Por Adriana Cotias — De São Paulo
07/08/2023 05h02 Atualizado há 4 horas
Cerca de R$ 600 bilhões em recursos em fundos fechados exclusivos ou reservados a poucos investidores estão na mira do governo para aumentar a arrecadação pública. Se o plano do ministro da Fazenda, Fernando Haddad, seguir o script dos ensaios de legislaturas anteriores, carteiras usadas pelas famílias endinheiradas para uma melhor eficiência tributária passarão a ter o “come-cotas”, a antecipação periódica de imposto de renda, que já incide nos portfólios de renda fixa, multimercados e cambiais tradicionais.
O dilema, já observado em projetos frustrados no Congresso durante os governos dos ex-presidentes Michel Temer (MDB) e Jair Bolsonaro (PL), é se a cobrança de um imposto adicional valerá a partir de 2024 para as rendas obtidas neste ano ou se todo o estoque pagará o pedágio retroativamente. Sem essa condição, a medida se tornaria pouco relevante para as intenções de incrementar as receitas orçamentárias.
A volta do tema aos holofotes tem estimulado discussões entre os donos de fortunas com advogados e conselheiros financeiros sobre que iniciativas adotar para encarar a mordida do Leão. Os fundos familiares deixariam de contar com um de seus principais benefícios, o diferimento tributário a perder de vista – com cobrança de imposto só nas amortizações anuais ou liquidação das estruturas. É o que potencializa os retornos compostos no tempo. Mas preservariam atributos como planejamento sucessório e a compensação de perdas e ganhos entre diferentes classes de ativos, o que não ocorre nos veículos condominiais.
O que já houve de mudança desde o projeto de lei (PL) 2.337, encaminhado pelo ex-ministro da Economia Paulo Guedes para a Câmara dos Deputados, em 2021, é que alguns grupos fizeram a conversão ou cisão de carteiras existentes para separar a parcela investida em ações, diz a tributarista Ana Cláudia Utumi, do Utumi Advogados.
Isso porque, nos fundos que abrigam esses ativos, seja sob condomínio aberto (que permite a compra e venda de cotas a qualquer tempo) ou fechado (com regras restritas), o ganho de capital só é tributado na retirada dos recursos, não há incidência de come-cotas pela característica da imprevisibilidade da renda variável.
Pelas regras da Comissão de Valores Mobiliários (CVM), essas carteiras têm que ter pelo menos 67% do patrimônio em ações. “Mas na maioria das famílias, um fundo médio de investimento [com diversas classes de ativos] não tem tanto risco assim em ações e continuam diferindo a tributação”, diz Utumi. “E os anos de 2021 e 2022 não foram de tanta bonança, houve perdas para as carteiras.”
O que ela observa na interação de gestores de patrimônio com os clientes é a recomendação para olharem para as carteiras e avaliar o que pode ser liquidado com maior facilidade para o pagamento do imposto. “Tem muito fundo com carteira ilíquida, e se o cliente não tem o dinheiro talvez tenha que se desfazer dos ativos de uma hora para outra a preços baixos.”
Utumi dá como certo um texto que inclua a tributação sobre o estoque, sem o que o projeto perderia apelo para o governo. Ela lembra que, quando o come-cotas sobre os rendimentos dos fundos abertos foi instituído, em 1997, o governo conseguiu tributar os rendimentos relativos ao passado, apesar de questionamentos na Justiça, que não prosperaram.
“Não há dúvida de que vai ter tributação, tanto de fundos exclusivos fechados quanto nos ‘offshores’ [no exterior], a indústria está esperando por isso há muito tempo”, diz Bernardo Assumpção, CEO da Arton Advisors. Para ele, o texto da MP 1.171, enviada ao Congresso em maio – que prevê taxar ganhos de capital e rendimentos de brasileiros no exterior para compensar a isenção para quem ganha até dois salários mínimos -, foi muito bem escrito.
No caso dos veículos usados pelas famílias ricas no Brasil, com patrimônio a partir de R$ 10 milhões, ele acrescenta que o ministro Haddad tem sido bastante vocal – chegou a chamar essas estruturas como “paraísos fiscais dentro do Brasil” em entrevista à “GloboNews”, na semana passada – e prometeu encaminhar um projeto de lei neste mês em paralelo à proposta orçamentária.
Assumpção diz que nunca num início de governo houve tanta disposição para tal debate. “Todo mundo está esperando qual o tamanho da facada, se vai ser sobre o estoque ou daqui para frente, no Brasil e lá fora. Vai ser o fim do diferimento eterno de IR em estruturas fiduciárias. Mas não vai ter manifestação na Faria Lima”, brinca. “Vamos ter que conviver com isso, o apetite de arrecadar está dado.”
