Christine Lagarde entrega um pequeno saco de papel branco com alguma coisa inesperadamente pesada dentro, após ter percorrido o restaurante com sua costumeira elegância, tão segura de si. Tirando suas luvas de couro preto antes de apertar minha mão – está friozinho neste dia nublado de Frankfurt -, ela explica: “É uma geleia que fiz com os ‘grapefruits’ do nosso jardim na Córsega”.
Fico desarmado pelo presente. Talvez tenha sido essa a intenção de Lagarde. Será que posso aceitá-lo? Será que eu deveria ter trazido alguma coisa para dar a ela? “Como um grapefruit por dia há cerca de 45 anos”, diz a presidente do Banco Central Europeu (BCE), abrindo um amplo sorriso que realça seu bem aparado cabelo curto grisalho, sua blusa de seda branca, sua echarpe floral monocromática e seus brincos de pérola. “Proporciona vitamina C e um pouco de vitalidade de manhã.”
Estamos na Caféhaus Siesmayer, uma cafeteria sóbria de estilo vienense conhecida por seus generosos bolos franceses e alemães. Nossa mesa fica ao lado de uma janela do teto ao chão com vista para o Palmengarten, o jardim botânico construído por Heinrich Siesmayer e inaugurado em 1871, que figura entre as principais atrações de Frankfurt. Faz quatro anos que Lagarde chegou a esta cidade, já na condição de uma das mulheres mais poderosas do mundo. Ela deixou Washington, onde comandava o Fundo Monetário Internacional, como parte de um acordo franco-alemão que a transferiu para o BCE ao mesmo tempo em que instalava a ministra da Defesa de Berlim, Ursula von der Leyen, no comando da Comissão Europeia.
“Estou no meio da partida, certo?”, diz ela, observando que faltam poucos dias para ela chegar exatamente ao ponto central de sua gestão de oito anos e revelando-se impressionada com o que foi “uma curva de aprendizagem acelerada, mas no contexto de uma série incrível de choques, pontos de ruptura, guinadas… é o suficiente para te deixar um pouco tonta”. Este parece o momento perfeito para fazer uma avaliação geral.
Mas antes chega a garçonete para tomar os pedidos de bebidas. Com a aparência bronzeada de sempre, e muito brilho nos olhos verdes, Lagarde resolve rapidamente: “Olha, vou tomar água com gás, é chato, mas é o mesmo de sempre!”. Praticamente abstêmia, ela apenas abre uma exceção para “uma ‘coupe de champagne’, ou na presença de um fantástico Bordeaux”.
Os últimos quatro anos produziram uma “série de choques – um após o outro”. Primeiro a pandemia de covid-19 mutilou a economia apenas cinco meses após a chegada de Lagarde como a autoridade monetária máxima da Europa. Dois anos depois a invasão da Ucrânia pela Rússia fez os preços da energia e dos alimentos disparar, o que puxou a inflação da zona do euro para uma taxa mais de cinco vezes superior à meta de 2% do banco central. Em resposta, o BCE elevou as taxas de juros dez vezes, sem precedentes, fazendo-as alcançar seu nível mais elevado da história da instituição e submetendo a economia a um aperto tão grande que o crescimento quase parou. Diante disso, que nota, de 0 a 10, Lagarde daria a si mesma?
“Ooopa, bem, tenho de mostrar autoestima e confiança, então diria 10”, brinca. “Não, eu reclamo tanto de as mulheres não terem autoconfiança, portanto tenho de ter cuidado em não ser autodepreciativa. Mas eu diria 7. Houve uma curva de aprendizagem muito, mas muito violenta e repentina, para começar. Depois, claro, se está procurando indicadores fundamentais de desempenho, não estamos a 2% [de inflação].” Quando nos encontramos, a taxa estava em 4,3%.
Outra garçonete chega e recomenda o menu a preço fixo. Quando ela se afasta, Lagarde diz: “Me diz, como ainda ando crua no alemão, isso é carne ou peixe?” Meu alemão é só um pouquinho menos ruim e, assim, traduzo por alto. O primeiro prato é salmão, para o principal há uma opção de peito de pato e a outra de risoto de açafrão. “E não tem carne nesse?”, pergunta ela. “Não como nenhum quadrúpede”, diz, antes de acrescentar, jocosamente: “Portanto, poderia comer você”.
