Quem acompanha de perto a economia americana já pode ter ouvido falar da “Sahm Rule”, uma regra empírica que indica que, quando a taxa de desemprego dos EUA sobe 0,5 ponto percentual acima da média móvel dos últimos três meses, o país já entrou em uma recessão. Em entrevista ao Valor, a economista Claudia Sahm, que descobriu a relação, se diz preocupada com a recente tendência de enfraquecimento do mercado de trabalho, mesmo que uma recessão não esteja no seu horizonte de curto prazo. Mesmo assim, o cenário torna justificável o corte de juros feito pelo Federal Reserve (Fed) na última decisão.
Seus receios maiores estão na possibilidade de o banco central do país se tornar uma fonte de turbulência nos próximos anos, em meio às investidas políticas contra a instituição. Com uma trajetória de 12 anos no Fed e passagem pelo Conselho de Assessores Econômicos da Casa Branca, Sahm, que atualmente ocupa o cargo de economista-chefe na New Century Advisors, acredita que Jerome Powell presidiu, em dezembro, seu último corte de juros na instituição. O próximo ano deve ser marcado pelo aumento das incertezas, com a possibilidade da destituição de Lisa Cook e da vontade do secretário do Tesouro, Scott Bessent, de mudar regras para a elegibilidade de diretores regionais do Fed.
Valor: Concorda com o corte de juros feito na última reunião?
Claudia Sahm: Sim, mas também entendo as divergências que surgiram. É um momento difícil: todos reconhecem que a inflação está alta demais e que o mercado de trabalho está enfraquecendo. Ou seja, o Fed enfrenta dois problemas e dispõe de apenas uma ferramenta, a taxa de juros, e precisou escolher a qual problema responder. Considerando todas as informações antes da reunião, os dados indicavam uma trajetória preocupante no mercado de trabalho.
Valor: A redução dos juros foi preventiva?
Sahm: Não espero uma recessão e não vejo sinais disso nos dados. Mas, como os efeitos da política monetária demoram a se manifestar na economia, se o Fed esperar até que haja uma deterioração evidente, terá agido tarde demais. Na avaliação dos riscos, essa teria sido a decisão que eu mesma tomaria. Contudo, reconheço a possibilidade de esse movimento gerar problemas no lado da inflação. Embora tenha apoiado o corte, também considero importante que o critério para novas reduções seja elevado. O Fed já tomou sua medida preventiva, já fez vários cortes, e a postura de aguardar e observar me parece apropriada por algum tempo.
Embora tenha apoiado o corte, também considero importante que o critério para novas reduções seja elevado”
Valor: A inflação nos EUA está acima da meta há muito tempo. O Fed está se tornando mais leniente?
Sahm: É verdade que houve alguns anos de inflação muito elevada [após a pandemia] e que o nível de preços subiu, algo que continua pesando sobre as famílias. Mas, em relação ao desempenho do Fed, esta foi realmente a primeira vez, nos EUA, que vimos uma desinflação dessa magnitude. Depois que a inflação atingiu o pico em 2022, houve queda significativa. E o mais marcante é que isso ocorreu sem uma recessão. O Fed elevou os juros de forma rápida e houve quem dissesse que o Fed queria provocar uma recessão, o que não ocorreu.
Valor: O gráfico de pontos indicou só mais um corte em 2026…
Sahm: Se tudo correr conforme o planejado, Powell provavelmente terá presidido o seu último corte de juros. Há expectativa de que o crescimento acelere no primeiro semestre. Temos algum impulso fiscal, como a reabertura do governo, entre outros fatores. Isso ajuda a estabilizar o mercado de trabalho. Também levará algum tempo para observar progressos na inflação, especialmente porque os efeitos tarifários precisam se dissipar. Powell comentou que isso pode levar até a segunda metade do próximo ano para realmente aparecer. Esse seria o momento em que haveria espaço para um novo corte de juros.
