No memorial em escala de comício para Charlie Kirk em setembro, Donald Trump rejeitou o espírito de perdão do nacionalista cristão assassinado. “É aí que eu discordava do Charlie”, confessou Trump. “Eu odeio meu oponente e não quero o melhor para ele. Me desculpem.” Com exceção desse pedido de desculpas, poucos duvidaram de que ele falava com o coração.
Quase um ano após a vitória eleitoral de Trump — décadas, se medirmos pela escala de tudo o que aconteceu desde então —, o presidente dos Estados Unidos está mergulhado no que um ex-assessor chama de sua “turnê da vingança”. Para o mundo, Trump tem enviado sinais contraditórios. Em um momento, ele consegue um cessar-fogo dramático em Gaza e agita a candidatura ao Prêmio Nobel da Paz; no seguinte, ele vaporiza barcos não identificados no Caribe e cogita anexar o território de países vizinhos. Em casa, porém, sua direção tem sido toda em um único sentido.
Dias após a cerimônia por Kirk, Trump disse a um grupo de cerca de 800 dos principais generais, almirantes e outros altos líderes militares dos EUA, em Quantico, Virgínia, que a prioridade deles era combater “o inimigo interno”. Nas últimas semanas, promotores federais indiciaram o ex-diretor do FBI James Comey, a procuradora-geral do estado de Nova York, Letitia James, e John Bolton, ex-assessor de segurança nacional de Trump. Cada um é acusado de crimes puníveis com prisão — chegando a até 180 anos de cadeia no caso de Bolton. Trump também pediu a prisão ou detenção de dois governadores democratas, um prefeito de grande cidade, um senador em exercício, altos generais da reserva, um ex-chefe da CIA e muitos outros funcionários nomeados.
Quem acha que o presidente está brincando — ou que seu procurador-geral, o diretor do FBI, o secretário de Segurança Interna e outros leais poderosos irão protelar — não está prestando atenção. “Ele não faz nenhum fingimento”, disse-me Bolton no início deste mês, poucos dias antes de ser indiciado. “Trump é totalmente sobre retribuição a qualquer um que o tenha contrariado.”
Donald Trump em silhueta, com a luz do sol destacando seu cabelo, falando ao ar livre antes de partir da Casa Branca para participar das celebrações do 250º aniversário da Marinha dos EUA, em outubro
Donald Trump falando à imprensa na Casa Branca antes de participar das celebrações do 250º aniversário da Marinha dos EUA no início de outubro
Qualquer tentativa de capturar o escopo da fase inicial do segundo mandato de Trump está propensa a perder o rumo. A sobrecarga é intencional. Nenhum presidente dos EUA falou mais do que Trump, desde suas coletivas de imprensa prolixas, cada vez mais dirigidas a estenógrafos de fato de veículos Maga, até seus agora seriados discursos em bases militares, com tropas como cenário. Steve Bannon, ex-estrategista-chefe de Trump, chama isso de “inundar a zona com merda”. Parte do que Trump fala é sério, como suas ameaças de vingança. Muito do que ele diz é dejeto; sua queixa recorrente sobre encanamento moderno, por exemplo, ou o número de aves mortas por turbinas eólicas. Ainda assim, cada declaração de Trump, seja verdadeira ou falsa, séria ou em tom de brincadeira, é um lembrete de sua supremacia.
Da perspectiva de hoje, o primeiro mandato de Trump parece um modelo de contenção constitucional. Desta vez, ele domina o Congresso, os principais membros do gabinete se atropelam para elogiá-lo em suas reuniões ao estilo da Coreia do Norte, e a Suprema Corte mal tem oferecido freios às suas ações. Pelo menos por ora, a separação de poderes da América é teórica. “Todos estão do meu lado agora”, Trump teria dito a assessores neste verão. “Eles estavam lutando [contra mim] da última vez.”
