Experiência mostra que grandes rupturas tecnológicas — como foi o caso da Revolução Industrial — causam transformações profundas, mas nem sempre boas, para a classe trabalhadora
Por Rana Foroohar, Valor — Financial Times
24/05/2023 21h36 Atualizado há 16 horas
Um almoço geralmente não acontece às 11 horas, mas o professor de economia do Massachusetts Institute of Technology (MIT) Daron Acemoglu é um homem eficiente. Vamos nos encontrar mais cedo e perto de seu escritório em Cambridge, Massachusetts, para que ele possa tomar um avião logo depois para gravar um podcast no qual discutiria seu novo livro. O local, um restaurante chinês chamado Sumiao, é algo raro e maravilhoso para Boston e, na verdade está mais para a costa leste da China — um lugar realmente bom.
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Daron Acemoglu — Foto: Divulgação
“Este abriu pouco antes da pandemia”, diz Acemoglu.
A importância de Acemoglu é tamanha que o restaurante abriu mais cedo apenas para nós. “Olá professor!”, saúdam os garçons, cumprimentando Acemoglu e nos encaminhando para uma sala especial nos fundos, onde temos uma bela vista da cozinha aberta.
Acemoglu é tão famoso aqui, quanto nos círculos de economia política do mundo todo. Ele ganhou a Medalha John Bates Clark, muitas vezes um prenúncio do Prêmio Nobel, e sua experiência em unir política, economia e tecnologia o coloca à frente e no centro de quase toda a discussão global hoje em dia. Seu novo livro, “Power and Progress”, é uma crítica ao progresso tecnológico do último milênio, coescrito com um colega do MIT, Simon Johnson.
Eu me preparo para uma discussão sobre por que a tecnologia nem sempre é vantajosa para o trabalho, os salários e o desenvolvimento humano se os incentivos adequados e salvaguardas reguladoras não estiverem em vigor. Mas imediatamente entramos em outra conversa sobre um assunto que interessa a nós dois: a Turquia.
Acemoglu, de etnia armênia, nasceu em Istambul em 1967 e cresceu lá. Meu pai é turco e meu lado materno vem de Trabzon, no Mar Negro, onde os turcos se misturaram aos gregos pônticos, povos do Cáucaso e inúmeras minorias étnicas, um caldeirão que contraria o nacionalismo que hoje assola o país. Pergunto a Acemoglu como foi crescer na Turquia sendo armênio. “Havia vários graus de discriminação, mas nunca me senti ameaçado”, diz. Mesmo assim, “você é diferente, e percebe isso”.
Observo que o economista turco Dani Rodrik — que dá aulas ali perto, em Harvard — uma vez me disse que ser da Turquia foi uma das razões pelas quais ele se tornou um dos primeiros a questionar o Consenso de Washington. Aquela era a visão de que a globalização neoliberal beneficiaria a todos, o tempo todo (ela criou mais riqueza do que nunca, mas também muita desigualdade interna).
O lugar influenciou Acemoglu de maneira semelhante? Ele concorda. “Tudo diz respeito ao lugar e à história. Eu estava na escola [na Turquia] no fim do regime militar. Vi que a democracia não estava funcionando e que e economia tinha problemas. Minha mente não muito sofisticada de 16 anos se perguntava: ‘Qual é a ligação entre essas coisas?’ Então eu disse ‘Ok, vou estudar economia e tentar descobrir’.”
Seu livro de 2019, “O Corredor Estreito” — em parceria com James Robinson, também do MIT —, examinou o equilíbrio entre a força do Estado e a da sociedade, conforme medido por coisas como as organizações civis, a ação coletiva e a mídia. “Essas coisas sempre foram muito fracas na Turquia, porque o Império Otomano era um império de cima para baixo”, diz Acemoglu, observando que o florescimento da política de baixo para cima que se seguiu ao colapso do império foi rapidamente recentralizado por Mustafa Kemal Atatürk. Quanto ao forte desempenho de Recep Tayyip Erdogan no primeiro turno das eleições presidenciais turcas, Acemoglu diz simplesmente: “É um dia triste para a Turquia”.
Ao examinar o cardápio, vejo que ele está cheio de temperos. “Você consegue enfrentar um pouco de pimenta?”, pergunta Acemoglu. Sempre, respondo eu. Decidimos por porções tamanho família de “porco da vovó”, vagens e berinjela, e o prato favorito do professor: Yellow River Beef. “Ele vem num caldo com um tipo de pimenta muito interessante, é muito saboroso. Ele não chega a queimar seu estômago, mas entorpece sua boca.” De repente, lembro-me de uma lição dolorosa que aprendi certa vez com um prato de frango apimentado — quando a pimenta é demais, coma arroz, não beba água, o que só piora das coisas.
Quando nossa garçonete, Bernadette, chega, me certifico de pedir uma porção dupla de arroz.
