Por Sérgio Tauhata — De São Paulo
23/03/2023 05h01 Atualizado há 5 horas
O Banco Central (BC) não vai poder sinalizar o início de um ciclo de corte de taxa enquanto as expectativas sobre a inflação futura estiverem desancoradas, avalia o chefe do centro de estudos monetário do FGV/Ibre e ex-diretor do Banco Central, José Julio Senna. “É contra o protocolo básico dos BCs alterar a política de juros, num ambiente em que as expectativas de inflação estão piorando”, afirma o economista.
De acordo com Senna, o juro real no país, definido pela variação das NTN-Bs (títulos do Tesouro), tem subido diante da piora das perspectivas fiscais, em um movimento que ocorre desde o ano passado. “Parece inegável que essa piora dos juros reais tem tudo a ver com a percepção de risco-país, que é fundamentalmente influenciada pelo risco fiscal.”
Desancoragem de expectativas de inflação em prazos mais longos pode levar o BC a ter de retomar altas de juros”
Para o especialista, o BC “fica em posição difícil enquanto o mercado não sinalizar que está vendo um horizonte favorável para as contas públicas”. Segundo o ex-diretor da autoridade monetária, se as expectativas de inflação futura de prazos ainda mais longos continuarem o processo de desancoragem, é possível que o BC tenha até mesmo de voltar a elevar a Selic. Leia os principais trechos da entrevista:
Valor: O BC poderia ter optado por sinalizar um eventual início de ciclo de corte da Selic?
José Julio Senna: As expectativas de modo geral estão desancoradas. É contra o protocolo básico [de atuação dos BCs que seguem o regime de metas de inflação] alterar política de juros num ambiente em que expectativas de inflação estão piorando. Os juros reais estão muito altos e seria muito desconfortável o BC tomar uma atitude unilateral na frente de todo mundo, ou seja, iniciar ou sinalizar um ciclo de corte antes de os participantes do mercado sinalizarem que estão vendo um horizonte favorável para as contas públicas. Enquanto esse sinal não vier o BC fica numa situação difícil. Outro aspecto importante que o comunicado trata de outra maneira é que os juros reais de mercado, expressos nas NTN-Bs, há dois anos eram de 4% ou pouco acima disso e hoje estão em mais de 6% ao longo de toda a curva. Parece inegável que essa piora dos juros reais tem tudo a ver com a percepção de risco-país, que é fundamentalmente influenciada pelo risco fiscal.
Valor: O senhor mencionou protocolos do BC. Quais seriam?
Senna: A experiência mostra que a abandonar os protocolos que estão bem estabelecidos e, de modo geral, são seguidos pelos BCs em número bastante grande de países que adotam o mesmo regime monetário pode resultar em uma desancoragem das expectativas e no descontrole da própria inflação. A reunião mostrou que, a despeito de todas as pressões políticas sobre o BC, a autoridade continuou firme, atuando rigorosamente segundo esses protocolos.
Valor: A trajetória do ciclo da Selic está então fortemente ligada ao comportamento fiscal…
Senna: Há dois anos atrás tivemos a PEC do Precatórios, a PEC Kamikase e depois da Transição. A cada movimento do Congresso e do Executivo em que as perspectivas das contas públicas pioraram, os juros reais do país subiram. Saindo de pouco mais de 4% para 6% a 6,5%. É um movimento que tem tudo a ver com o fiscal. O mercado pune tanto um governo de direita quanto de esquerda. As duas primeiras PECs são do governo anterior e a da Transição é do atual.
Valor: A decisão do Federal Reserve (Fed, o BC americano) ontem pode influenciar a política monetária no Brasil?
Senna: A tônica da reunião do Fed foi em torno do elevado grau de incerteza. O mercado jogando bolsa para baixo, juro para baixo e dólar pra baixo, o que sugere que o mercado está enxergando aperto forte nas condições de crédito e piora importante no ritmo de atividade econômica nos EUA. Mas pode não acontecer nada disso e o Fed precisar voltar a apertar a política monetária de novo. O que parece mais provável, até porque o [presidente do Fed Jerome] Powell comentou que o Fomc não enxerga ainda queda de juros neste ano. Se fora assim, os juros reais e as condições financeiras nos EUA continuarão apertadas até o fim do ano e isso limita muito o que o BC brasileiro pode fazer. A política monetária dos EUA é uma limitação importante para a do Brasil.
Valor: O cenário no Brasil pode mudar se houver o novo arcabouço fiscal for bem recebido?
Senna: Do lado altista das pressões inflacionárias, entre vários fatores, o comunicado trouxe a incerteza sobre o arcabouço fiscal. Ainda não foi anunciado e ficou para abril. Ou seja, a gente não conhece e, depois de conhecer, temos de examinar qual a influência das regras sobre a trajetória da dívida pública. Existe risco de as projeções de inflação ficarem mais altas. Outro fator é a desacoragem [de expectativas de inflação] alcançarem prazos mais longos. Na verdade já estão desancoradas e pode ficar pior. À medida que isso aconteça, pode levar o BC a ter de subir juros de novo. O que preocupa o BC talvez seja o futuro da política fiscal, porque o BC entendeu corretamente que a reoneração dos combustíveis reduziu a incerteza fiscal de curto prazo. Mas a decisão de política monetária de hoje afeta inflação e atividade econômica de seis trimestres seguintes. A preocupação é com o fiscal de médio prazo e não com o de agora.
Valor: A incerteza fiscal pode manter a Selic estável em 2023?
Senna: A política fiscal no mundo todo é conduzida fundamentalmente por políticos. Não é uma coisa conduzida por técnicos. Não vejo protocolos para condução de política fiscal. Na política monetária, é rigorosamente o oposto. Os banqueiros centrais seguem protocolos que nasceram da experiência. A experiência mostra que abandonar esses protocolos costuma ter um custo muito alto. E quem paga o preço é exatamente a sociedade. O arcabouço teórico básico [dentro das projeções do BC] está mostrando que com os juros estáveis consegue cumprir a meta [em 2024].
Fonte: Valor Econômico