O que mudou é simples: as pessoas têm medo de contrariar Trump desta vez. Na pesquisa para este texto, entrevistei dezenas de figuras, incluindo legisladores, executivos do setor privado, oficiais superiores da reserva e chefes de inteligência, autoridades atuais e ex-integrantes do governo Trump, advogados de Washington e autoridades de governos estrangeiros. Tamanho é o medo de prisão, falência ou retaliação profissional, que a maioria dessas pessoas insistiu no anonimato. Isso apesar do fato de que muitos dos mesmos também queriam enfatizar que Trump só seria contido por vozes poderosas o enfrentando publicamente. Às vezes, pareceu tentar reportar sobre política na Turquia ou na Hungria.
“Uma das razões pelas quais Trump tem me mirado é porque eu o critico em público”, disse Andrew Weissmann, professor de Direito na Universidade de Nova York que trabalhou na investigação de Robert Mueller sobre a suposta interferência da Rússia na eleição de 2016 e a coordenação com a campanha de Trump. “Eu entendo perfeitamente por que muitas pessoas estão mantendo a cabeça baixa.” Trump frequentemente cita Weissmann como um dos “caras maus” que merecem estar na prisão.
Vingança é um dos três impulsos recorrentes de Trump. Os outros são ganhar dinheiro e dominar as ondas do rádio/TV. Dissidentes atrapalham cada um desses objetivos. Reitores de universidades, CEOs de empresas da Fortune 500, sócios de bancas de advocacia e oficiais superiores do meio militar desesperam-se em privado com os métodos de Trump. Mas cada um tem sólidos motivos, perante seus stakeholders, para manter suas preocupações em sigilo. Universidades podem perder bilhões de dólares em verbas federais de pesquisa; CEOs e suas equipes enfrentam represálias regulatórias; escritórios de advocacia acabam em listas negras federais; soldados são treinados para respeitar a cadeia de comando.
Os infames testes de lealdade de Trump vão muito além de sua administração. Muitos ex-integrantes do governo Biden não têm conseguido encontrar empregos. Em condições normais, a experiência de governo os colocaria na frente da fila. “Todo empregador diz algo do tipo ‘Adoraríamos contratar você, mas não vale o risco’”, disse um ex-funcionário não político da Casa Branca de Joe Biden. “Tudo o que me oferecem são pedidos de desculpas.”
No mês passado, Trump pediu que a Microsoft demitisse Lisa Monaco, vice-procuradora-geral de Biden, que foi contratada para comandar o escritório de assuntos globais da companhia. Ela era uma “ameaça” à segurança nacional dos EUA cuja nomeação “não pode ser permitida”, escreveu ele no Truth Social. Monaco continua no cargo, mas o impacto das palavras de Trump sobre outros empregadores é arrepiante. “É totalmente ultrajante”, disse Jake Sullivan, ex-assessor de segurança nacional de Biden, hoje professor em Harvard. “Eu gasto muito tempo tentando ajudar ex-colegas a encontrar trabalho.”
Nesse ambiente jurídico e político, não há mais normas ou costumes. Ninguém está realmente seguro
Como regra geral, quanto mais uma organização tem a perder, maior a probabilidade de ela se submeter às exigências de Trump. Sob ameaça de desqualificação do governo federal — e, portanto, de perder clientes corporativos —, muitos grandes escritórios de advocacia se recusaram a contratar ou representar pessoas na lista de inimigos de Trump. “Não é uma lista, mas acho que haverá outros”, disse Trump após o indiciamento de Comey. O universo de advogados dispostos a representar seus alvos encolheu dramaticamente. Ninguém da equipe que trabalhou com Jack Smith, o procurador especial de Biden que indiciou Trump por supostamente tentar derrubar a eleição de 2020 e reter documentos sigilosos em Mar-a-Lago, conseguiu emprego desde então. Familiares não são poupados. Maurene Comey, filha do ex-chefe do FBI, foi demitida como promotora federal em julho. Os apelos da equipe ao diretor do FBI, Kash Patel, para não demitir um alto funcionário cuja esposa estava morrendo de câncer caíram em ouvidos surdos. “Nesse ambiente jurídico e político, não há mais normas ou costumes”, disse Bradley Moss, advogado que representa três ex-funcionários do FBI que moveram ações por demissão injusta. “Ninguém está realmente seguro.”