O BCE foi criticado por reagir lentamente demais à disparada de inflação do ano passado e Lagarde reconheceu ter falhado por não prever o quanto a crise energética causada pela guerra na Ucrânia elevaria os preços ao consumidor. “Penso o mesmo que tantos outros, inicialmente nós tratamos [a inflação] como caso clássico de livro-texto, um choque de oferta”, diz ela. “A situação vai se reassentar no fim do choque e ele será absorvido… tudo isso era previsto e nada disso aconteceu realmente.”
“Mas o que lamento pessoalmente é ter me sentido comprometida a cumprir nossa orientação futura”, diz, referindo-se ao compromisso assumido pelo BCE de que só começaria a elevar as taxas depois que deixasse de comprar bilhões de euros em títulos, principalmente governamentais, o que fez lentamente nos primeiros seis meses de 2022. “Eu deveria ter sido mais ousada.”
Será que o Banco Central Europeu se sairá melhor na próxima crise? “O tipo de choque de oferta que talvez possa nos prejudicar, dependendo de como a situação evoluir no Oriente Médio, de como o Irã venha a participar disso e qual será a reação global -, esses são enormes pontos de interrogação e enormes preocupações no horizonte”, diz a executiva. “Mas o que deveríamos aprender é que não podemos nos limitar a depender só de casos clássicos de livros-textos e de modelos puros. Temos de pensar com horizonte mais amplo.”
Acho que houve dois momentos em que percebi o perigo e o poder das palavras nessa profissão”
Nosso encontro ocorreu num momento em que Lagarde se preparava para levar o BCE para Atenas, na quinta-feira passada, para sua viagem anual para longe de Frankfurt. Foi uma reunião histórica para o banco central, ao encerrar sua série de 15 meses de altas dos juros. Mas foi também um grande momento para a Grécia, que recentemente recuperou sua classificação de crédito de grau de investimento, uma década depois que sua crise da dívida quase destruiu a zona do euro. Lagarde recebeu ameaças de morte como presidente e diretora-geral do FMI, após ter ajudado a formular um violento plano de austeridade como parte do pacote de socorro concedido à Grécia. Teria sido “mais eficiente e, talvez, mais bem-aceito se tivéssemos tido um período mais longo de tempo para fazer os ajustes”, reconhece ela, lamentando que, no FMI, “todos os programas que tínhamos eram de curto prazo”.
Perguntados sobre os nossos pedidos, Lagarde e eu pedimos o risoto com tomate, pimentão e pesto de manjericão do menu a preço fixo, com salmão marinado, batata rosti e um molho de dill e mostarda como primeiro prato. Lagarde diz que o cheesecake do lugar é o melhor de todo o lado de cá do Atlântico. Pergunto à garçonete se podemos pedir essa sobremesa em vez da “petite pâtisserie e sorbet” do menu, só para ouvirmos ela responder: “tenho de perguntar”. Quando a garçonete se vai, Lagarde diz: “Isso é muito alemão, ‘tenho de perguntar’”.
Será que Frankfurt começa a fazê-la sentir-se em casa? “É a segunda casa. Não é bem casa, casa. Casa é onde a família está, e a minha não está aqui. Está em Paris, predominantemente”, diz ela. Todo fim de semana ela vê, com frequência, alguns de seus sete netos, produto de dois casamentos. Mas, ao menos oito vezes ao ano, ela está em Frankfurt se preparando para a reunião seguinte de política monetária do BCE. “Viro uma monja. Me tranco no meu apartamento com uma pilha de coisas para ler. Depois venho aqui tomar café da manhã ou vou a um museu para arejar um pouco.” Os dias de trabalho começam às 5:30 com ioga, flexões e sua bicicleta ergométrica. Ela muitas vezes volta do escritório após às 20 horas.
Lagarde fica decepcionada em saber que o gerente da Siesmayer, um ex-tradutor que falava “um francês bastante bom” com ela e recomendava bolos logo depois de ela chegar a Frankfurt, estava de folga aquele dia. “Sou meio formiguinha”, confessa. O também executivo do BCE Fabio Panetta trouxe uma torta de frutas e um bolo de chocolate da Siesmayer para uma reunião de emergência do conselho diretor realizada em volta da mesa da cozinha de Lagarde, na qual eles aprovaram um enorme programa de compra de bônus como reação à pandemia. O restaurante chegou a abrir tarde da noite, em um verão, dois anos atrás, para permitir que os 25 membros do conselho diretor do banco tivessem acesso à sua varanda para o jantar que marcou o fim de uma revisão de estratégia.
