Por Anaïs Fernandes — De São Paulo
16/01/2023 05h00 Atualizado há 4 horas
O sistema estatal brasileiro está “em uma prova de fogo” sob o novo governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT), afirma Sérgio Lazzarini, professor na Ivey Business School da Western University, no Canadá, e pesquisador sênior da Cátedra Chafi Haddad de administração no Insper.
Não que a relação entre governo e estatais já não fosse tensa na gestão anterior, de Jair Bolsonaro (PL), que entrou em embates especialmente com a Petrobras, lembra o professor. Mas o governo do PT já começou com algumas sinalizações “um pouco mais fortes”, diz, citando a revisão da lei das estatais, que avançou na Câmara dos Deputados e está parada no Senado.
Do lado positivo, a opinião pública também está mais sensível a fortes intervenções, segundo Lazzarini. Se o presidente Lula quiser “fazer pressão” para abaixar os preços dos combustíveis, por exemplo, “vai ser um desastre” para a Petrobras, aponta o professor. “Há travas existentes, mas, se o governo em exercício quiser mesmo fazer intervenção, não há lei de estatal que segure”, pondera.
Ele aponta também que o vice-presidente Geraldo Alckmin (PSB), à frente do Ministério da Indústria, deve ser bastante pressionado pelo setor para usar o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), que deve ser chefiado por Aloizio Mercadante (PT), em políticas de crédito subsidiado. “Eles [Alckmin e Mercadante] estão com as mãos um pouco atadas, porque o próprio [ministro da Fazenda, Fernando] Haddad já anunciou plano de controle de despesas”, diz Lazzarini.
“Se o governo quiser mesmo fazer intervenção na Petrobras, não há lei de estatal que segure”
Para o professor, se o governo deseja fortalecer a atuação do BNDES, deve ir atrás de empresas menores, empreendedoras, que estejam avançando em tecnologia e na agenda socioambiental. “É possível que, pragmaticamente, eles sigam com esse caminho”, afirma.
A privatização de grandes estatais – que o governo anterior colocou sob estudo, mas Lula já suspendeu -, não deve sair, o que Lazzarini não considera necessariamente ruim. “Francamente, se eu estivesse no governo e tivesse de escolher entre gastar meu capital político para privatizar uma Petrobras ou um Banco do Brasil versus gastar esse capital político com reformas tributária e administrativa do setor público, com certeza faria essas duas últimas”, afirma. Concessões no modelo de PPP (Parceria Público-Privada) têm mais chances de caminhar, acrescenta. Veja os principais pontos da entrevista.
Herança
A gente teve, principalmente no governo [de Michel] Temer, alguns avanços de governança do sistema estatal, a lei das estatais, ou seja, critérios de apontamento mais técnicos, um pouco mais de independência da gestão. O BNDES começa, com a Maria Silvia Bastos, a priorizar algumas coisas que não ficar dando dinheiro para empresas que podem captar recursos de outra forma, começa a priorizar saneamento. Inicia ali um processo interno do banco de avaliação dos programas. Isso vale também para Petrobras, Caixa, você tem um processo de tentativa de reforço de governança, a Secretaria de Estatais cria um índice para monitorar a aderência a boas práticas. Então, o sistema estatal vinha melhorando. O Bolsonaro não entendia muito bem esse movimento, ele falava que não queria ser “rainha da Inglaterra” e entrou em muito conflito direto com a Petrobras especialmente. Ficou aquela tensão, mas ficou meio por aí.
Governo PT 3.0
Com o novo governo, começamos a ver algumas coisas um pouco mais fortes. Teve a proposta que passou na Câmara, de flexibilizar a lei das estatais, que é ruim. Está parada no Senado, precisamos ver o que vai acontecer. E tem as declarações do PT, de que o ruim é colocar não políticos e pessoas que não sejam do governo nas estatais, o que demonstra falta de entendimento do que é uma estatal. Estatal não é do governo, é do Estado. Ela está sujeita a parâmetros definidos pelo Estado através da lei que norteou sua criação, de padrões de avaliação que vão sendo definidos por autarquias, pelo Congresso. Pode haver uma estatal seguindo uma política pública, desde que clara, mas aí, em tese, você tem de colocar a pessoa mais competente possível para executá-la.
O PT e o sistema político de entorno já vêm com uma visão distorcida e, além disso, há um interesse claro de acomodar aliados. Ainda precisamos ver o que vai acontecer, como o presidente Lula vai conduzir a questão da política de preços da Petrobras, por exemplo, que tipo de mudança vai fazer. Mas, de fato, perdeu bastante aquela agenda de modernização de governança das estatais.