Os chamados adultos que contiveram, desviaram e ocasionalmente barraram Trump em seu primeiro mandato estão entre os mais expostos. No topo da lista de retribuição de Trump está Mark Milley, o general aposentado que era o chefe do Estado-Maior Conjunto quando Trump tentou derrubar a eleição de 2020. Milley perdeu sua proteção do governo após o retorno de Trump ao cargo, assim como Bolton. “Perdi minha proteção do Serviço Secreto no dia da posse de Trump”, disse-me Bolton em seu escritório no centro de Washington. Bastaram 45 minutos naquele dia para que o retrato de Milley fosse retirado das paredes do Pentágono. O espaço em branco fala mais alto do que cem fotos. Milley agora recebe frequentes ameaças de morte e carrega uma arma pessoal.
A mensagem aos militares da ativa, cujo moral já está “no chão”, segundo um almirante da reserva, não é difícil de ler. Por um lado, Pete Hegseth, secretário de defesa de Trump que renomeou a si mesmo como “secretário de guerra”, segue lecionando a veteranos calejados sobre a necessidade de reacender o “ethos guerreiro”. Isso inclui instruções de preparo sobre pelos faciais, peso corporal e aparência masculina. Ele também prometeu proteger soldados de regras de engajamento supostamente “woke”, eufemismo para permitir mais dano colateral. Entre as implicâncias de Hegseth está o general aposentado Peter Chiarelli, que investigou e destituiu o comandante no Iraque de uma notória “companhia da morte” na qual Hegseth havia servido anteriormente. Sua passagem de serviço foi como oficial de infantaria na Guarda Nacional. “Ele nem tem suas esporas de ranger”, disse um veterano assessor do Pentágono. “Não consigo exagerar o quão aviltante isso é para soldados profissionais.”
Por outro lado, Trump e Hegseth seguem dizendo às Forças Armadas dos EUA que seu principal inimigo está em casa — a “escória”, os “animais” e os “terroristas” entre os milhões de imigrantes ilegais da América e aqueles que os protegem. Adversários convencionais são admirados, até invejados. Como âncora da Fox News nos anos Biden, Hegseth costumava contrastar as virtudes marciais das forças russas com o Pentágono infestado de DEI da América. Seu objetivo declarado é restaurar o ethos militar dos EUA e mirar as gangues “narcoterroristas” que assolam a nação, incluindo a Venezuela, seu suposto principal patrocinador.
A revisão estratégica de defesa do Pentágono, prestes a ser publicada, teria elevado as ameaças do hemisfério ocidental da América acima da competição entre grandes potências com China e Rússia. O ponto zero da doutrina Monroe remodelada por Trump, batizada em homenagem a um dos primeiros presidentes, James Monroe, são as ruas da América. “Estamos sob invasão interna, não diferente de um inimigo estrangeiro, mas mais difícil em muitos aspectos porque eles não usam uniforme”, disse Trump à alta cúpula em Quantico. “Devemos usar algumas dessas cidades americanas perigosas como campos de treinamento para nossas forças.”
Donald Trump falando, em close, vestindo terno azul, gravata vermelha estampada e pins de um caça a jato e da bandeira dos EUA na lapela.
Trump em uma reunião recente no Salão Oval. “Todos estão do meu lado agora”, teria dito ele a assessores neste verão. “Eles estavam lutando [contra mim] da última vez”
Todos os generais ou almirantes da reserva com quem falei expressaram alarme com o fato de que Trump está cruzando linhas vermelhas sagradas nas relações civis-militares. No fim de 2020 e início de 2021, Trump tentou fazer com que o Exército dos EUA conduzisse uma recontagem de votos em estados-pêndulo que haviam votado em Biden. Foi bloqueado. Seu então implacável procurador-geral, Bill Barr, e os quatro chefes de serviço (Exército, Marinha, Força Aérea e Fuzileiros Navais), além do presidente e do vice do Estado-Maior Conjunto, repeliram coletivamente os pedidos de Trump. Eles lembraram Trump de que haviam jurado lealdade à Constituição dos EUA, não a ele pessoalmente.