Valor: Não há mais espaço para cortes no curto prazo?
Sahm: O Fed considera que, no momento, a taxa básica está em um nível amplamente neutro. Portanto, enquanto o mercado de trabalho não piorar de forma significativa, o Fed vai querer ver avanços mais claros na inflação antes de realizar um novo corte. Dito isso, as coisas raramente seguem exatamente o plano.
Valor: Como avalia o estado atual do mercado de trabalho?
Sahm: Suspeito que continuaremos a ver um certo enfraquecimento do mercado de trabalho. Passamos por um período atípico em que os dados disponíveis ficaram atrasados por causa do “shutdown” do governo e acho que o mercado de trabalho já enfraqueceu mais do que conseguimos observar. Acredito que a taxa de desemprego ainda deve subir um pouco. Mas vejo bons motivos para algum alívio no início do próximo ano: restituições extras de impostos, incentivos adicionais para empresas e benefícios tributários aprovados que entrarão em vigor. Ainda assim, temos observado por vários anos uma desaceleração gradual do mercado de trabalho, sem sinais claros de estabilização.
Valor: Por que a “Sahm Rule” não está servindo como um bom indicador de recessão neste momento?
Sahm: Eu não daria tanta ênfase para “regras de bolso” neste momento. Tem sido um ciclo difícil, desde a pandemia, para esse tipo de instrumento. Mas existe um princípio por trás da regra que realmente influenciou meu apoio ao último corte de juros. A “Sahm Rule”, como indicador de recessão, baseia-se nas variações da taxa de desemprego. E, a partir de junho, vimos nos EUA três meses consecutivos em que a taxa de desemprego subiu. Cada um desses meses mostrou um pequeno avanço. Não é uma alta que, historicamente, indicaria que já estamos em uma recessão. O nível absoluto ainda é relativamente baixo, embora isso possa ser um falso conforto, considerando o que está acontecendo hoje com a oferta de trabalho.
Valor: Vê riscos mais acentuados de uma piora no emprego?
Sahm: A taxa de desemprego está subindo de forma consistente, com um certo ritmo. E isso é motivo real de preocupação, porque, historicamente, não importa tanto qual é o ponto de partida do nível de desemprego. As recessões nos EUA começaram tanto com taxas muito baixas quanto muito altas. Assim, podemos sair de aumentos pequenos na taxa de desemprego – como os três décimos de ponto percentual registrados este ano – para aumentos de um ponto percentual ou mais, que ocorrem mesmo nas recessões mais brandas. Portanto, embora eu não esteja presa ao disparo exato da “Sahm Rule”, estou muito preocupada, assim como o Fed, com o aumento consistente do desemprego.
Valor: A sra. mencionou que o Fed poderá ser uma fonte de turbulência no ano que vem. Por quê?
Sahm: Parte desse potencial de turbulência está diretamente ligado ao grau de independência do Fed em relação à política. Em 2025, isso já apareceu diversas vezes: Trump ameaçou demitir Powell, visitou as obras do prédio do Fed, fez vários comentários defendendo juros muito mais baixos e tentou remover a diretora Lisa Cook, afirmando ter autoridade para retirar membros do Fed. Até agora, muita coisa ficou no campo das declarações. Houve algumas ações, como a tentativa de remover a diretora, mas a Suprema Corte suspendeu o processo e anunciou que só ouvirá o caso em janeiro. Assim, pouca coisa mudou de fato.
Valor: Isso pode mudar?
Sahm: Sabemos que em maio haverá um novo chair do Fed. Há muita discussão sobre quem assumirá o cargo. É incomum o presidente falar em aplicar um “teste ideológico”, buscando alguém disposto a reduzir os juros de forma agressiva. Essa transição de liderança será muito relevante para o Fed. Mesmo que o banco central não se torne mais político no sentido de seguir ordens da Casa Branca, haverá muita preocupação de que isso esteja acontecendo.
