Por Anaïs Fernandes — De São Paulo
10/05/2023 05h00 Atualizado há 6 horas
O endividamento das famílias brasileiras, que bateu recorde em 2022, dá sinais de arrefecimento. Segundo economistas, há explicações mais benignas para o movimento – a desaceleração da inflação e a resiliência do emprego, por exemplo – e outras nem tanto, como o esgotamento da capacidade dos agentes de oferecer e tomar crédito e a perspectiva de desaceleração da economia.
A relação entre o valor das dívidas das famílias com o Sistema Financeiro Nacional e a renda acumulada por elas nos últimos 12 meses foi de 48,6% em fevereiro deste ano, último dado do Banco Central. Em julho de 2022, esse valor chegou a 50%, mas vem recuando gradualmente desde então.
Já o comprometimento de renda das famílias com dívidas está, desde a virada de 2022 para 2023, estável ao redor de 27,4%.
“Vimos um pico do endividamento das famílias no terceiro trimestre do ano passado, seguindo o aumento da taxa de juros. É normal, com uma política monetária restritiva”, diz Rafaela Vitória, economista-chefe do Banco Inter.
O ciclo econômico atual, no entanto, tem sido “um pouco diferente”, observa, porque, apesar dos juros elevados, o emprego demonstra força. Para Vitória, boa parte da melhora no endividamento das famílias está relacionada a isso. “Não só ao emprego, como à renda. A massa salarial teve crescimento acelerado no fim do ano passado”, afirma.
Além disso, diz, a inflação vem desacelerando, principalmente a dos alimentos, que tem um peso proporcional grande no orçamento das famílias, sobretudo as mais pobres. Em julho do ano passado, a alimentação no domicílio acumulava alta de 17,5% em 12 meses. Em março deste ano, subia 7,04%.
Para Sergio Vale, economista-chefe da MB Associados, o início da queda do endividamento das famílias é mais prenúncio de uma economia que desacelera.
“A taxa de desemprego melhorou, mas a tendência é de piora ao longo do ano. Vemos sinalização clara e concreta de piora do cenário econômico à frente. Isso faz com que a população tenha cautela, reveja seu endividamento e o crédito tomado ou que queira tomar”, afirma. “É um consumidor que vai pagar as dívidas que fez em três anos de pandemia e se voltar para comprar o básico.”
Um problema, segundo Vale, é que, para saldar dívidas antigas e equilibrar o orçamento, esse consumidor pode estar recorrendo a outras linhas de crédito, mais caras, já que as concessões seguem em expansão. Em 12 meses até março, as concessões totais para pessoas físicas com recursos livres cresceram 18%, mas o rotativo total – que inclui cheque especial, cartão de crédito rotativo e cartão de crédito compras à vista – avançou ainda mais, quase 24%.
“O consumidor está tentando pagar dívida e, para isso, está contraindo dívida mais cara, especialmente no cartão de crédito, que é o que ele tem à mão”, diz Vale.
Além da desaceleração da inflação e da sustentação do emprego, a ampliação de auxílios governamentais também ajudou as famílias a reduzirem suas dívidas, observa Nicolas Tingas, economista-chefe da Associação Nacional das Instituições de Crédito, Financiamento e Investimento (Acrefi).
Para ele, no entanto, o fator que pesa mais é um “esgotamento” da capacidade de endividamento, tanto do lado de quem oferta crédito, por causa do risco de inadimplência, quanto pelo lado do tomador, que não quer se comprometer ainda mais.
“O nível de endividamento e comprometimento de renda das famílias bateu recordes. Vimos um esmagamento muito grande do fluxo de caixa das famílias. Quando você atinge uma condição de endividamento tão alta, a capacidade de obter ou renovar crédito diminui, porque o seu risco de inadimplência aumenta”, diz Tingas.
Os dados do BC ainda não mostram estabilização da inadimplência das famílias, o que seria o esperado para uma política monetária que já atingiu seu pico, segundo Vitória. Em março, a inadimplência das pessoas físicas nos créditos com recursos livres atingiu 6,2%, patamar semelhante ao observado na recessão de 2015-2016.
Para Vitória, isso ocorre exatamente porque o “mix” de crédito das famílias piorou. “Linhas de crédito de boa qualidade, na visão dos bancos, com custo menor, como consignado e imobiliário, têm regras específicas de comprometimento de renda. Conforme os juros sobem muito, as famílias ficam limitadas, não conseguem tomar mais esse crédito e são empurradas para linhas mais caras.”
Olhando à frente, o mercado de trabalho ainda deve oferecer alguma sustentação ao orçamento doméstico, na avaliação de Vitória. Além disso, no segundo semestre, o país deve entrar na “segunda fase” da política monetária, com corte dos juros, afirma. “Podemos ver uma continuidade dessa queda no endividamento e uma melhora significativa no nível de inadimplência”, diz Vitória, ponderando que os movimentos serão graduais e vão depender de “até onde vai a Selic”.
Voltar ao pico de endividamento observado no ano passado exigiria uma liquidez das famílias “enorme, a ponto de elas pagarem todas as dívidas e começarem a se endividar novamente”, afirma Tingas.
Em um cenário mais favorável, com uma regra fiscal “um pouco mais arredondada” depois de passar pelo Congresso, diz, seria possível abrir espaço para queda dos juros e algum alívio econômico a partir do segundo semestre. “Esse endividamento tenderia a cair mais, porque, com mais renda, as famílias vão começar a melhorar a gestão do seu orçamento”, afirma.
Fonte: Valor Econômico

