a credibilidade”, afirma Eduardo Nogueira, analista da Instituição Fiscal Independente (IFI) e consultor de Orçamento do Senado Federal. “Em relação ao espírito da regra, a forma como a banda está efetivamente funcionando hoje gera uma distorção”, diz Matheus Rosa Ribeiro, economista da BRCG Consultoria.
Solange Srour, diretora de macroeconomia para o Brasil no UBS Global Wealth Management, lembra que, quando foi anunciado o arcabouço, a mensagem foi que as bandas seriam vistas como uma margem de tolerância para lidar com choques inesperados, principalmente pelo lado da arrecadação. “Ao longo do tempo, principalmente depois que o governo mudou a meta de primário [de 2025 e 2026], ficou claro que o intervalo era o objetivo, e não o centro da meta. Nesse momento, o governo perdeu um pouco a credibilidade da meta, porque quando você mira o piso, dá uma sensação de maior leniência”, diz Srour.
Para poder contingenciar somente quando há risco de descumprir o limite inferior da meta, a equipe econômica utiliza-se de uma interpretação jurídica combinada de um artigo da Constituição Federal, que diz que a administração tem o dever de executar as programações orçamentárias, com um dispositivo do novo arcabouço inserido na LRF que afirma que a meta fiscal será considerada cumprida se alcançado o limite inferior do intervalo de tolerância.
A prática já gerou alerta do Tribunal de Contas da União (TCU), que considerou que mirar o limite inferior pode elevar o risco de descumprimento da meta, além de afetar a credibilidade das regras fiscais e comprometer a gestão fiscal de exercícios futuros. O TCU ainda não se manifestou se o governo está legalmente proibido de contingenciar mirando o centro da meta, como alega a equipe econômica. O tribunal apenas disse que a opção adotada pelo governo não é ilegal, mas não respondeu se o governo pode, por prudência, olhar para o centro da meta.
“Se essa for a interpretação que efetivamente vigorar [a do limite inferior da banda], o que passamos a ver é uma política fiscal que está amarrada para qualquer esforço fiscal acima do piso”, alerta Matheus Rosa. “Isso cria um problemão em termos de comunicação e essa talvez seja a parte mais delicada, porque tem um princípio básico em política fiscal que diz que as metas têm que ser críveis e de fácil comunicação com a sociedade. E o arcabouço, certamente, não é”, afirma Livio Ribeiro, pesquisador associado do FGV Ibre e sócio da BRCG Consultoria.
Ela lembra que, com o limite inferior da banda mais as despesas que ficam excetuadas da meta por disposição legal (parte dos precatórios, ajuda ao Rio Grande do Sul e combate às queimadas), o déficit efetivo de 2024 ficará muito superior ao resultado primário para efeitos de arcabouço. “Temos que separar o que é o déficit para efeitos do arcabouço do que é o déficit [efetivo], que é receita menos despesa. O que faz a dívida andar é receita menos despesa”, frisa Ribeiro.
Solange Srour afirma que a credibilidade do arcabouço e das metas é construída ao longo do tempo, não apenas no dia da aferição da meta. Por isso, ela avalia que a prática de mirar o limite inferior da banda ao longo do ano ajudou a aumentar os prêmios de risco. “A trajetória de como o governo executa sua política fiscal ao longo do ano importa, não só o resultado final, que pode vir de uma receita extraordinária que acontece em novembro ou dezembro”, diz a economista.
Ela faz um paralelo com a política monetária, que também tem meta com margem de tolerância. “O mercado acha muito importante o Banco Central deixar claro que está mirando o centro e não o topo da meta de inflação, então por que não pode ter essa cobrança em relação à política fiscal? Se todo mundo entender que o piso da meta de fiscal é o que realmente está sendo mirado, então a gente pode dizer que a estabilidade da dívida vai ser postergada, porque o piso da meta é menor do que a meta, então fica mais longe esse horizonte de sustentabilidade da dívida”, explica Srour.
Matheus Rosa critica a ausência, no novo arcabouço, de mecanismos de “enforcement” que obriguem a equipe econômica a mirar o centro na meta. “É possível que ocorra alguma receita atípica no final do ano que aproxime o governo do centro da meta. Mas não existe um mecanismo jurídico que garanta que o governo vai perseguir o centro da meta. Esse é o grande ponto.” A BRCG Consultoria calcula que o déficit efetivo de 2024 ficará entre 0,8% a 1% do PIB.
Eduardo Nogueira, da IFI, avalia que o ideal seria o governo assumir que está buscando um déficit, ou, então, tentar de fato buscar o centro da meta. “Não adianta você dizer que está perseguindo uma meta zero, que seria um orçamento equilibrado, que não traria uma pressão fiscal, se você está buscando o limite inferior e ainda tem as várias deduções legais”, diz o analista da IFI. “Pode dar a impressão de que está se buscando utilizar alguns artifícios para que não seja reconhecido que, de fato, é uma política fiscal expansionista”, completa.
Procurados, os ministérios da Fazenda e do Planejamento não comentaram. Os integrantes duas pastas, contudo, têm negado em declarações à imprensa que o governo tem mirado o limite inferior da meta. Eles afirmam que o governo busca sim o centro do meta, mas que o contingenciamento é feito olhando a banda inferior por uma questão legal.
Questionado em setembro em entrevista ao Valor se a equipe econômica não poderia ajustar a mira dos contingenciamentos para o centro da meta, o secretário do Tesouro Nacional, Rogério Ceron, afirmou que a medida poderia gerar um “desgaste importante”, com a paralisação de ações orçamentárias. “Precisa dosar”, disse na ocasião, lembrando que existe o empoçamento financeiro no fim do ano, que ajuda a cumprir a meta de primário.
O empoçamento é quando o Tesouro libera recursos para gastos dos ministérios, mas as pastas não executam. O valor não usado é como se voltasse para o caixa da União, ajudando no resultado primário. O governo espera terminar o ano com cerca de R$ 20 bilhões empoçados.
Já o analista Eduardo Nogueira afirma que “não é o caminho recomendável” o governo contar com o empoçamento para o cumprimento da meta, mesmo considerando a banda, porque é uma variável de difícil controle por parte da equipe econômica.
Fonte: Valor Econômico