Pergunto a Acemoglu o que o levou a abordar a tecnologia como tema mais recente. “Bem, de certa forma, venho pensando na tecnologia há mais de 30 anos — minha pesquisa de pós-graduação foi sobre os efeitos da tecnologia sobre o emprego e os salários. Então, uma vez que percebi que também poderia estudar questões de política, economia, democracia, conflitos e assim por diante, minha pesquisa acadêmica progrediu em dois caminhos um tanto separados.”
A pesquisa mostra que grandes rupturas tecnológicas — como a Revolução Industrial — podem achatar os salários de toda uma classe trabalhadora. Também aponta para o conflito distributivo e a dinâmica do poder inerente a ele. “Sim, progredimos, mas também tivemos custos enormes e muito duradouros. Cem anos de condições muito duras para os trabalhadores, salários reais menores, condições de saúde e de vida muito piores, menos autonomia, mais hierarquia. E a razão pela qual saímos disso não foi alguma lei da economia, e sim uma luta social de base em que sindicatos, políticas mais progressistas e, em última análise, instituições melhores desempenharam um papel fundamental — e um redirecionamento das mudanças tecnológicas para longe da automação pura também contribuiu de forma importante.”
Digo a ele que me surpreende que tantos economistas ainda não levem a sério fatores não relacionados ao mercado, como a sociedade, as instituições e a natureza do poder, em suas conclusões. Sua visão, que é a de que o capital pega o que quer na ausência de restrições, e que a tecnologia é uma ferramenta que pode ser usada para o bem ou para o mal, parece óbvia para qualquer pessoa normal.
Ele sorri. “Sim, para mim isso também parece razoável. Então, por que demoramos tanto tempo, enquanto profissão, para chegar a isso?”, pergunta ele, retoricamente. “Porque no final das contas, os economistas são condicionados – e por boas razões — a pensar que o mercado funciona. E em alguns sentidos, isso está certo.”
Mas, acrescenta, até os gestores mais espertos “cometerão erros”. E quando esses erros “envolvem tecnologias muito poderosas, e algumas pessoas controlam isso e elas podem moldá-los de uma forma que os capacite ainda mais ou os torne beneficiários, você terá muitos problemas.”
A comida chega, fumegante e linda. Nossas bebidas, todas decoradas, parecem algo que você pediria em um resort de praia, e os montes monocromáticos de arroz servidos em uma única travessa me lembram dos famosos biscoitos brancos e pretos de Nova York. “Esses são perigosos”, diz Acemoglu, que parece gostar tanto de comida quanto eu.
Começamos a mergulhar em uma das melhores refeições chinesas que já comi nos EUA. Vagens e berinjela foram perfeitamente fritas com a quantidade exata de tempero e molho (a comida chinesa nos EUA com muita frequência tende para o grudento). O porco também está delicioso, servido com fatias finas de pimenta vermelha e alho-poró, mas o Yellow River Beef de Acemoglu é a verdadeira estrela. Ele tem uma textura esponjosa que absorve o caldo saboroso, que é carregado com cogumelos, couve em conserva e duo jiao (pimenta salgada caseira).
Fico contente por Acemoglu estar conduzindo a maior parte da conversa, porque isso me deixa mais tempo para comer. Ele continua a ponderar por que os economistas tardam em reconhecer verdades evidentes. “Acho que uma das coisas que se tem de fazer como economista é manter duas ideias conflitantes na cabeça ao mesmo tempo”, diz ele. No caso de sua obra recente, isso se traduziria no fato de que a tecnologia é capaz de criar crescimento, embora, ao mesmo tempo, sem enriquecer as massas (pelo menos sem fazer isso por muito tempo).
“O progresso tecnológico é o mais importante impulsionador do florescimento humano, mas o que tendemos a esquecer é que esse processo não é automático.”
Além disso, a formulação de modelos matemáticos e a compreensão quantitativa da luta entre capital — que é o fator que mais se beneficia do avanço tecnológico – e o trabalho não são tarefa fácil. Acemoglu é avesso a aderir às receitas de política econômica convencionais para lidar com a desigualdade causada pela tecnologia, como renda básica universal, porque “elas deixam intocada a distribuição de poder subjacente”. “Elevam as pessoas que estão ganhando e deixam migalhas às demais. Tornam o sistema mais hierarquizado, em certo sentido”, diz.
Por outro lado, ele é grande admirador do governo de Joe Biden. “Acho que eles estão fazendo um ótimo trabalho. Podem estar cometendo erros, mas estão enfrentando alguns desafios-chave que não são enfrentados há pelo menos cinco governos anteriores – clima, globalização, trabalhadores. Estão fazendo a coisa certa em todas as frentes? Não sei. Acho que estão assumindo um risco grande com relação à China, por se tratar de um enfoque muito agressivo, mas talvez no lugar deles eu pudesse ter feito a mesma coisa.”