Há amplo ceticismo de que a atual alta cúpula, incluindo Dan Caine, presidente do Estado-Maior Conjunto escolhido a dedo por Trump, enfrentaria Trump da mesma maneira agora — embora o treinamento de oficiais diga que eles têm o dever de desobedecer ordens ilegais. Como tenente-general (três estrelas) à época de sua seleção, Caine era o presidente menos experiente de que se tem memória. “Caine tem o currículo mais raso para conduzir os militares no teste de estresse mais difícil da história moderna”, disse um general quatro estrelas aposentado. Como dois dos quatro chefes de serviço, o antecessor de Caine, CQ Brown, foi demitido por Hegseth. “As circunstâncias em que Caine assumiu o cargo não me enchem de confiança”, disse outro general aposentado.
Ainda assim, quem decide o que é legal? Outro dos primeiros atos de Hegseth foi demitir os três principais judge advocates general (“JAGs”), que prestam assessoria jurídica aos chefes de serviço. Mas, à medida que Trump envia a Guarda Nacional para cidade após cidade — até agora: Los Angeles, Washington DC, Memphis e Chicago —, alguns acham que o Pentágono de Trump já passou do ponto de não retorno.
O nome John Yoo surge com frequência nas conversas que tive. Yoo foi assessor jurídico no governo de George W. Bush nos anos pós-11 de Setembro e durante a invasão do Iraque em 2003. Ele forneceu a justificativa legal para técnicas aprimoradas de interrogatório (conhecidas como os “memorandos da tortura”) e para os locais secretos no exterior onde ocorreram. Yoo, como o núcleo intelectual de Trump hoje, acreditava na teoria do Executivo unitário — um presidente superempoderado. “Não importa o que você ache que a lei proíbe, você sempre pode encontrar um Yoo para dar o aval jurídico”, disse Rosa Brooks, professora de Direito Constitucional na Faculdade de Direito de Georgetown. “Chamamos isso de categoria ‘lícito, porém horrível’.”
Quando algumas pessoas alertaram que não poderíamos contar com uma eleição livre e justa em 2026 ou 2028, eu era cético. Não descarto essa possibilidade tão facilmente hoje
A diferença entre lícito e horrível é uma dobradiça crítica. Muitos se sentem tranquilos pelo fato de que Trump ainda não admitiu explicitamente ter desobedecido uma ordem judicial, o que seria abertamente ditatorial. Isso importa, já que os tribunais de primeira e segunda instância emitiram mais de 300 liminares e suspensões contra suas ações. Decisões desfavoráveis desaceleraram a deportação por Trump de supostos imigrantes sem documentos (entre os apanhados na rede estiveram residentes legais e até cidadãos dos EUA) para vastos centros de detenção, notadamente em El Salvador.
Os tribunais têm, em grande medida, preservado o devido processo. Juízes, por vezes, suspenderam ou derrubaram as tentativas de Trump de rescindir gastos autorizados pelo Congresso, de confiscar registros fiscais e de seguridade social de cidadãos americanos e de enviar a Guarda Nacional para ao menos um estado onde ela não era desejada. Mas muitas ordens judiciais têm sido ignoradas. O descumprimento está a um passo. Agentes que trabalham para a crescente agência de Imigração e Alfândega (ICE) continuam a ocultar suas identidades com máscaras e a conduzir revistas aleatórias. Isso incluiu prender mães enquanto deixavam seus filhos na escola e exibir força em um parquinho infantil.
A Suprema Corte dos EUA, que no ano passado declarou imunidade presidencial ampla para “atos oficiais” — blindando Trump de quase qualquer responsabilidade —, permanece silenciosa sobre a maioria das grandes questões. Três de seus nove juízes foram nomeados por Trump. Seis regularmente aprovam suas ações. Entre os temas pendentes na corte estão o uso das Forças Armadas por Trump para policiar as ruas, sua rejeição ao direito de cidadania por nascimento da 14ª Emenda e sua capacidade de decidir sozinho o que constitui uma emergência. Uma das muitas emergências que ele já declarou lhe confere o poder de impor tarifas à vontade. Como o Congresso controlado pelos republicanos se tornou praticamente um carimbo de borracha — ou uma “Duma” da era czarista, na analogia crua de Bannon —, os tribunais têm de arcar com uma parcela enorme do fardo. “O Judiciário está resistindo, mas por pouco”, disse o advogado Moss. “Resta ver se a Suprema Corte continuará a minar o trabalho das instâncias inferiores para deter mais ações inconstitucionais e ilegais desta administração.”