Nossos primeiros pratos chegam e, ao dar uma examinada no dela, pergunta: “Deveria ter salmão aqui, certo?” Afasto algumas folhas de cima com o garfo, o que descortina um elegante círculo de salmão marinado em cima do rosti. “Aí está.”
Voltando a conversa à abrupta curva de aprendizagem dela, menciono um deslize cometido logo no início, quando foi perguntada, em entrevista coletiva do BCE, qual era sua reação ao crescente alarme em torno das mortes por covid-19 no norte da Itália, um quadro que puxou para cima o “spread” entre os custos da tomada de empréstimos italiano e alemão. Sua resposta, impensada, foi: “Não estamos aqui para fechar ‘spreads’”.
Os mercados de bônus despencaram instantaneamente, pois os investidores se preocuparam com a possibilidade de Lagarde estar deixando para trás o compromisso celebremente assumido por seu antecessor italiano, Mario Draghi, durante uma crise da dívida de dez anos antes, de fazer “o que for necessário” para defender o euro. Teria sido esse o momento em que ela percebeu o quanto estava em jogo em seu novo cargo?
“Essa é uma avaliação justa”, diz ela. “Acho que houve dois momentos em que percebi o perigo e o poder das palavras nessa profissão.” A primeira foi em 2012, quando ela estava na primeira fila de uma conferência em Londres ouvindo o comentário “o que for preciso” de Draghi. Ela lembra que ao se encontrar depois com o italiano, um assessor ofegante disse a ele que “os mercados estão se mexendo” e que sua resposta fria foi: “É mesmo?”.
“Acho que o segundo momento foi ‘não estamos aqui para diminuir os spreads’, o que tecnicamente era verdade. É que…”, então ela para. “Conversei com colegas e amigos depois daquilo”, diz ela, listando Jerome Powell, presidente do Federal Reserve (Fed), Janet Yellen, sua antecessora que hoje está na Secretaria do Tesouro, e Mark Carney, ex-presidente do Banco da Inglaterra, assim como Draghi. “A maioria deles, nem todos, mas a maioria, disse: ‘Bem-vinda ao clube, todos nós fizemos a mesma coisa. Todos nós estragamos tudo’”.
Num discurso na conferência do Fed em Jackson Hole, em agosto, Lagarde disse que uma fragmentação da economia mundial em blocos geopolíticos concorrentes está complicando a tarefa dos formuladores de políticas. “Eu não sabia que isso aconteceria tão rápido”, diz ela.
Voltando-se para o conflito entre Israel e o Hamas, ela alerta: “Precisamos ser cautelosos. Ele poderá não se desenrolar da mesma maneira que durante a guerra de 1973. Poderá ser diferente”. É uma referência à guerra do Yom Kippur entre Israel e seus vizinhos árabes que provocou a primeira crise mundial do petróleo. A economia aberta da Europa depende do comércio, o que lhe dá uma “vulnerabilidade inerente” a tais choques, admite ela.
Poderá este mundo fragmentado ameaçar o domínio do dólar como moeda de reserva e no comércio global, conforme sugeriu Lagarde em um discurso em abril? “Estou apenas observando”, diz ela. O risco advém do aumento das divisões norte-sul e “se veremos a China reunir materialmente o sul”, especialmente o “Brasil, a Índia e alguns países do Oriente Médio que estão tentando decidir transações em moedas locais”. As novas moedas digitais – como a que está sendo trabalhada pelo BCE – “também terão um papel”, prevê.
Há um brilho amarelo, vermelho e verde enquanto nossos risotos são servidos, cercados de uma espuma branca. “As cores são lindas”, declara Lagarde. “Você cozinha?” Quando digo que sim, ela responde: “Eu também e adoro a estética”. Fazendo uma pausa para provar, ela diz que um de seus dois filhos é um chef em Paris, antes de acrescentar: “A propósito, isso aqui está muito bom”.
Crescendo em Le Havre, na costa da Normandia, Lagarde foi imbuída de um espírito independente pelos pais. Sua mãe, Nicole, tornou-se uma “grande inspiração”, diz ela, parecendo um pouco emocionada. Nicole criou quatro filhos sozinha, depois que o pai de Lagarde, Robert, morreu quando ela tinha apenas 16 anos. Ao mesmo tempo, ela “realizava multitarefas ao extremo”, trabalhando como professora de línguas, cavalgando, correndo em rali automobilístico, cantando em um coral e costurando vestidos. “Ela sempre queria estar elegante”, afirma.