Com cerca de 30 fundos fechados restritos na sua base de investidores, o executivo da Arton diz que veículos de previdência tendem a suprir essa lacuna e têm sido os mais procuradas para organização de recursos obtidos em eventos de liquidez. “Eles preservam todo o instrumental de um fundo exclusivo e com flexibilidade cada vez maior para fazer investimentos.”
Toda vez que a tributação de fundos de gestão patrimonial volta à cena, o tema traz apreensão aos investidores, diz Gustavo Schwartzmann, executivo-chefe de investimentos (CIO) da gestora do Santander Private Banking. “Mas o universo que a nossa gestora toca tem características que justificam o produto e que vão além do diferimento”, afirma.
Como atributos, ele cita a compensação de ganhos e perdas dentro de um mesmo veículo, o fato de operar no mercado institucional com acesso a spreads e corretagens mais baixos, além da possibilidade de fazer planejamento tributário e sucessório. É também um meio de acessar a capacidade de gestoras de recursos de primeira linha, que têm seus fundos quase sempre fechados para captação. “Carteiras administradas de títulos isentos é uma linha que passa incólume dessa discussão e os mandatos de previdência exclusivos também”, diz Schwartzmann.
Numa conjuntura que não favorece o aumento de renda da população e com poucas operações de fusões e aquisições para criação de riqueza, a previdência complementar não teria muito espaço para crescer no curto prazo, diz Marcelo Mello, CEO de Vida, Previdência e Investimentos da SulAmérica. Mas a possível tributação dos fundos fechados familiares tende a trazer um fluxo novo importante para os planos VGBL.
“Em debates anteriores, teve muita movimentação e discussão com escritórios de advocacia especializados em sucessão, muito pedido de simulação de mudança de produto 555 [de fundos tradicionais] para o de previdência, para deixar o conceito preparado no caso a regra fosse aprovada. Agora que o assunto voltou, quem tem o fundo exclusivo tende a se planejar para isso”, diz Mello.
A transferência de recursos provocaria um evento tributário porque não é possível converter um fundo fechado para uma estrutura de previdência. Já um multimercado pode ser transformado em carteira de ações adequando-se o regulamento e a exposição mínima de 67% em bolsa, diz Evandro Bertho, sócio da Nau Capital.
“Alguns clientes maiores, controladores de empresas listadas têm as suas ações dentro de um fundo. Podem resgatar a parcela do que não é ação e já há o enquadramento. A forma mais inteligente de fazer é tirar os ativos que têm benefício fiscal na pessoa física como letras de crédito [imobiliário e do agronegócio] ou as debêntures incentivadas”, afirma Bertho.
O executivo lembra que no projeto de Guedes, a tributação do estoque era opcional, com uma alíquota diferenciada, de 6%, menor do que a que incidiria no come-cotas de 15%. “Digamos que o texto venha parecido, para quem já pensava num resgate, uma carteira de renda fixa na pessoa física por conta dos incentivos seria uma saída.”
Com quase 20 fundos reservados na prateleira, a recomendação dentro da Nau tem sido esperar a redação do novo projeto para pensar em possíveis soluções. “Não há muito o que fazer com esse nível de antecipação”, diz Bertho.
Ele não acha que será decretada a morte dos fundos fechados familiares que possibilitam que diferentes classes de ativos se conversem em termos de resultados, com compensação de prejuízos. Quem teve perdas com debêntures da Americanas e ganhou com a venda de determinada ação na pessoa física não poderia fazer esse ajuste de contas, exemplifica, e pagaria o imposto referente ao ganho de capital.
Outro benefício dos fundos exclusivos e reservados é o sucessório, que permite a doação de cotas em vida com usufruto de direitos políticos pelo dono original da riqueza. É também a forma de ter acesso à gestão profissional e consolidada da carteira.
Para Dennis Kac, diretor de investimentos (CIO) da Brainvest, com a inclusão do come-cotas os fundos fechados perdem apelo. “Os investidores perguntam e estão aguardando qual a regra e se realmente vai aprovar a medida, já que algumas vezes viu bater na trave”, diz. “Parece haver um alinhamento maior do Congresso, do Senado, a chance é maior de aprovação em relação aos projetos anteriores. O texto da tributação offshore já veio mais elaborado.”
O que parece que não está no radar agora nos planos do governo é equiparar os fundos de investimentos em participações (FIP) familiares a uma tributação análoga à pessoa jurídica. “Bem ou mal, os que funcionam como holding já foram autuados pela Receita Federal”, diz Utumi.
Talvez não haja tempo para votar a MP que onera os veículos “offshore”, já que não houve criação de comissão mista nem foi designado um relator para o projeto, que tende a caducar, diz a tributarista. Ela imagina que o governo incorpore o tema no mesmo projeto dos fundos fechados exclusivos e reservados.
Fonte: Valor Econômico