Críticos ficariam pacificados se a Suprema Corte chancelasse o pacote de investidas de Trump contra a ordem constitucional? Advogados apontam que Vladimir Putin toma cuidado para agir dentro da lei. O mesmo é verdadeiro para Viktor Orbán, da Hungria. Hitler, aliás, era meticuloso em providenciar fundamentos legais para suas ações. Ninguém sério afirma que Trump seja nazista. Mas muitos estão convencidos de que ele mira a democracia dos EUA. “Eu sigo dizendo: ainda que seja ‘legal’, é ultrajante”, disse Weissmann, o professor de Direito. Mark Warner, senador democrata centrista da Virgínia, coloca de outra forma. “Mais cedo neste ano, quando algumas pessoas alertaram que não poderíamos contar com uma eleição livre e justa em 2026 ou 2028, admito que, inicialmente, fui cético”, disse-me Warner. “Mas não descarto essa possibilidade tão facilmente hoje.”
Em contraste com os CEOs, os bilionários americanos não têm pudor de falar o que pensam. Mas suas declarações são, em sua maioria, em louvor ao presidente. Dias após Trump assumir o cargo pela primeira vez, em 2017, Sergey Brin, cofundador do Google, juntou-se a um protesto contra suas políticas de imigração, que ameaçavam os “valores fundamentais” da América. Em janeiro deste ano, Brin foi convidado para a posse de Trump, ao lado de vários dos homens mais ricos do mundo, incluindo Elon Musk, Jeff Bezos (Amazon), Mark Zuckerberg (Meta), Bernard Arnault (LVMH) e Mukesh Ambani (Reliance Industries). Tim Cook, da Apple, também estava lá. Seu apoio rendeu frutos.
O segundo mandato também tem sido bastante positivo para os negócios da família Trump. Embora Trump tenha descartado o bitcoin no passado como uma “fraude”, ele teve uma conversão na estrada de Damasco durante a campanha. Dias antes de sua posse, lançou um memecoin chamado $TRUMP. A primeira-dama, Melania, lançou o seu próprio. A participação de Trump e de sua família no boom cripto rendeu mais de US$ 1 bilhão em lucros antes de impostos no último ano, segundo investigação do Financial Times.
O caso de amor de Trump com cripto também está no cerne de sua política externa. Governos que desejam seduzir Trump têm o veículo perfeito: a World Liberty Financial, uma empresa de token e stablecoin criada pelos filhos de Trump, Don Jr. e Eric, e pelos filhos do principal enviado de política externa de Trump, Stephen Witkoff. No início deste ano, o fundo MGX, de Abu Dhabi, comprou US$ 2 bilhões de um stablecoin da WLF, batizado USD1, para investir na Binance. O governo do Paquistão, respaldado pelos militares, obteve vantagem sobre o rival Índia após oferecer investimentos em cripto à família Trump.
Trump não vê distinção entre público e privado. Estados governados por famílias reinantes, assim, acham mais fácil fazer negócios com ele. Isso deixa os aliados democráticos da América presos a uma antessala perpétua. “Mesmo que quiséssemos investir nos esquemas cripto de Trump, legalmente não poderíamos fazê-lo”, disse o chanceler de um aliado significativo da Otan.
Um ministro das Relações Exteriores do Báltico admitiu ter visitado os EUA sete vezes neste ano. Em condições normais, teriam sido duas viagens através do Atlântico, disse. Tal preocupação é mais aguda na fronteira russa, nas franjas do império desgastado do Ocidente. “Trump honraria a promessa do Artigo V da Otan?”, perguntou o chanceler báltico, referindo-se ao compromisso de que um ataque a um membro é tratado como ataque a todos. “Não sabemos.” O Catar, por sua vez, doou um jato de luxo de US$ 400 milhões a Trump. Um hotel e um campo de golfe de luxo com a marca Trump estão sendo construídos nos arredores de Doha. No início deste mês, Trump assinou um tratado de defesa mútua, ao estilo da Otan, com o emirado do Golfo.
