A declaração do presidente Luiz Inácio Lula da Silva de que a meta fiscal para 2024 “não precisa ser zero” enfraquece o trabalho feito no Congresso pelo ministro da Fazenda, Fernando Haddad, além de poder engrossar o coro dos que pressionam pela revisão do alvo para o resultado primário no ano que vem. A avaliação é compartilhada por economistas que também consideram que o “timing inconveniente” escolhido por Lula pode ainda afetar as expectativas, atrapalhando o processo em curso de queda dos juros.
“A fala de Lula não reflete um agente político com experiência e consciente dos vasos comunicantes que uma sinalização como essa produz nas variáveis macroeconômicas e financeiras”, afirma Gabriel Leal de Barros, sócio da Ryo Asset. Para ele, as declarações de Lula deterioram a confiança, que já era baixa, de que o governo vai cumprir a meta de déficit primário zero do governo central em 2024, ou mesmo de um rombo de 0,25% do PIB, ainda dentro da banda de tolerância para o alvo definido para o ano que vem, de 0,25 ponto percentual do PIB, para mais ou para menos. O resultado primário é a diferença entre receitas e despesas, excluindo gastos com juros.
A ação de Lula, diz Leal de Barros, pode autorizar que novos atores políticos se somem a vozes até então mais isoladas que defendiam a revisão de metas. “Isso deve afetar o tamanho da desidratação de alguns projetos importantes encaminhados pelo governo ao Congresso. O mais importante para a semana que vem é a medida sobre subvenções de ICMS, que já deverá ser desidratada porque, além da exigência de habilitação prévia na Receita Federal para uso do crédito, há toda a discussão sobre o crédito presumido e a preocupação para que as empresas do Nordeste não sejam afetadas. A fala de Lula vai impactar o quanto o Congresso irá entregar de ganho fiscal”, avalia Leal de Barros, ex-diretor da Instituição Fiscal Independente (IFI).
“Não é novidade Lula ter essa retórica com o mercado nem fazer a defesa do investimento público. O que assustou todo mundo e chocou a todos é que existe uma ação muito intensa do ministro Haddad junto ao mundo político, de buscar mais receitas, e também junto ao próprio governo, no sentido de defender a importância da meta zero”, diz Carlos Kawall, sócio fundador da Oriz Partners e ex-secretário do Tesouro Nacional. Para ele, a fala de Lula joga uma “cortina de fumaça” no pilar fiscal, dentro de uma regra que o próprio governo trouxe e cria a ideia de que o ministro da Fazenda não é tão forte assim.
O presidente Lula atirou no mercado e alvejou o próprio ministro da Fazenda”
Outra repercussão, diz Leal de Barros, é no cenário de risco de a meta de resultado primário ser alterada ainda este ano, apesar de Haddad negar. Uma parte do mercado acreditava que a revisão aconteceria somente em 2024, em razão do efeito colateral que isso tem na política monetária do Banco Central, diz. “Olhando única exclusivamente para o modelo do BC, ele [o modelo] estaria autorizando uma aceleração de corte na taxa de juros para 0,75 ponto percentual em dezembro. O mercado estava usando essa comunicação do fiscal com o monetário como premissa de que a meta de déficit não seria alterada este ano, somente em 2024, justamente para dar conforto necessário para o BC. Com essa fala do Lula essa especulação cai por terra, porque o balanço de riscos do BC fica pior por conta do fiscal.”
Para Kawall, o contexto anterior ao da declaração de Lula dava ao Copom segurança para continuar o ciclo de corte de juros. “Acredito que ainda haverá o corte, mas os passos subsequentes se tornam um pouco menos certos porque agora o próprio presidente jogou uma cortina de fumaça em cima do pilar fiscal, dentro de uma regra que o próprio governo criou.”
“O que o presidente Lula faz joga mais dúvidas sobre a possibilidade de ter um corte de juros mais rápido por conta de o pilar fiscal estar sendo erodido, de você não respeitar a regra.” Além disso, acrescenta Kawall, é “surpreendente a deselegância” da declaração de Lula no momento em que o ministro da Fazenda está brigando no Congresso pela aprovação de medidas tributárias para chegar o mais perto possível do cumprimento da meta fiscal em 2024. “Nesse sentido, a afirmação do ponto de vista de estratégia de política econômica está totalmente na contramão daquilo que seria necessário, criando a ideia de que o ministro Haddad não é tão forte assim”, diz Kawall. “Ele atirou no mercado e alvejou o próprio ministro da Fazenda, como se Haddad estivesse fazendo um serviço do mercado.”
Ainda que a meta não seja revisada ainda neste ano, diz Leal de Barros, a fala de Lula inaugura uma sequência de debates sobre qual será a nova meta de resultado primário. É preciso lembrar, diz, que a expectativa de desaceleração da economia e de piora de desempenho das receitas recorrentes cria um embaraço para o governo na reestimativa de déficit. “O governo pede [nas medidas que enviou para votação] R$ 170 bilhões [em receitas] e o Congresso vai entregar no melhor dos cenários de aumento de carga tributária R$ 70 bilhões. Deveremos ter um déficit de R$ 100 bilhões, bem acima de 0,5 ponto percentual do PIB.”
Se a meta de déficit primário for mantida em zero para 2024 e o déficit for maior que o 0,25% de PIB permitidos pela banda de flutuação da regra, será necessário fazer contingenciamento e gatilhos também podem ser acionados para 2025, limitando a expansão do gasto, lembra Kawall. “A briga hoje no fundo é se será respeitada a regra criada pelo próprio governo e que, mesmo frouxa, provavelmente vai demandar algum tipo de esforço, como um contingenciamento no ano que vem, ou se a meta será alterada, sem nenhum tipo de restrição no gasto.”
O arcabouço fiscal, lembra ele, tem um piso de investimento, o que preserva também esse tipo de gasto. “O que temos é que a despesa discricionária, tirando investimentos, subiu muito por conta do fim do teto. Então poderia se fazer o contingenciamento fora dos investimentos e dar alguma contribuição na direção do cumprimento da meta.”
Fonte: Valor Econômico

