Por Leila Abboud, Valor — Financial Times, de Paris
17/03/2023 15h31 Atualizado há 2 dias
Emmanuel Macron tem uma frase de efeito que costuma usar com seus ministros e aliados políticos quando planejam um rumo de ação: “Você precisa assumir riscos”.
Foi exatamente o que o presidente fez na quinta-feira, quando apostou o futuro de seu segundo mandato ao empurrar à força seu plano impopular de elevar a idade de aposentadoria sem votação no Parlamento. Quando seu primeiro-ministro não conseguiu garantir uma maioria de votos a favor da reforma, Macron optou por usar um poder constitucional especial, conhecido como artigo 49.3, para na prática passar por cima dos parlamentares.
Agora, o governo de Macron enfrenta o risco de que uma crise política se espalhe pelas ruas, com a realização de uma moção de desconfiança provavelmente na próxima semana, e de outro protesto nacional, planejado pelos sindicatos para a quinta-feira.
O presidente de 45 anos, que se vê como um reformador com a missão de tornar a França mais competitiva e dinâmica, parece apostar que será capaz de enfrentar a tempestade e, talvez, até de emergir mais forte, ao reafirmar o poder presidencial sobre um Parlamento rebelde, no qual ele não tem mais maioria.
“Macron não é de arriscar apenas por arriscar, mas o fará pela determinação de transformar a França”, disse uma pessoa que trabalhou próxima a ele. “Ele realmente acha que as pessoas precisam trabalhar por mais tempo, em razão do envelhecimento da população e do estado das finanças públicas, então ele está determinado a seguir com isso.”
Macron retrata o aumento da idade de aposentadoria em dois anos, para 64 anos, como uma necessidade para que o país se livre dos déficits no sistema previdenciário até 2030 e como um símbolo de que a França pode prosperar em uma economia global, caso adapte seu generoso sistema de bem-estar social.
Na quinta-feira, ele disse aos seus ministros que o projeto de lei previdenciário não poderia fracassar, porque “os riscos financeiros e econômicos são muito grandes”, segundo uma fonte do governo, acrescentando que “não se pode brincar com o futuro do país”.
O resultado da aposta de Macron dependerá de como a batalha previdenciária irá se desenrolar agora.
O Reagrupamento Nacional, partido de extrema-direita de Marine Le Pen, e outro grupo multipartidário de parlamentares apresentaram moções de desconfiança nesta sexta-feira (17).
Se a moção de desconfiança for rejeitada, o projeto previdenciário se tornará lei. O aliado de Macron considera esse o resultado mais provável: “Acho que isso vai realmente mostrar a impotência do Parlamento e reafirmar o poder presidencial”.
Por outro lado, se uma moção de desconfiança for aprovada, os ministros de Macron teriam que renunciar e o projeto de lei naufragaria. Embora não seja obrigado a fazê-lo, Macron poderia optar por dissolver a Assembleia Nacional e convocar eleições legislativas.
Vincent Martigny, cientista político da Universidade de Nice, considera improvável que uma moção de desconfiança tenha sucesso, em razão das divisões entre os partidos da oposição, mas disse que o presidente terá um caminho difícil pela frente.
“Este é um ponto de inflexão do segundo mandato de Macron, mas ainda não sabemos para que rumo”, disse. “Se a crise sair do controle, o governo ficará em uma posição insustentável politicamente e não conseguirá muito.”
Muito dependerá de fatores fora do controle de Macron, como a intensificação ou não dos protestos e das greves que vêm borbulhando desde janeiro.
Na quinta-feira à noite,protestos espontâneos eclodiram em Paris e outras cidades, resultando em confrontos com a polícia e em 310 prisões — uma mudança em relação aos protestos em grande medida não violentos que foram organizados por sindicatos e contaram com a presença de milhões de pessoas.
O sindicato linha-dura CGT bloqueou brevemente o tráfego nesta sexta-feira de manhã na rodovia que circunda Paris, enquanto coletores de lixo fecharam um local de incineração nas proximidades. Mais de 7 mil toneladas de lixo não recolhido permanecem nas ruas da capital.
Laurent Berger, líder do sindicado moderado CFDT, considerou a decisão de forçar a adoção do projeto de lei uma “iniquidade democrática”, e a coalização de oito sindicados comprometeu-se a continuar se opondo mesmo se o projeto se tornar lei.
“Há muita raiva no país que não vai simplesmente desaparecer porque Macron declarou o fim do debate sobre a reforma previdenciária”, disse Valérie Rabault, parlamentar socialista veterana, em entrevista. A esquerda também vai tentar reverter a reforma organizando um referendo público e exigindo uma avaliação do tribunal constitucional, acrescentou Rabault.
Iniciativas como essa são um tiro no escuro, segundo especialistas, mas são um sinal de que as instituições francesas estão sendo testadas em razão da rara configuração política criada pela derrota do partido de Macron nas eleições legislativas em junho. O presidente ficou sem maioria na Assembleia Nacional e passou a depender do uso da cláusula 49.3 como apoio.
O governo de Macron valeu-se da cláusula em outras dez ocasiões, antes de aplicá-la para a reforma previdenciária, o que o torna o segundo que mais a usou, depois do primeiro-ministro Michel Rocard, que a acionou 28 vezes entre 1988 e 1991.
O governo sobreviveu a vários votos de desconfiança subsequentes, mas desta vez a aposta em jogo é maior, diante da profunda impopularidade do aumento da idade de aposentadoria e da probabilidade de que a crise deixe uma marca duradoura nos eleitores. Isso poderia ajudar a aumentar o poder de atração de Le Pen, uma vez que ela já prometeu revogar o aumento da idade se eleita presidente em 2027.
Dada a concentração do poder presidencial, a Constituição da França tem fomentado uma cultura política que não favorece coalizões ou concessões. A primeira-ministra de Macron, Élisabeth Borne, passou meses tentando negociar um acordo sobre o projeto de lei com o conservador Os Republicanos, há muito favorável ao aumento da idade de aposentadoria, apenas para fracassar em razão de uma facção rebelde que se opõe com veemência ao presidente.
A escolha de Macron de usar a cláusula 49.3 para este projeto de lei mostra que seu estilo de governo adotou como padrão a abordagem de cima para baixo, típica dos presidentes franceses. Isso o afasta bastante das promessas em 2017, quando Macron disse que queria reconciliar os franceses, desconfiados com a política, governando de maneira mais consensual com uma nova safra de deputados estreantes.
Aconteceu o contrário: um estudo recente do Cevipof mostrou que quase 70% dos franceses acham que a democracia não vem funcionando bem — 10 pontos percentuais a mais do que há dez anos, bem mais do que na Alemanha ou na Itália. Uma pesquisa da Harris Interactive na quinta-feira revelou que 82% dos eleitores franceses viram desfavoravelmente o uso da cláusula 49.3 para aprovar o projeto de reforma e que 65% querem a continuidade dos protestos mesmo se o projeto se tornar lei.
“Este é o maior fracasso do macronismo — ele queria restaurar a fé na política e, em vez disso, afastou ainda mais o público do governo”, disse Martigny.
Fonte: Valor Econômico