Donald Trump falando diante de membros da Guarda Nacional de Michigan em uniforme, com rostos de militares visíveis atrás dele.
Trump falando a membros da Guarda Nacional de Michigan em abril; a mensagem constante do presidente às Forças Armadas é que seu principal inimigo está em casa
CEOs sentem a mesma desvantagem que aliados estrangeiros. “Nunca tivemos tantas visitas de líderes empresariais a Washington — nada parecido”, disse um lobista sênior em DC. Apontando para o acordo que Jensen Huang, da Nvidia, fechou recentemente com Trump, pelo qual o governo dos EUA garantiu uma participação de 15% nas receitas da exportação dos chips H20 da Nvidia para a China, o lobista disse: “Trump está leiloando permissão regulatória. Isso deixa os CEOs extremamente inseguros.”
Não é de se admirar, então, que ninguém confronte Trump em público. Na Washington de hoje, até desfeitas implícitas podem levar a punições. Aliados que tentam adivinhar o que Trump fará a seguir em relação à Ucrânia, por exemplo, quase nada têm como base. “Temos razoável certeza de que [o secretário de Estado dos EUA] Marco Rubio e até Witkoff não estão na sala quando as decisões são tomadas”, disse o embaixador em DC de um dos aliados da Otan dos EUA. “Trump é o único tomador de decisão.”
Quem pode conter Trump? Em contraste com a maioria em Washington, Nancy Pelosi, ex-presidente (speaker) democrata da Câmara dos Representantes, aprecia falar sem rodeios. Em meio ao desmoronamento de um bastião institucional após o outro, ela acredita que o povo americano é o último freio remanescente ao presidente — um homem que ela descreve como “a pior figura a ter rastejado para fora do pântano da evolução”.
Quando a visitei em meados de outubro, a octogenária Pelosi (85) apanhou um punhado de pequenos chocolates Ghirardelli vermelhos e azuis de uma tigela sobre a mesa de seu escritório para ilustrar que seu partido precisa mirar distritos republicanos de forma mais agressiva. A causa pela qual os democratas estão apostando o shutdown federal — que já dura mais de três semanas — é alertar os eleitores sobre os iminentes cortes profundos na saúde sob Trump.
“Abraham Lincoln disse: ‘O sentimento público é tudo. Com ele, nada pode falhar; contra ele, nada pode ter sucesso’”, disse-me Pelosi. “Eu adoro essa frase.” A eleição presidencial de 2024 mostrou que os eleitores da América não se comovem com ameaças à ordem constitucional. A batalha pela saúde busca trazer o foco de volta ao que os move diretamente. “A democracia é salva na mesa da cozinha”, disse Pelosi. “Temos que começar na mesa da cozinha.”
O quinhão de sentimento público de Pelosi esteve em plena exibição no sábado passado nas marchas de protesto “No Kings” anti-Trump por toda a América. Em um evento rival nos arredores de Los Angeles, o vice-presidente JD Vance discursou a fuzileiros navais e acompanhou um exercício militar com milhares de participantes em uma praia do Pacífico. Ele disse que os dias da influência partidária de esquerda sobre os militares dos EUA haviam terminado. Trump, Hegseth e ele estavam “firmemente contra essa porcaria”.
Mesmo que os republicanos percam a Câmara nas eleições de meio de mandato do ano que vem e não consigam manter a presidência em 2028, os democratas herdarão uma república que é espantosamente diferente daquela que deixaram. Você não entra duas vezes no mesmo rio. A tentação de manter os métodos de Trump — virar seu lawfare contra republicanos e outros inimigos domésticos — seria poderosa. Vários entrevistados destacaram este último ponto como uma das poucas linhas que chama a atenção de republicanos graduados.
