Israel e o Hamas são inimigos viscerais, mas concordam em alguns pontos. Nem o governo de Israel nem o Hamas têm real interesse em uma “solução de dois Estados” para o conflito Israel-Palestina. E nenhum lado quer interromper os combates em Gaza, mesmo com o território devastado ao redor deles.
No entanto, em algum momento, os combates cessarão. No dia seguinte, o mundo enfrentará uma série de questões urgentes. Quem reconstruirá o território, quem o governará e como ele será abastecido?
Até mesmo o governo Biden insiste que Israel não pode reocupar Gaza. Mas as relações entre Israel e a ONU essencialmente entraram em colapso. E é compreensível que a ONU seja cautelosa em ampliar suas responsabilidades em Gaza, dado que mais de uma centena de funcionários seus foram mortos no ataque israelense ao território.
Por falta de uma alternativa melhor, os EUA estão trabalhando em planos para trazer de volta a Autoridade Palestina, nominalmente responsável por partes da Cisjordânia ocupada, para administrar Gaza. Mas a Autoridade Palestina é amplamente vista como uma organização fraca e corrupta, com pouca credibilidade. (Isso é algo em que Israel e o Hamas concordam.)
Quanto ao dinheiro, ouvi altos funcionários da União Europeia (UE) dizerem com segurança que a Europa não pagará pela reconstrução de Gaza. (As somas de dinheiro necessárias para a Ucrânia já são surpreendentes.) O Congresso dos EUA parece estar se voltando contra todas as formas de assistência externa. As pessoas falam casualmente sobre os sauditas e outros árabes do Golfo pagando a conta. Mas será que eles realmente farão isso, sem estruturas políticas claras para financiar em Gaza?
Portanto, pode não haver maneira de lidar com o desastre imediato em Gaza sem um acordo, pelo menos no papel, sobre uma solução política de longo prazo.
Os sauditas, assim como os americanos e a UE, há muito defendem uma solução de dois Estados, no contexto da normalização das relações entre Israel e o mundo árabe.
Mas, nos dias de hoje, até mesmo os defensores de uma solução de dois Estados muitas vezes parecem envergonhados ao externar essa ideia. O que é compreensível. Essa solução foi repetidamente promovida por mais de 30 anos, mas falhou consistentemente em se firmar.
As condições para um acordo de dois Estados são, na maioria dos aspectos, muito piores do que eram em 1991, quando a conferência de paz de Madri estabeleceu a ideia na agenda internacional. Naquela época, havia menos de 100 mil colonos israelenses na Cisjordânia ocupada. Hoje são cerca de 500 mil.
Na década de 1990, havia movimentos de paz florescentes tanto em Israel quanto entre os palestinos. Mas isso foi antes da expansão dos assentamentos israelenses na Cisjordânia ocupada, de duas intifadas palestinas e de ataques terroristas dentro de Israel, do surgimento do Hamas em Gaza e de repetidos ataques israelenses ao território.
Os campos da paz, tanto na Palestina quanto em Israel, já estavam marginalizados antes do ataque do Hamas a Israel. Agora, como meu colega Andrew England relata, até mesmo alguns israelenses que participam do diálogo intercomunitário recaem no discurso de “eliminar Gaza”. Se os israelenses se sentem assim depois dos ataques de 7 de outubro, por que os palestinos sentiriam algo diferente em relação a Israel após mais de 17 mil mortes em Gaza?
A triste verdade é que algumas das piores suspeitas que ambos os lados têm um sobre o outro são verdadeiras. O Hamas disse repetidamente que gostaria de destruir Israel e massacrar mais israelenses. Há radicais de extrema direita em posições-chave no governo israelense que sonham abertamente em expulsar os palestinos da Cisjordânia ocupada e de Gaza.
Desde 7 de outubro, o governo Netanyahu não elaborou nenhum tipo de nova visão de longo prazo para a questão Israel-Palestina. Isso pode ser porque Israel está tão focado em seu objetivo de destruir o Hamas que não consegue pensar em longo prazo. Ou pode ser porque o plano do governo envolve forçar os gazenses para o Egito — uma ideia que tanto o governo Biden quanto o Egito rejeitaram repetidamente.
Netanyahu — assim como seu amigo ocasional, o presidente russo, Vladimir Putin (os dois tiveram uma longa conversa esta semana) — pode estar esperando que novas oportunidades se abram, se e quando Donald Trump voltar à Casa Branca. Mas há um obstáculo nessa estratégia. Trump e seu genro, Jared Kushner, são ardentes apoiadores de Israel. No entanto, eles também atribuem grande importância à sua relação com os sauditas. Em 2017, a primeira viagem de Trump como presidente foi a Riad.
Algumas pessoas próximas ao príncipe herdeiro Mohammed bin Salman, o governante de fato da Arábia Saudita, são surpreendentemente frias em relação à causa palestina. O foco delas permanece na modernização da Arábia Saudita. A normalização das relações com Israel, uma potência tecnológica, pode contribuir para esse objetivo, além de forçar os americanos a dar garantias de segurança a Riad. Mas os sauditas sabem que não podem normalizar com Israel agora se parecer que estão traindo os palestinos no processo.
Portanto, se a Arábia Saudita se envolver em um esforço para reconstruir Gaza, certamente exigirá compromissos mais substanciais de Israel para um futuro Estado palestino em troca.
Há muitas razões para duvidar que Israel cumpra qualquer promessa desse tipo. Mas o povo de Gaza não pode ser simplesmente deixado para viver entre as ruínas de suas casas. Obter assistência em curto prazo para eles ainda requer uma visão de longo prazo para a Palestina. Se alguém tiver uma ideia melhor do que dois Estados para dois povos, o momento de apresentá-la é agora.
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— Foto: Doaa AlBaz/AP
Fonte: Valor Econômico

