Por Martin Arnold — Financial Times, de Sintra
27/06/2023 05h02 Atualizado há 3 horas
Os bancos centrais têm de aceitar a “incômoda verdade” de que poderão ter de tolerar um período mais longo de inflação, acima de sua meta de 2%, a fim de evitar uma crise financeira, alertou ontem a vice-diretora-gerente do Fundo Monetário Internacional (FMI), Gita Gopinath.
Ela disse na Conferência Anual do Banco Central Europeu (BCE), realizada em Sintra, Portugal, que os formuladores de políticas públicas correm o risco de se defrontar com uma escolha desoladora entre dirimir um colapso financeiro futuro entre países altamente endividados e elevar os custos da tomada de empréstimos o suficiente para controlar a persistente inflação.
“Não chegamos nesse ponto ainda, mas essa é uma possibilidade”, disse Gopinath ao “FT” antes de seu pronunciamento. “Nesse ambiente, é quando se pode ver os bancos centrais ajustar sua função de reação e dizer ‘tudo bem, talvez toleremos que a inflação fique mais alta por mais algum tempo’.”
Os elevados níveis de endividamento de muitos governos europeus os deixam vulneráveis a outra crise financeira, disse Gopinath, que no ano passado foi promovida de economista-chefe para vice-diretora-gerente do FMI.
Estresse financeiro na zona do euro poderá ter efeitos regionais diversificados
“Estamos ingressando em um período em que temos de reconhecer que a inflação está levando tempo demais para baixar para a meta – essa é minha primeira verdade incômoda -, e que isso significa que corremos o risco de a inflação se enraizar”, disse Gopinath.
“Quando os governos não têm espaço fiscal ou apoio político para reagir ao problema, os bancos centrais podem ter de ajustar a função de reação de sua política monetária para o estresse financeiro”, disse ela ao discursar. Mas acrescentou que deve haver “um critério de exigência elevado” antes de levar os BCs a aceitar que a inflação permaneça acima da meta de 2% por mais tempo, pois isso poderá tornar o aumento dos preços ainda mais enraizado, como ocorreu nos Estados Unidos na década de 1960.
O estresse financeiro na zona do euro “também poderá ter efeitos regionais diversificados, com a alta dos ‘spreads’ das taxas de juros subindo mais em algumas economias altamente endividadas”, e isso poderá “amplificar outras vulnerabilidades decorrentes da dívida das famílias e de uma grande parcela de créditos imobiliários a taxas variáveis em alguns países”, disse ela.
Gopinath ponderou em seu discurso que o BCE e outros bancos centrais “deveriam se preparar para reagir vigorosamente” a sinais de inflação persistente mesmo se isso levar a “um desaquecimento muito maior” nos mercados de trabalho. O BCE elevou sua taxa de depósito referencial a um ritmo sem precedentes, a partir de -0,5% do ano passado para 3,5% no começo deste mês, e sinalizou outro aumento de 0,25 ponto como “muito provável” para julho.
Os governos poderão também contribuir para combater a inflação ao reduzir gastos financiados por déficits, a fim de reduzir a demanda e diminuir a magnitude pela qual o BCE terá de elevar as taxas de juros, disse ela. “Em vista das condições econômicas que temos, tanto devido à elevação da inflação quanto aos níveis recordes de alta do endividamento, as duas medidas requererão um aperto da política fiscal”, disse ela. “Quem examinar os déficits fiscais projetados para muitos países do G-7, [verá que] eles parecem altos demais há um tempo excessivamente longo.”
O BCE criou um programa de compra de bônus, chamado instrumento de proteção contra a transmissão, criado para evitar que os crescentes custos da tomada de empréstimos desencadeiem mais uma crise da dívida soberana da zona do euro. Mas essa medida não foi testada e, segundo Gopinath, é possível ir além, em termos de adoção de medidas, para se preparar para um potencial estresse financeiro.
Ela apelou para que os governos da União Europeia (EU) aprovassem novas regras para reduzir seus déficits públicos e níveis de endividamento, que subiram para mais de 100% do Produto Interno Bruto (PIB) em muitos países, entre os quais França e Itália, e que criassem um sistema único de seguro sobre depósitos para que todos os bancos da zona do euro substituam a atual colcha de retalhos de sistemas nacionais.
O governo dos EUA forneceu garantias adicionais sobre depósitos para atenuar a crise no sistema bancário americano desencadeada pelo colapso do Silicon Valley Bank, em março.
“Pode-se ter um episódio desse gênero, ou algo mais grave do que isso, no qual não seja politicamente viável obter esse tipo de respaldo fiscal”, disse Gopinath ao FT. “Ou você estará lidando com instituições não bancárias, caso em que [o problema] se torna muito difícil politicamente.”
Fonte: FT / Valor Econômico