Por Alec Russell, Valor — Financial Times
21/05/2023 10h18 Atualizado há 23 horas
Quando as histórias da guerra na Ucrânia forem escritas, parece justo apostar que a missão de mediação africana anunciada na semana passada pelo presidente da África do Sul, Cyril Ramaphosa, estará disputando uma nota de rodapé. Surgem possíveis mediadores de todos os lados hoje em dia e, de qualquer maneira, a África do Sul acabou marcada como gentil demais com Moscou para ser um interlocutor confiável para a Ucrânia.
Mas quando as histórias da ascensão do mundo pós-unipolar forem escritas, os mediadores quixotescos da África podem merecer uma menção maior. A ideia de seis chefes de Estado africanos cruzando as linhas de frente de uma guerra europeia não é apenas um contraponto revelador a todas as intervenções ocidentais na África ao longo dos anos, mas também sublinha a assertividade acelerada dos países do “Sul Global” — e sua sensação de que sua hora realmente pode ter finalmente chegado.
Isso tem sido visível em várias arenas desde que a velha ordem globalizada começou a se fragmentar após a crise financeira de 2008. Mas a guerra na Ucrânia intensificou esse processo.
Muitas nações não ocidentais observaram o apoio total do Ocidente à Ucrânia e viram poderes hipócritas mais uma vez priorizando seus próprios interesses e preocupações sobre as grandes questões globais, como saúde e mudança climática. Eles também percebem duas grandes oportunidades: jogar EUA e China um contra o outro e, como eles veem, uma reescrita há muito esperada da ordem mundial pós-1945.
Como acontece com todas as grandes coalizões revolucionárias em potencial, esse “movimento não alinhado” renovado é um grupo de interesses muito diferentes e muitas vezes conflitantes; e alguns que dificilmente poderiam alegar neutralidade. A cúpula dos Brics em Durban, em agosto, será uma vitrine dessas contradições.
O grupo consiste em duas autocracias, Rússia e China, duas grandes democracias, Brasil e Índia (esta última extremamente cautelosa com a ascensão da China) e a anfitriã e parente júnior, a África do Sul. Agora, mais de uma dúzia de países estão interessados em aderir, incluindo o Irã.
Isso não apenas ameaça desencadear algumas das alianças menos promissoras do mundo, mas o risco, principalmente para a Índia e o Brasil, de que os Brics se inclinem cada vez mais para se tornar um clube da China, em vez de um fórum não alinhado de economias em desenvolvimento.
Mas, ainda assim, há claros interesses e objetivos comuns: uma reestruturação do Conselho de Segurança da ONU para que ele represente o mundo como ele é hoje; um repensar sobre Bretton Woods; uma tendência para o dólar como moeda de reserva global; um retrocesso no sistema de sanções econômicas liderado pelos americanos; e mais.
Essas metas podem não ser todas atingíveis, mas são bem mais precisas do que os objetivos vagos do movimento não alinhado original em sua primeira reunião em Bandung, Indonésia, em 1955. Naquela época, os membros representavam uma parcela minúscula da economia global; hoje não é assim.
“Na época, era conversa fiada”, diz Michael Power, que por 30 anos estudou a ascensão do Sul Global, mais recentemente como estrategista da gestora de ativos Ninety One, sediada na Cidade do Cabo. “Mas agora eles estão discutindo se devem começar a negociar uns com os outros com moedas locais.”
Então, o que o ocidente deve fazer? Liderar pelo exemplo, finalmente comprometer-se com reformas da ordem global e escolher suas palavras com mais cuidado. E um conselho óbvio para qualquer um que esteja redigindo comunicados no final da cúpula do G7 deste fim de semana: evitar termos como “em cima do muro” e “Estados geopoliticamente indecisos” que, atualmente, circulam em Washington. A metáfora do Estado indeciso – implicando “vamos nos concentrar em você uma vez a cada quatro anos” — perpetua a sensação de um poder imperial paternalista, se não paroquial.
“Devemos falar sobre um sistema internacional baseado em regras, não o sistema baseado em regras”, diz um diplomata ocidental sênior. “E quando falamos de guerra, não deveria ser sobre a paz europeia, mas sobre o tipo de mundo em que queremos viver.”
Mais concretamente, o governo Biden tem construído alianças regionais sob medida, desde I2U2 (uma brincadeira inspirada na banda de Bono, isto é, Índia, Israel, Emirados Árabes Unidos e EUA), até o quadrilátero de segurança da Ásia-Pacífico – Índia, Austrália, Japão e EUA.
Mas a China também está ocupada se reunindo. Esta semana, Xi Jinping sediou uma cúpula de países da Ásia Central – o quintal da Rússia – reforçando a tese do historiador Serhii Plokhy de que, longe de expandir o peso global de Moscou, a guerra na Ucrânia acelerou uma potencial subserviência a Pequim.
Novas ordens mundiais são obviamente mais fáceis de declarar que de perceber. Em 1991, George H.W. Bush falou de uma. Suas palavras ressoavam no vazio um ano depois: a Bósnia estava em chamas. E alguns acharão complicado seguir seus novos rumos.
O desajeitado “pas de deux” da África do Sul com a Rússia é uma lição clara de como não jogar o jogo não alinhado. É uma sorte que o governo Biden não pareça inclinado a penalizá-lo por sua erraticidade.
Mas a Índia, a Indonésia e outros estão jogando muito bem. Quando a guerra na Ucrânia terminar, será no contexto de uma ordem mundial mais sutil do que a de fevereiro de 2022. Será mais complexa e provavelmente mais perigosa; mas para alguns países não alinhados, haverá mais oportunidades. E chega para ficar.
Fonte: Valor Econômico

