Por Edward Luce, Valor — Financial Times
21/06/2023 15h31 Atualizado há 12 horas
A operação “Sedução de Narendra Modi” não é novidade. Só que Joe Biden está levando a adulação do premiê da Índia a novas alturas. Recentemente, Gina Raimondo, a secretária de Comércio de Biden, disse que o compromisso de Modi com o povo da Índia é “simplesmente indescritível, profundo e passional, real e autêntico”. Nesta quinta-feira (22), Modi se tornará um dos poucos estadistas — antes dele, Winston Churchill e Nelson Mandela — a se dirigir a uma sessão conjunta do Congresso em mais de uma ocasião. O jantar de Estado em sua honra será o mais glamoroso da Presidência de Biden. Desse jeito, o líder indiano poderia pensar que é muito admirado pelos EUA.
Não seria muito difícil para ele adivinhar o motivo. A espessura do tapete vermelho americano não tem nada a ver com as políticas de Modi, mas tudo a ver com a geografia da Índia. Nenhum outro país tem tamanho ou potencial para servir de contrapeso à China. Kurt Campbell, assessor de Biden para questões asiáticas, rotineiramente descreve os laços EUA-Índia como a relação bilateral mais importante dos EUA. A declaração não vem acompanhada de nenhuma ressalva. Quando questionadas sobre o retrocesso recente da democracia liberal na Índia, as autoridades da Casa Branca recorrem ao padrão de ressalvas sobre realismo.
É verdade que não há nada que os EUA possam fazer para defender o laicismo na Índia ou restaurar o que resta da mídia independente. Essa é uma tarefa para os indianos, embora isso pareça fora da realidade no momento. Também é verdade que recriminações por parte dos EUA provavelmente teriam efeito oposto ao desejado. Biden desistiu, silenciosamente, de sua desaprovação às abstenções de Modi na Organização das Nações Unidas (ONU) sobre a guerra da Rússia contra a Ucrânia porque isso apenas reforçava a indiferença indiana. Washington agora até vê um aspecto positivo no aumento das importações de petróleo russo pela Índia. Embora a Índia esteja ajudando Vladimir Putin a pagar sua guerra, isso também coloca um teto sobre os preços internacionais do petróleo.
Ainda assim, os EUA têm dificuldade para colocar em prática uma política externa realista que seja convincente. Nos próximos dias, autoridades americanas não conseguirão evitar dizer que Índia e EUA compartilham valores comuns e são respectivamente a maior democracia e a mais rica do mundo. Observações questionáveis como essa não terão nada a ver com as razões por trás da acolhida pomposa a Modi. Se a Arábia Saudita trocasse de posição com a Índia, Washington acharia difícil resistir a elogiar o Islã conservador.
Pena que isso é desnecessário. A estrela mundial do realismo em política externa é o ministro das Relações Exteriores da Índia, Subrahmanyam Jaishankar, que insiste em declarar que vivemos em um mundo multipolar de “iniamigos” — países que não são nem inimigos nem amigos permanentes. Trata-se de uma variação de aforismos de lorde Palmerston e de Charles De Gaulle, entre outros ao longo da história. Jaishankar defende os interesses da Índia sem nenhum dos tons moralistas de seus homólogos americanos — nem de dos antecessores dele na época da Guerra Fria, quando a Índia era não alinhada. A posição da Índia em relação à Ucrânia se baseia em seus próprios interesses. Jaishankar não finge o contrário.
Há dois problemas na ofensiva total dos EUA para seduzir Modi. O primeiro é que ela desmente a reivindicação de Biden de que os direitos humanos estão “no cerne” de sua política externa. Modi vem atropelando tantos direitos que mal dá para enumerar — a começar pela liberdade religiosa. No entanto, o Departamento de Estado dos EUA é tão silencioso sobre isso quanto é ruidoso ao condenar as transgressões de outros em posições menos importantes no tabuleiro do xadrez mundial. Isso só pode aprofundar o cinismo em relação à discrepância entre o que os EUA dizem e o que fazem. Numa era em que o Sul Global está em disputa, essa postura de dois pesos e duas medidas de nada ajuda a credibilidade dos EUA.
O risco é que essa abordagem “tudo sobre a China” produza o oposto do que Biden deseja. A maioria do mundo preferiria não precisar escolher entre EUA e China. O último que o Sul Global precisa é de um dilema de soma zero. Como diz a brincadeira recorrente, “os chineses nos dão um aeroporto; os americanos nos dão um sermão”. Isso parece ainda pior quando o moralismo do sermão é visto como sendo vazio.
O segundo problema da ofensiva de charme de Biden é que ela não compreende o quanto a Índia precisa dos EUA. A impressão, falsa, é a de que a Índia está com todas as cartas na mão. A Índia é incomparavelmente mais vulnerável a uma ação militar chinesa do que os EUA. O país compartilha uma fronteira de mais de 3 mil quilômetros com a China, grande parte dela contestada, e suas Forças Armadas não são páreo para as chinesas. Em um conflito, apenas os EUA poderiam ajudar a Índia. Embora a China não represente uma ameaça militar direta para os EUA, Washington convenceu-se do contrário.
Não há dúvida de que os EUA e a Índia compartilham um temor realista quanto a uma China agressiva. A aproximação é o mais racional a se fazer. Agir como um suplicante diante do renegador democrático mais implacável do mundo — o líder forte que Donald Trump adoraria imitar — é tanto grosseiro quanto desnecessário. Aos olhos de Modi, isso parecerá um sinal verde.
Fonte: Valor Econômico