Os democratas também herdariam destroços em áreas normais de governança. Tome Mike Abramowitz, diretor da emissora Voice of America, apoiada pelo governo federal, que Trump praticamente fechou. Sua presidente, Kari Lake, uma leal trumpista, diz que a VOA foi infiltrada pelo Partido Comunista da China. Ironia do destino, Abramowitz, que teve de reduzir a programação para uma ou duas horas por dia em apenas quatro dos 49 idiomas do veículo, foi sancionado pela China. A VOA tinha 100 milhões de telespectadores e ouvintes na África, disse Abramowitz. Até um terço dos iranianos sintonizavam regularmente. A China, onde a VOA é bloqueada, também é um mercado enorme, ainda que imensurável — consumidores chineses usam VPNs ilegais para contornar o grande firewall do país. “Imagine a enorme oportunidade para as emissoras da China e da Rússia preencherem a lacuna ao redor do mundo”, disse Abramowitz.
O sul global pode ser o palco de um “grande jogo”, como alguns analistas chamam, entre Rússia, China, América e, em certa medida, os europeus, para conquistar amigos e influência. Mas Trump está jogando um jogo diferente de todos os outros. Entre as audiências mais fiéis da VOA estava a Venezuela, durante suas eleições amplamente contestadas no ano passado. A RT, da Rússia, e a CCTV, da China, estão preenchendo o vácuo.
Abraham Lincoln disse: “O sentimento público é tudo (…) Contra ele, nada pode ter sucesso.” Eu adoro essa frase
No mundo jurídico de Washington, em sua maioria domado, um ou dois pequenos escritórios de advocacia se destacam. Um advogado, Abbe Lowell, deixou sua banca em maio para montar uma prática boutique que processa o governo Trump e defende seus alvos, entre eles James e Bolton. Aos 73 anos, Lowell vinha se envolvendo em uma ou duas ações governamentais por ano desde o governo Ronald Reagan, nos anos 1980. Agora, assume uma ou duas por semana. É um homem ocupado. “Eu tenho que acreditar que, em algum momento, juízes de instrução se recusarão a carimbar mandados de busca, que soldados se recusarão a apontar suas armas para americanos e que o Congresso se lembrará de seu papel constitucional”, disse Lowell. “Temos que viver de esperança.”
Perguntaram certa vez ao chanceler russo, Sergei Lavrov, quais conselheiros influenciavam seu chefe, Vladimir Putin. Lavrov teria ironizado que Putin ouvia os já falecidos Ivan, o Terrível, Pedro, o Grande e Catarina, a Grande. O cliente de Lowell, Bolton, disse que Trump consulta apenas um conselheiro — o falecido Roy Cohn, infame advogado da máfia em Nova York e figura-chave no macarthismo dos anos 1950. Foi com Cohn que Trump aprendeu que, quando alguém vem para cima de você, você revida duas vezes mais forte. “Cohn é a chave para Trump”, disse Bolton.
O reinado de terror de Joe McCarthy, que subverteu a sociedade americana e destruiu tantas carreiras, teve um fim patético em 1954 quando um advogado do Exército perguntou ao senador republicano: “Afinal, senhor, não lhe resta nenhum senso de decência?” É inconcebível que tal pergunta tivesse o menor efeito sobre Trump. Variações dela são, de fato, proferidas um milhão de vezes por dia antes do café da manhã. Na ausência de decência, agora há poder. A América está em um game show de vencedor-leva-tudo, no qual Trump é tanto o apresentador quanto o principal concorrente. Haverá um vencedor. Bannon me disse que “o trem saiu da estação e não está desacelerando”. Mais assassinatos ao estilo Kirk são tragicamente prováveis, ele prevê.
Alguns indivíduos — pessoas como Lowell, Abramowitz, Moss, alguns juízes de primeira instância e, ocasionalmente, um reitor universitário — estão enfrentando Trump. Mas suas batalhas são isoladas e discretas. A maioria dos “adultos” da América ainda mantém a cabeça baixa. “Precisamos descobrir uma maneira de fazer com que pessoas de diferentes domínios se levantem juntas em defesa do Estado de Direito — do mundo dos negócios, das Forças Armadas, da sociedade civil e da mídia”, disse o senador Warner. “Eu não acredito mais que nossas instituições políticas o farão.”