Na universidade em Paris, Lagarde estudou Direito, “mas pelo motivo errado, porque inicialmente eu queria lutar contra a pena de morte”. Antes mesmo de se formar, a pena capital havia sido abolida. Incansável, ela entrou para a firma de advocacia Baker McKenzie, tornando-se a primeira mulher a presidir a empresa em 1999.
Desde então, sua carreira parece ter sido direcionada menos por escolhas e mais por apelos para ocupar cargos públicos. “Você está absolutamente certo”, diz, lembrando-se do primeiro-ministro francês Dominique de Villepin ao telefone em 2005, depois que Legarde pediu um tempo para decidir se retornaria à França para se tornar ministra do Comércio. “Eu estava sendo convocada. No FMI foi a mesma coisa, no BCE, a mesma coisa”, diz. “Não tive escolha. Recebia o telefonema e respondia que sim, às vezes por minha conta e risco, às vezes me aventurando. Mas eu também gostei”, completa.
Ocasionalmente, a imprensa francesa especula sobre um possível retorno à linha de frente da política em Paris. Mas Lagarde foi condenada por negligência por um tribunal francês em 2016, que não proferiu qualquer sentença, embora tenha afirmado que ela deveria ter contestado um pagamento do governo ao empresário Bernard Tapie, quando era ministra das Finanças.
Um retorno é mesmo possível? “Você nunca deve dizer não. Mas duvido muito”, diz ela. Poderá ela deixar o BCE antes do fim de seu mandato em 2027? “Tenho uma missão a cumprir e vou cumpri-la.” O que virá em seguida? “Haverá um outro telefonema.”
Enquanto pergunto sobre sua paixão pela defesa dos direitos das mulheres, uma garçonete pergunta se queremos sobremesa. “Acho que não consigo comer o bolo”, diz ela. Mas quando eu demonstro interesse, ela decide dividir uma fatia. Tendo declarado certa vez que o Lehman Brothers não teria quebrado se tivesse sido o Lehman Sisters, ela diz: “Deixa eu esclarecer isso, porque não quero ser vista como uma pessoa que desdenha dos homens, pendendo para o lado das mulheres. É que muitas vezes, ao longo da vida, há discriminação, seleções injustas, um atraso aplicado à progressão de suas carreiras, que elas simplesmente precisam se esforçar mais do que os homens.”
Lagarde é frequentemente criticada por analistas financeiros por sua falta de formação econômica. “Acho que parte disso é machismo”, diz ela, com o rosto endurecido. “Você sabe, parte disso é o desejo deles de permanecer naquele mundo estreito da caraterização única… Vejo que o meu dever é para com os europeus e não os especialistas financeiros.”
Membro da equipe de nado sincronizado da França na juventude, aos 67 anos ela ainda usa as técnicas de respiração que aprendeu, para lidar com o estresse. “Quando ouço alguns presidentes [de bancos centrais], eu fico…”. Ela inspira profundamente usando o abdômen. “E então, você sorri.”
Como ela faz para convencer uma sala cheia de banqueiros centrais, na sua maioria homens, a apoiar decisões políticas difíceis? “Isso exige muita preparação. Porque se eu não fizer esse esforço, eles podem me desconsiderar muito facilmente”, diz ela. “A segunda coisa é que em toda a minha vida… eu sempre tentei ouvir, prestar atenção e respeitar as pessoas.” Quase na hora certa, a garçonete traz nosso cheesecake, uma faca e um segundo prato, perguntando se gostaríamos de cortá-lo nós mesmos. “Ah, você faz isso melhor”, diz Lagarde, observando-a cortá-lo ao meio. “Isso é bom. Ótimo, ótimo, ótimo. Muito obrigada.”
Enquanto saboreamos a sobremesa cremosa, ela diz: “Isso é um exemplo. Eu poderia ter dito: Não, não, nós cortamos’. Mas ela se deu ao trabalho. Ela trouxe a faca. Então, ela precisa ser respeitada pelo que ela sabe fazer. O mesmo se aplica às pessoas com quem tenho que trabalhar. Às vezes você precisa apenas dar espaço.”
Fonte: Valor Econômico