Com relação à mudança climática, ele acha que eles simplesmente podem ter encontrado uma solução imperfeita, mas politicamente factível”, na Lei de Redução da Inflação (IRA, pelas inciais em inglês), que subsidia a transição verde de algumas maneiras que muitos outros países, inclusive alguns europeus, consideram problemáticas. “Não há bala de prata”, diz o professor. “Não sei o que fazer, mas há dois níveis — um são as aspirações, o outro são os meios.” Com relação ao primeiro, pelo menos, ele sente que esta Casa Branca está no caminho certo.
Biden é o presidente mais pró-trabalhador desde Franklin Roosevelt, coisa que Acemoglu apoia, especialmente em uma época em que tecnologias como a automação e a inteligência artificial (IA) ameaçam empregos mais bem-posicionados na cadeia produtiva do que em qualquer outro período. Ele acha que precisamos de um movimento focado em relações de trabalho mais forte nos EUA — “temos de criar um ambiente no qual os trabalhadores tenham voz” —, embora não necessariamente com a atual estrutura sindical. Prefere um modelo alemão, em que os setores público e privado e os trabalhadores atuam juntos, em vez do modelo organizacional mais fragmentário dos EUA, por empresa.
“Acho que as habilidades de um marceneiro ou de um jardineiro, um eletricista ou um escritor são simplesmente as maiores conquistas da humanidade, e que deveríamos tentar elevar essas habilidades e essas contribuições”, diz. “A tecnologia poderia fazer isso, mas isso significa usar a tecnologia não para substituir essas pessoas, não para automatizar essas tarefas, mas para aumentar a produtividade delas ao lhes fornecer melhores ferramentas, melhor informação e melhor organização.”
Ele imagina uma época em que os professores possam usar a IA para criar planos de aula individuais para cada aluno, ou em que os profissionais de enfermagem possam assumir papéis muito maiores em tarefas como, por exemplo, diagnosticar doenças. “Por que os profissionais de enfermagem não podem prescrever medicamentos? Por que tudo precisa passar por esse enfoque muito hierarquizado, onde se tem de chamar um médico [para fazer isso]?” No cenário de hoje, as pessoas que passam o maior tempo com os pacientes — os profissionais de enfermagem, não os médicos — são os que ganham menos e os menos valorizados. Usar a tecnologia para empoderar esses trabalhadores elevaria a produtividade geral e a qualidade da assistência, ao mesmo tempo em que elevaria os salários.
Elevar as qualificações também é, segundo ele, fundamental para o futuro da democracia. “Temos de conseguir empoderar e aumentar a capacitação em um grupo diversificado de trabalhadores” — entre os quais os deixados para trás por várias décadas de deslocamento de trabalhadores gerado pela tecnologia, o tipo de pessoa que tende à “morte por desespero” sobre as quais escreveram os economistas Angus Deaton e Anne Case. A exemplo de muitos das elites de formação esmerada, ele reconhece não ter levado Donald Trump a sério inicialmente. “Deixei de assistir às notícias por todo o ano eleitoral de 2016 porque eu estava convencido de que ele logo sumiria.”
Ele não sumiu, e agora Trump voltou. “Detestei-o tanto, e acho que, como pessoas de centro-esquerda, pode-se detestar Trump, mas seria um erro grave, do meu ponto de vista, detestar os apoiadores de Trump” — como ele crê ter sido a atitude da mídia de esquerda americana. “As pessoas têm opiniões muito diferentes, formas muito diferentes de manifestá-las. Algumas são racistas, algumas são misóginas, mas são pessoas, e têm sofrimentos reais e queixas reais, e temos de aceitá-las. Acho que a esquerda não aceitou isso.”
A conversa fornece uma transição natural para a próxima área de pesquisa do professor: as hierarquias. “Você lê psicologia evolucionista ou conversa com pessoas que dirão que querem ser mais ricas do que você, mais poderosas do que o outro e assim por diante, e você pensa que é assim que as coisas são. Mas depois, conversa com antropólogos, e eles lhe dirão que, por boa parte da nossa humanidade, vive dessa maneira igualitária de caçadores-coletores — então, o que aconteceu com isso?”
Acemoglu pretende descobrir. Mas, primeiro, temos de receber a conta. Meu convidado tenta ficar com ela, e eu lhe digo que as únicas duas regras do “À Mesa do com o FT” é que nós pagamos e que tudo tem a publicação autorizada. Aí Bernadette reaparece para nos dizer que o gerente avisa que a nossa exuberante refeição ficará por conta da casa. Digo-lhe que sinto muito, mas que terei de pagar.
Enquanto esperamos pela conta, conversamos novamente sobre a Turquia, ou, mais especialmente, sobre comida turca, que nós dois adoramos. Qual, pergunto, é seu prato preferido? “Sou louco por esse peixe especial que começa no Mar Negro e depois desce para [o Mar de] Mármara. Ele transita por condições climáticas muito diferentes e fica muito gordo e saboroso com isso. Pode-se ir a qualquer outro lugar, mas não se conseguirá o mesmo peixe.” Em culinária, como em economia, o lugar e a história, efetivamente, importam. (Tradução de Mario Zamarian e Rachel Waszawski)
Fonte: Valor Econômico