Explosão de apostas de esporte online na nação sulamericana acende alerta para risco de danos
Acometido pelo câncer quando tinha pouco mais de 30 anos, Cláudio encontrou consolo em um passatempo que fisgou milhões de seus compatriotas brasileiros: apostas online.
Palpites nos resultados das partidas de futebol eram “só um pouco de diversão” no começo, mas após seu diagnóstico, alguns anos atrás, a quantia apostada cresceu. Conforme suas perdas atingiram R$ 200 mil, as contas começaram a não ser pagas e a eletricidade foi cortada em sua casa.
“Eu comecei a pegar empréstimos de bancos, sem contar para minha mulher. Eu tinha muita vergonha”, disse o profissional de investimentos, que pediu para não revelar o sobrenome.
As bets explodiram no Brasil com a legalização das apostas de probabilidades fixas em 2018, transformando o país do futebol, de mais de 200 milhões de habitantes, no sétimo maior mercado de apostas virtuais do mundo, segundo o H2 Gambling Capital.
Mas a falta de regulamentação ajudou a fomentar uma epidemia de vício, com potenciais consequências nocivas para a maior economia da América Latina, segundo alertam banqueiros e médicos.
A compulsão ameaça prejudicar o gasto do consumidor, especialmente entre as classes mais baixas, de acordo com comerciantes e analistas. A associação bancária do país (Febraban) também se mostrou preocupada com o endividamento causado pelas apostas online.
O presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, disse que o “preocupante” crescimento do jogo poderia começar a impactar o pagamento de empréstimos. “A correlação entre pessoas de baixo poder aquisitivo e o aumento das apostas tem sido forte”, afirmou recentemente. “Estamos começando a perceber que vai ter um impacto sobre a inadimplência.”
Economistas preveem que a tendência pode impactar o crescimento da economia brasileira neste ano.
O dilema brasileiro ecoa o dos Estados Unidos, onde as apostas esportivas foram legalizadas na maioria dos Estados, e do Reino Unido, cuja longa tradição de apostas legalizadas tem sido pressionada pela internet.
Com a compulsão pelos jogos levando a problemas mais sérios de saúde mental, os atendimentos no Hospital das Clínicas de São Paulo triplicaram em um ano, segundo o psiquiatra Hermano Tavares. “O sistema de saúde não está preparado”, afirmou.
A polícia e o Ministério Público também alegam que sites ilegais são usados para lavagem de dinheiro do crime organizado.
A maioria dos jogos de azar, como cassinos e caça-níqueis, são probidos no Brasil desde 1940, com poucas exceções, como as corrida de cavalos e loterias administradas pelo Estado.
O país agora está em primeiro lugar no ranking de acesso a sites de aposta, representando 15% dos acessos globais, segundo o SimilarWeb, um provedor de análise de dados.
Times de futebol e emissoras têm se beneficiado dos anúncios, e o governo em breve deve começar a cobrar imposto sobre esse tipo de negócio.
Marcas internacionais como bet365 e Betfair competem com negócios locais por um mercado que deve movimentar R$ 130 bilhões em 2024, segundo a PwC.
Pelo menos 24 milhões de consumidores (mais de 10% da população) fez apostas esportivas em agosto, totalizando R$ 20 bilhões, segundo um levantamento do Banco Central.
A atividade pode retirar 0,3% do PIB brasileiro deste ano, segundo um relatório do Santander, mas o possível impacto da tendência na economia é debatido calorosamente.
O setor do comércio está sentindo os efeitos, segundo a analista Danniela Eiger, da XP. Muitas cadeias do comércio brasileiras têm atribuído as vendas fracas ao fenômeno das apostas esportivas. Uma pesquisa entre apostadores, aplicada por uma associação de lojistas, apontou que um quinto deles tinha deixado de comprar roupas ou de viajar para apostar nas bets.
“As apostas estão competindo pelo dinheiro do consumidor”, disse Eiger. “Elas estão retardando a recuperação que esperávamos ver na demanda”.
Cerca de 5 milhões de beneficiários do Bolsa Família, o maior programa de distribuição de renda do país, apostaram, ao todo, cerca de R$ 3 bilhões nas bets em agosto, segundo um relatório do Banco Central — o equivalente a um quinto do total dos pagamentos do benefício. A Associação Nacional de Jogos e Loterias questionou o valor, sugerindo que o total gasto foi apenas uma fração do divulgado.
O setor também questiona a extensão do impacto econômico e diz que a maioria dos apostadores não é viciado.
Um estudo encomendado pelo grupo de lobby Instituto Brasileiro de Jogo Responsável (IBJR) argumentou que as apostas não levaram ao aumento do endividamento e sugeriu que elas são responsáveis por apenas 0,5% dos gastos familiares, considerando todos os ganhos.
Atores dos dois lados do cabo de guerra apontam que a falta de regulamentação quando as apostas online foram liberadas, seis anos atrás, é a causa da maioria dos problemas vistos hoje.
Até pouco tempo, muitos sites operavam de outros países e não estavam sujeitos à legislação nem à taxação local, atuando sem qualquer supervisão de entidades brasileiras e sem obrigação de reportar atividades suspeitas.
A falta de regras culminou em um “mercado que é uma verdadeira bagunça”, disse André Gelfi, presidente local da plataforma Betsson e presidente do IBJR. “Você tem de tudo, de anúncios para menores de idade até fraudadores na internet.”
O governo do presidente de esquerda Luiz Inácio Lula da Silva acusa seu antecessor de inação e já introduziu uma regulação que deve passar a vigorar a partir de 2025.
As novas regras preveem taxar empresas de apostas e os ganhos, limitar a promoção das bets por influencers, restringir a publicidade e proibir o uso de cartão de crédito nos sites de apostas.
Os operadores digitais agora precisam de registro em uma entidade local, e precisaram pedir licenças de atuação, ao custo de R$ 30 milhões cada, até setembro. O governo, que estima que as apostas podem gerar até R$ 12 bilhões por ano em impostos, bloqueou 3.400 sites que não seguiam as regras, autorizando a permanência de mais de 260.
Apoiadores acreditam que essa estratégia vai separar o joio do trigo, eliminando os maus operadores conforme os parâmetros-base para a indústria são estabelecidos.
Lula sugeriu que, se as medidas não resolverem o problema, sites de apostas esportivas podem ser banidos, e autoridades querem vetar o uso de cartões dos benefícios sociais para apostas.
O ministro da Fazenda Fernando Haddad, que cuida do setor, não respondeu aos pedidos de entrevista.
“Novas regulações não significam que o problema vai ser resolvido do dia para a noite”, disse Ian Cook, conselheiro de negócios na StoneTurn. “Mas é um sinal claro de progresso para uma indústria lucrativa, que ficou relegada à autorregulação por vários anos”.
Com o câncer em remissão, Cláudio encontrou apoio no Jogadores Anônimos. “Meus amigos conseguiam jogar de forma recreativa, e eu não podia, porque eu era compulsivo”, ele disse. “É uma doença como qualquer outra, que pode afetar qualquer um, independente de classe, educação ou gênero.”
10/11/2024 14:16:26
Fonte: Valor Econômico

