Embora a volatilidade tenha sido elevada nos mercados globais de juros nos últimos meses, diante da disparada dos rendimentos dos Treasuries, o câmbio doméstico tem surpreendido pela resiliência, em um contexto que compreende uma entrada expressiva de dólares desde o começo do ano. Entre janeiro e outubro, o fluxo cambial registrou entrada líquida de US$ 24,06 bilhões, o maior nível para o período desde 2011.
O forte desempenho do câmbio contratado é derivado dos números expressivos da conta comercial. Entre janeiro e outubro, o fluxo comercial foi positivo em US$ 46,95 bilhões, o melhor resultado desde 2007 nesse período, e com uma dinâmica que mais que compensou a saída de US$ 22,29 bilhões do fluxo financeiro.
E é nesse contexto que o câmbio tem se mostrado bastante forte, mesmo com o estresse recente no mercado de Treasuries. No começo de outubro, o dólar subiu a R$ 5,22, mas, no começo desta semana, já operava abaixo de R$ 4,90, em um sinal de resiliência do real destacado, inclusive, pelo presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, ao participar de evento do Bradesco na semana passada.
“No setor externo, a gente tem visto um desempenho impressionante da agricultura. Por que o real está tão forte? Temos um fluxo bastante grande e com juros altos. Hoje, alguém que queira ficar posicionado no sentido contrário do real tem que pagar o carregamento [diferencial de juros] e ainda tem um fluxo grande de entrada. O real tem se destacado como uma moeda relativamente estável no mundo emergente e a volatilidade da moeda tem caído comparada com os pares”, disse o dirigente.
É muito mais algo estrutural do que conjuntural e, por isso, a conta comercial pode continuar se beneficiando”
O protagonismo desse movimento é exercido pelas exportações brasileiras, que devem continuar em nível forte, avalia a economista Julia Passabom, do Itaú Unibanco, para quem esse volume maior de vendas para o exterior mostra que o bom desempenho da balança comercial não é pontual. “É muito mais algo estrutural do que conjuntural e, por isso, a conta comercial pode continuar se beneficiando, mas o tamanho desse fluxo deve ser moderado pela importação, que tende a se recuperar junto da atividade econômica.”
A expectativa de Passabom, inclusive, é a de que em 2024 os números do câmbio contratado comercial se mantenham bons. “Claro que há cautela por conta dos efeitos do El Niño, mas, no quantitativo, esperamos um volume semelhante ao observado neste ano, com aceleração nas exportações de petróleo e com a safra de soja não muito diferente dos níveis atuais”, afirma a economista.
Vale ressaltar, porém, que os exportadores ainda mantêm uma parcela dos recursos no exterior, o que deixa aberta a “boca de jacaré” obtida pela diferença entre o câmbio embarcado e o contratado ao redor de US$ 60 bilhões na média móvel de 12 meses. Quanto menor a diferença maior o viés para uma apreciação adicional do real.
“Um dos possíveis motivos para o exportador ter começado a deixar esse dinheiro lá fora durante a pandemia veio da preocupação com os custos dos transportes”, diz Passabom. “Isso pode ter feito com que o exportador conhecesse novos instrumentos financeiros e se adaptado a uma nova realidade, optando por manter esse capital lá fora, não só para pagar frete, mas também para ter um caixa no exterior e pagar outras despesas.”
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O economista-chefe da Parcitas Investimentos, Vitor Martello, dá destaque ao fluxo comercial, mas enfatiza que o câmbio contratado poderia ter um desempenho melhor caso a saída da conta de capital não fosse tão grande. Ao abrir os números do Investimento Direto no País (IDP), ele nota que “nos investimentos realizados no ‘chão de fábrica’ [participação em capital, tirando lucros reinvestidos], percebemos um número bem baixo, comparável ao pré-pandemia e ao observado em 2009”. “Está horrível, ainda mais se pensarmos que está abaixo do nível visto durante a pandemia, quando não se sabia o que aconteceria com o mundo.”
Martello aponta que, com o forte crescimento do investimento direto entre 2003 e 2011, o Brasil se comprometeu a entregar resultado, mas agora os credores não estariam dispostos a renovar investimentos. “Estamos entregando, por exemplo, exportação de petróleo com custo marginal baixo, mas não aparecem credores para dar mais dólares em forma de novos investimentos, seja porque a liquidez global está mais escassa, porque não temos grau de investimento ou porque são empresas majoritariamente da ‘economia velha’, sem o ‘sex appeal’ do ESG”, nota.
Assim, o cenário atual das grandes companhias brasileiras que poderiam trazer capital de investimento para o país é de acerto das dívidas feitas no passado, aponta Martello. “Isso só está acontecendo porque o investidor estrangeiro está realizando [lucros]. Poderia estar emprestando mais, mas não é o que vemos”, diz. “Estamos no terceiro ano de algo que pode durar de quatro a seis anos. Um potencial gatilho para virar esse jogo é a agenda de ESG e de ‘nearshoring’ [processo de aproximar as cadeias de produção dos países das matrizes], mas os dados ainda não sugerem que essa virada começou.”
Embora o diferencial entre o câmbio embarcado e o contratado permaneça relevante, o comportamento do fluxo comercial tem se mostrado decisivo para o desempenho do câmbio. “A ‘boca de jacaré’ existe e é grande, mas a surpresa com a balança física é muito maior. Embora o exportador continue deixando recursos lá fora, a balança física é tão forte que produz um saldo contratado muito significativo”, enfatiza a economista-chefe da Armor Capital, Andrea Damico.
A gestora revisou, recentemente, a projeção para o câmbio no fim do ano de R$ 4,90 para R$ 5,00 por dólar. “Geralmente há um fluxo pior ao longo de dezembro, com saída na conta financeira. A conta comercial deve ajudar mais que nos outros anos, mas não deve neutralizar essa saída forte de dezembro. Apesar disso, mantemos uma visão construtiva para a moeda à frente.”
Damico defende que, após a sazonalidade negativa do fim do ano, é possível que vetores de apreciação do câmbio predominem à frente. “A questão do prêmio de risco ainda pode ajudar nesse aspecto, com a aprovação da reforma tributária, do projeto sobre a subvenção do ICMS, da possível manutenção da meta de déficit zero em 2024 neste ano… Vemos isso como uma melhora dos fatores de risco, o que pode ajudar o real.”
Já a Kinea Investimentos não tem visto grandes assimetrias no momento em relação ao câmbio doméstico, revela a economista Daniela Lima. “Por mais que o exportador deixe uma parte desse valor lá fora, estamos vendo uma entrada razoável de recursos. No entanto, a dinâmica do câmbio é mais do que simplesmente um reflexo desse câmbio contratado”, ressalta Lima, ao lembrar do volume expressivo do mercado de derivativos.
Dados da B3 apontam que, na segunda-feira, a posição comprada em dólar (aposta na alta da moeda) dos investidores estrangeiros via derivativos (dólar futuro, cupom cambial, minidólar e swap cambial) totalizava US$ 57,05 bilhões, enquanto o investidor institucional local estava vendido em dólar em US$ 10,47 bilhões. Após um ano que beneficiou moedas com diferencial de juros elevado, a Kinea não tem posições em real. “O câmbio depende não só da balança comercial, mas também de como o BC vai seguir na flexibilização monetária e, principalmente, de como o Fed vai atuar à frente”, diz Lima.
Fonte: Valor Econômico

