São os chamados emissores em transição de governança, que se comprometem, ao emitir títulos, a adotar medidas para ampliar sua transparência, como, por exemplo, apresentar balanços trimestrais auditados. Nas gestoras que originam essas operações, há previsões de mais que dobrar o volume daqui até o fim do ano, em compasso com o apetite dos fundos para absorver essas ofertas, na maior parte via notas comerciais, debêntures, certificados de recebíveis do agronegócio (CRAs) e imobiliários (CRIs).
“Em nosso ‘pipeline’ [operações em preparação] há quase R$ 2 bilhões para levar a mercado até o fim do ano”, diz Rodrigo Nery, sócio da Aeté Capital, que origina operações com esse perfil. São 27 empresas, com emissões médias de R$ 50 milhões a R$ 60 milhões. No primeiro semestre, a butique financeira fechou R$ 400 milhões em captações. “Veremos, nos próximos cinco anos, o número de emissões quintuplicar”, prevê Nery. Já a Capitânia Investimentos planeja dobrar nos próximos 12 meses o volume em carteira de debêntures de emissores em transição de R$ 500 milhões hoje para R$ 1 bilhão, segundo Arturo Profili, sócio da asset, que tem R$ 25 bilhões sob gestão.
De acordo com ele, é uma transação que gera benefícios aos dois lados. O tomador substitui seu funding bancário pelo mercado de capitais, com taxa menor e prazo maior, e amplia seus financiadores para assets, “multi-family offices” e fundos de pensão. Para o alocador de capital, há a melhora do ativo, já que o emissor se compromete a melhorar seu perfil. A carteira da gestora carrega de dez a 15 emissores diferentes, com R$ 30 milhões a R$ 60 milhões por papel. Entre eles, por exemplo, emissões de Athon Energia, VRental Locação e a rede de academias BlueFit.
A Jive Investments – maior gestora de ativos inadimplentes do Brasil, que tem dois fundos (BossaNova e Soul Previdência) focados em crédito privado e estruturado convencional – terá nos próximos 90 dias R$ 250 milhões em emissões, sendo R$ 135 milhões no segmento de transição de governança, após um primeiro semestre sem operações nessa faixa. O BossaNova tem patrimônio líquido (PL) de R$ 850 milhões e oito emissores em transição de um total de 20, o que corresponde a R$ 265 milhões. No Soul Previdência, cujo PL é de R$ 70 milhões, são quatro que somam R$ 15 milhões. Na asset, entre os casos de transição já concluída está o da Orizon, cuja primeira captação foi nessa categoria e que fez um IPO (oferta inicial de ações, na sigla em inglês) em 2021.
“Essas são as empresas que mais me interessam. A taxa é maior porque embutem risco inicial mais alto. Ao mesmo tempo, direciono a governança e, no futuro, elas saem da faixa mais cara”, comenta o sócio Samer Serhan. O foco da Jive são as notas comerciais, que desde 2021 podem ser emitidas por empresas limitadas. Os papéis podem ser alvo de oferta pública e se assemelham às debêntures, mais usadas e que só podem ser emitidas por sociedades anônimas (S.A).
De janeiro a junho de 2023, por exemplo, conforme dados da Anbima, foram emitidos R$ 11 bilhões em notas comerciais, sendo 26% de empresas limitadas, ou R$ 2,8 bilhões, com R$ 1 bilhão subscrito por investidores institucionais. Em debêntures, no mesmo período, R$ 78,1 bilhões – 69,9% das operações foram de empresas de capital fechado, segundo dados compilados pela Ártica Assessoria Financeira. Entre janeiro e junho de 2022, essa proporção havia sido de 61,9%. Já em volume de emissões, 47,3% foram de empresas de capital fechado, um leve recuo frente aos 49,4% de igual período do ano passado.
Geralmente, essas operações estabelecem que a empresa tem de 12 a 24 meses para melhorar sua governança, sob pena de multa e aumento de juros, por exemplo, em caso de descumprimento. As exigências abrangem a conversão de limitada para S.A. de capital fechado ou aberto, troca para auditoria de médio ou grande porte e obrigação de relatórios gerenciais periódicos, além dos balanços auditados. A adequação pode custar entre R$ 100 mil e R$ 1 milhão ao ano, dependendo do porte e da complexidade do negócio.
O custo das notas comerciais é bem mais baixo, entre R$ 10 mil e R$ 50 mil, enquanto o de uma debênture pode chegar a R$ 250 mil. Mas, como a política de investimento da maioria dos fundos limita a parcela alocada em notas comerciais por seu perfil de risco, ao elevar a governança e poder emitir debêntures, as empresas também passam a ter acesso mais investidores. “Ano que vem teremos muito mais pequenas e médias no mercado de capitais”, diz Serhan. Ele pondera, no entanto, que a travessia será penosa. “Ainda teremos juros em patamares altos, mesmo com os cortes, ao menos até o fim de 2024. É um cenário de risco.”
