Greves no setor automobilístico são sempre significativas, mas esta é particularmente importante. Os sindicatos não lutam apenas por uns trocados a mais. Esta batalha poderá determinar não só o futuro da transição para a energia limpa nos EUA, como também o resultado das eleições presidenciais de 2024 e o futuro do Partido Democrata. É uma batalha digna, mas também muito, muito arriscada.
O primeiro ponto a ser considerado é como e onde os veículos elétricos são feitos. Embora a ordem executiva inicial do presidente Joe Biden sobre mudanças climáticas e o projeto de lei de estimulo climático aprovado inicialmente pela Câmara tenha sido explicitamente pró-sindicatos, a redação final da Lei de Redução da Inflação (IRA, na sigla em inglês), que apesar do nome é uma lei climática, apoiou a mão de obra “doméstica”, em vez de estipular como e onde essa mão de obra será usada.
Esta mudança não se deveu apenas à resistência de Joe Manchin, o senador democrata que desempenhou um papel importante na aprovação da IRA. Foi também o resultado de um forte lobby de multinacionais estrangeiras, muitas das quais querem usar o sul dos EUA — para onde muitos dos novos empregos na produção de veículos elétricos estão se dirigindo, uma vez que as normas trabalhistas e ambientais tendem a ser menos rígidas — como sua “China particular”.
O fato de essa tentativa de nivelamento por baixo estar ocorrendo em território americano é um dos motivos por trás da greve. O UAW quer garantir que os trabalhadores que produzem baterias e outros componentes para os novos veículos elétricos obtenham benefícios da filiação sindical.
Esta é, de certa forma, uma batalha de vida e morte para o sindicato. A transição para os veículos elétricos já prevê uma redução significativa do número de empregos no setor automobilístico no curto prazo, uma vez que esses veículos não usam o mesmo número de componentes que os de motor a combustão e assim são necessários menos trabalhadores nas linhas de montagem. Jim Farley, presidente-executivo da Ford, disse ao “Financial Times” em 2022 que a transição para veículos elétricos pode se dar com 40% menos operários.
Algumas pessoas — mesmo aquelas que promovem os interesses dos trabalhadores – podem dizer: “Quem se importa para onde os empregos vão, desde que eles fiquem nos EUA?” Mas isso é importante por várias razões políticas.
Isso leva a um segundo ponto, que é o possível impacto sobre as eleições presidenciais de 2024. A adesão aos sindicatos caiu muito nos EUA nas últimas décadas, mas ainda representa uma parte importante da coligação eleitoral democrata. Uma das razões pelas quais Donald Trump foi eleito em 2016 foi porque os sindicatos em estados indecisos, como a Pensilvânia, votaram nele.
Os dirigentes sindicais têm feito muito trabalho de base desde então, para tentar mostrar aos membros o não cumprimento das promessas que Trump fez aos trabalhadores. Mas se Biden não conseguir acabar com a greve, Trump poderá ser o beneficiado — e a democracia americana, a perdedora.
Por este motivo, preocupa-me a ambição dessas greves. Por um lado, não se pode culpar os trabalhadores do setor automobilístico — que fizeram concessões significativas durante a crise financeira de 2008 e depois — por quererem uma parcela maior das centenas de bilhões de dólares em lucros obtidos pelas três grandes montadoras, que aumentaram 92% na última década. O próprio Biden disse na semana passada que “lucros corporativos recordes” exigem “contratos recordes” para os trabalhadores. Se for retiradao do cargo em 2024, não serão apenas os sindicatos que sairão perdendo.
Seja como for, as greves e a transição para os veículos elétricos em geral estão acelerando um momento de ajuste de contas para o Partido Democrata. Os ricos progressistas das duas costas dos EUA que dirigem um Tesla, que representa 60% de todos os veículos elétricos vendidos nos EUA, muitas vezes se preocupam mais com a resolução dos problemas climáticos do que com os direitos trabalhistas. Mas se o Partido Republicano indicar Trump e ele vencer, nem o planeta nem os trabalhadores estarão mais seguros.
Como Biden poderá resolver esse problema econômico e político? Talvez dando mais atenção às exigências do UAW para a necessidade de uma coalizão global ampla em torno da precificação do carbono e normas trabalhistas.
Embora alguns argumentem que o fato de a China inundar a Europa com veículos elétricos em violação às regras da Organização Mundial do Comércio (OMC) é algo menos importante do que colocar veículos elétricos nas ruas, a dura verdade política é que se os países ocidentais forem vistos como eliminadores de seus próprios trabalhadores, veremos uma guinada mais forte e maior em direção ao populismo autocrático ao estilo Trump.
Uma ideia melhor seria os EUA e a Europa se unirem e estabelecer normas trabalhistas e ambientais conjuntas sobre como fabricar veículos elétricos. Isso ajudaria a evitar um nivelamento por baixo seja com a China, ou um com o outro, e a imporia tarifas sobre veículos que não aderirem a elas.
Essas normas deveriam ter em conta a carga total de carbono da produção – eu iria querer saber, por exemplo, quanta eletricidade gerada pela queima de carvão ou trabalho forçado é usada para produzir todos os insumos de energia limpa, quer venham da China ou de outro lugar. Os riscos envolvidos são altos demais para uma corrida para o abismo.
Fonte: Valor Econômico