Bolsonaro x Lula
Bolsonaro via as estatais como um instrumento de governo, que é como o PT vê. É a ideia de que tem de usar as estatais para fazer o que o governo quer. Mas não é isso, a estatal tem participação acionária do Estado e deve estar sujeita a regras.
Do lado mais positivo, vemos que a opinião pública está sensível a isso, não pode jogar o preço da gasolina para baixo e começar a reportar que a Petrobras está perdendo dinheiro, por exemplo, porque isso vai pegar muito mal. Então, há limites. De toda forma, estamos em uma prova de fogo do sistema estatal. Seria muito bom se a gente tivesse continuado a trajetória que tinha antes, mas infelizmente existe uma falta de entendimento do que é uma estatal e isso é muito preocupante.
Caminhos para o BNDES
De 2012, 2013 para cá, o BNDES é praticamente um terço do que ele era em termos de desembolsos. Ele reduziu bastante seu tamanho e não foi um problema, porque os estudos indicavam que o BNDES estava emprestando para quem não precisava, grandes empresas que podiam se capitalizar ou se financiar de outra forma. Então, um BNDES menor pode ser até bom. Agora estamos nessa discussão: vai aumentar o BNDES, os desembolsos? Aí que vamos começar a ver algumas tensões.
O BNDES está agora no guarda-chuva do ministério da Indústria, que está com o Alckmin. Devem estar todos os industriais rondando lá, e o Alckmin já declarou que quer dar subsídios. Vi declarações do Mercadante de que não há espaço fiscal para aumentar o tamanho do BNDES e o banco teria de ir a mercado. Captar recursos no mercado é captar a taxas de mercado; emprestar com subsídio é emprestar a uma taxa menor. Eu não sei como vai fechar essa equação. Na prática, se Mercadante ou Alckmin quiserem aumentar os desembolsos, eles estão com as mãos um pouco atadas, porque o próprio [ministro da Fazenda, Fernando] Haddad já anunciou plano de controle de despesas.
Outro ponto é que o BNDES tem hoje, na minha opinião, o que eu considero um dos melhores, ou talvez o melhor, sistema de avaliação e monitoramento do sistema estatal. Então, a gente sabe, por exemplo, se empréstimos para grandes e pequenas empresas estão ou não tendo impacto. E, em geral, a conclusão é que, se for emprestar para gerar impacto, é melhor que seja para empresas mais restritas em crédito, que são, em geral, menores. Focar esse segmento demanda menos recursos e é consistente com um BNDES menor. Se eu estivesse na gestão do BNDES, seguiria essa orientação, de ir atrás de empresas menores, empreendedoras, que estão fazendo tecnologia, avançando em uma agenda socioambiental. Isso é basicamente a agenda que o BNDES vem seguindo, que começa com a Maria Silvia e o [Gustavo] Montezano [presidente do BNDES no governo Bolsonaro] seguiu. É possível que, pragmaticamente, eles [novo governo] sigam com esse caminho, porque aumentar muito o BNDES vai dar dor de cabeça.
Política de preços da PetrobrasSe Lula quiser fazer pressão para realmente abaixarem os preços, vai ser um desastre, porque a Petrobras vai começar a reportar menos lucro, vai sair na opinião pública. Aguardo ansiosamente os anúncios, mas acho que os próprios gestores e o conselho estão preocupados. Se eu fosse do conselho da Petrobras, mesmo se for indicado politicamente, ações agressivas de redução de preços para fins políticos podem gerar responsabilização. O Brasil já tem um arcabouço institucional de mercado de capitais mais sólido. Eu não toparia estar no conselho de uma empresa que está sofrendo forte intervenção política com todos os riscos que isso pode acarretar, de processos. Há travas existentes, mas, se o governo em exercício quiser mesmo fazer intervenção, não há lei de estatal que segure.
Privatizações e concessões
Privatização de grandes estatais, Petrobras, Caixa, Banco do Brasil, esquece – tem o Porto de Santos que o [governador de São Paulo] Tarcísio [de Freitas] está tentando convencer [o governo federal a realizar], vamos ver. E, francamente, se eu estivesse no governo e tivesse de escolher entre gastar meu capital político para privatizar uma Petrobras ou um Banco do Brasil versus gastar esse capital político com reformas tributária e administrativa do setor público, com certeza faria essas duas últimas. Encampar um processo de privatização demora, tem de ter estudo, discussão, não é coisa para um mandato – veja a Eletrobras, que começou no Temer e foi aprovada no fim do Bolsonaro. Além disso, você tem outro mecanismo para lidar com as estatais, que é a melhoria de governança.
Agora, se você definir “privatização” como concessões, participação privada em projetos, aí sim, Simone Tebet [ministra do Planejamento] é favorável a essas iniciativas e o próprio Haddad foi um dos criadores da lei de PPPs, é um entusiasta do modelo.
Fonte: Valor Econômico