Valor: Quais são os riscos?
Sahm: Investidores podem ficar receosos de um Fed politizado, já que BCs politizados tendem a manter juros muito baixos por muito tempo, o que historicamente gera inflação. Os investidores olham muito à frente e, se acharem possível um cenário de inflação maior no futuro, vão exigir compensação agora na forma de juros mais altos. A própria incerteza pode gerar volatilidade, com oscilações das taxas. Isso tem potencial para causar bastante turbulência, porque começaremos a ver mudanças estruturais. Sim, estou preocupada.
Valor: A mudança no comando do é sua principal preocupação?
Sahm: É natural que um novo presidente traga prioridades diferentes. E o chair tem apenas um voto entre 12 no comitê, então as mudanças podem ocorrer de forma não radical. Por outro lado, mudanças significativas poderiam acontecer se a Suprema Corte remover Lisa Cook. O secretário do Tesouro, Bessent, também mencionou alterações nas regras de elegibilidade para presidentes dos Fed regionais. Ou seja, há muitos cenários possíveis. Essa incerteza deve pesar e fará do próprio Fed uma fonte de incerteza no ano que vem, o que é lamentável. É um risco do qual devemos estar conscientes.
Valor: Como avalia a recente divisão dentro do board?
Sahm: Vejo a divisão no comitê como um reflexo de um ambiente de política monetária extremamente desafiador. O comitê está unido no diagnóstico de que a inflação está alta demais e de que o mercado de trabalho está enfraquecendo. Nesse tipo de situação, considero natural, e até positivo, que pessoas qualificadas avaliem os riscos de maneiras diferentes.
Valor: É bom sinal que essa discordância seja pública?
Sahm: O Fed, em alguns momentos, tentou controlar a visibilidade das discordâncias para reforçar uma decisão consensual. Entre as reuniões de outubro e dezembro todos os dirigentes do Fed apareceram em público para discursar, exceto um. Powell não falou. Quando o presidente fala, toda a atenção se volta para ele, porque cabe ao chair construir o consenso e orientar a instituição. Ao permanecer em silêncio e permitir que os outros 18 dirigentes apresentassem suas posições, o que vimos foi a divergência exposta de forma clara. Houve volatilidade nos mercados, o que foi um pouco incômodo, mas considero positivo que, como presidente, ele tenha “passado o microfone” e deixado cada um apresentar seus argumentos.
Valor: Em que circunstância a divisão pode atrapalhar?
Sahm: Se tivermos um novo chair que chegue com uma postura muito assertiva, ele pode ser derrotado em votações. O problema surge se ficar difícil relacionar esses votos dissidentes a fundamentos econômicos e eles começarem a parecer motivados por política. Se isso ocorrer, será um problema.
Valor: Qual é a sua avaliação sobre Kevin Hassett?
Sahm: Hassett tem todas as qualificações para ser um bom presidente do Fed. Ele é um economista bem preparado, começou a carreira no próprio Fed como economista, entende a instituição e sabe como se constrói consenso, com base em evidências, modelos e raciocínio econômico, não político. É verdade que o trabalho atual de Hassett, e os cargos que ocupou recentemente, estão muito mais próximos do universo político. Mas isso não é incomum: muitos presidentes do Fed passaram um período na Casa Branca ou no Tesouro.
Valor: E se exibir viés político?
Sahm: Se chegar ao cargo com a postura que tem agora, atuando de forma política, terá enorme dificuldade para construir consensos. E, mesmo que de alguma forma ele conseguisse impor um consenso motivado por política, os mercados financeiros não reagiriam bem. Resumindo, Hassett tem as habilidades necessárias, tem experiência e conhece o Fed como instituição. Mas acredito que o presidente dificultou muito sua missão: a forma como Donald Trump tem conduzido o processo trouxe muita atenção para o componente político. Isso deve tornar o trabalho de Hassett mais complicado.
Fonte: Valor Econômico