Alexandre Muller, gestor de crédito privado da JGP, também pondera que o custo do capital ainda está muito alto, mesmo com o início do afrouxamento monetário, o que está levando muitas empresas a adiar os planos. O ano começou com spreads médios cobrados nas emissões acima de R$ 300 milhões de companhias de capital aberto com rating de 1,8%, segundo o Idex-CDI, índice da JGP que acompanha o mercado de crédito privado. No pico da crise pós-escândalo da Americanas e recuperação judicial da Light chegaram a 2,9% e, agora, cederam a 2,6%, com prazo médio de 2,6 anos.
O índice separa as emissões, menores, a partir de R$ 100 milhões, de empresas sem rating ou com nota abaixo de AA: pelo levantamento, os spreads ainda estão no pico, a 4,8% ao ano acima do CDI. O prazo é ligeiramente menor, 2,3 anos. Ou seja, nenhum dos dois está normalizado. “Mas teremos um segundo semestre superior ao primeiro”, diz Muller. Ele confirma o crescimento no acesso dos emissores em transição: “É o caminho natural de uma empresa que cresce. Começa com bancos menores, vai para maiores e chega ao mercado de capitais.” Agora, afirma, essa trajetória tem o reforço da estratégia dos fundos de se aproximarem da economia real. “É o que chamamos de ‘financial deepening’, o aprofundamento de produtos financeiros que abre espaço para operações menores, de R$ 20 milhões ou R$ 50 milhões, em que os grandes bancos já não têm interesse. Esse processo de desintermediação financeira reduz os custos.”
O gestor destaca as emissões de debêntures e CRAs por empresas em transição. “A velocidade com que o agro está chegando chama a atenção. Era um setor com representatividade muito baixa diante do ‘gap’ [lacuna] histórico de formalização, como falta de contabilidade, de auditoria e grau de qualificação do capital humano, mas estamos vendo isso diminuir.”
Octaciano Neto, diretor de agronegócios do Grupo Suno, diz que o país tem 5 mil produtores rurais aptos a ir ao mercado, mas no ano passado só 308 emitiram CRAs. “A régua de governança é baixa, o que atrasa a entrada do setor, mas percebo uma impressionante quantidade querendo mudar”, avalia. Segundo ele, o Plano Safra é insuficiente e o BNDES, que chegou a ter 20% do crédito no setor, tem menos de 10%. Nos bancos, diz, o prazo é curto: na carteira de Bradesco e Itaú, afirma, só 5% têm mais de três anos. “Nas últimas semanas, o telefone começou a tocar mais. São empresários que a gente procurou no início do ano e que não queriam emitir com o CDI a 13,75%.”
Segundo Eduardo Correa, novo vice-presidente de soluções de capital da Ártica, há uma demanda represada nesse estágio de governança, com empresas se preparando para a queda dos juros. Embora não revele números, ele afirma que as consultas estão aumentando. “A gente sabe que a primeira emissão não vai ser a mais barata, mas, à medida que vai ganhando a confiança dos investidores, prazo, taxa e garantias tendem a melhorar.”
Renato Otranto, chefe de estruturação do banco Daycoval, concorda: “O emissor estreante busca o sucesso da operação, e não a emissão perfeita”. Segundo ele, mais gestoras e bancos estão buscando comprar esses papéis para diversificar ativos, além da vantagem da taxa mais alta.
Pela legislação, toda emissão precisa de um banco ou uma corretora na coordenação. Há cerca de dois anos o Daycoval vem se estruturando ampliar sua participação. No primeiro semestre, o banco fez duas emissões divididas com outros bancos no total de R$ 255 milhões e agora se prepara para levar a mercado sozinho R$ 500 milhões, sendo quase a totalidade no nicho de emissores em transição. Otranto conta que as operações estão retornando, ainda que o cenário não esteja normalizado em taxas e prazos. “O dinheiro mais caro é o que você que não tem”, afirma.
A destinação dos recursos, no entanto, mudou, afirma Nery, da Aeté. Ele conta que, até 2022, 70% iam para investimento em capital fixo, tecnologia e inovação, com garantias quirografárias ou reais. “A partir de janeiro, passou a 70% para renegociação de dívida com garantia real e outros tipos. As quirografárias já não encontravam mais demanda. Foi drástico”, avalia. Nas operações no pipeline, comenta, 65% são para reperfilamento e melhora da estrutura de capital e 35%, para investimentos.
“Passamos por um momento em que o sistema parou para acomodação. O mercado está menor, mas as operações estão voltando”, diz Laurence Mello, gestor de crédito da AZ Quest. Ele frisa que, apesar de o crescimento ser bem-vindo, a gestora aumentou as exigências para compra de papéis. “Subimos muito a régua por experiências ruins nos últimos dois anos. Há muitas empresas que não querem de fato acessar o mercado de capitais. Vão por conveniência, em busca da melhor taxa apenas, e muitas vezes frustram o investidor. Prometem e não entregam ou entregam de maneira falha. Tem espaço para expansão, mas o outro lado precisa estar disposto a se adequar.”
Fonte: Valor Econômico