Por Anaïs Fernandes — De São Paulo
30/09/2022 05h01 Atualizado há 4 horas
Tanto o mercado de trabalho quanto a atividade econômica no Brasil têm surpreendido positivamente neste ano, mas a recuperação do emprego tem sido mais acentuada do que seria consistente com a evolução do próprio PIB do país, indicam economistas. Para além de alguma mudança estrutural que torne parte desse ganho permanente, a constatação sugere que essa tendência muito positiva para o emprego pode ter fôlego mais curto.
Na teoria econômica, existe uma relação inversa entre PIB e taxa de desemprego (a chamada Lei de Okun). Um estudo do Itaú Unibanco mostra que, até o terceiro trimestre de 2021, a variação do desemprego era consistente com o desempenho da atividade econômica, mas, desde o quarto trimestre de 2021, esses dados parecem ter se descolado. “A taxa de desemprego acabou caindo muito mais do que o crescimento do PIB sugeriria pela regra”, diz Natalia Cotarelli, economista do Itaú e uma das autoras do estudo, junto com Matheus Fuck e Claudia Bruschi.
A taxa de desemprego dessazonalizada recuou de 11,5% no trimestre encerrado em janeiro de 2022 para 8,8% nos três meses até julho, apesar da forte recuperação da taxa de participação no mercado de trabalho, que subiu de 61,7% para 63,5% no período. observa o Itaú. Ou seja, o crescimento da população ocupada mais do que compensou o retorno de parte das pessoas à busca por trabalho.
Para o Itaú, o desempenho mais forte do mercado de trabalho do que a atividade sugeriria reflete um efeito de composição setorial do crescimento – com a reabertura do setor de serviços, mais intensivo em mão de obra, no pós-pandemia – e algum impacto da reforma trabalhista de 2017.
No primeiro e no segundo trimestre deste ano, o PIB expandiu 1,1% e 1,2%, pela ordem, na comparação trimestral com ajuste sazonal, sendo que o setor de serviços foi responsável por mais da metade do crescimento (0,7 e 0,8 ponto percentual, respectivamente), observa o Itaú. “A recuperação da população ocupada desses setores muito intensivos em mão de obra foi mais forte no fim de 2021 e começo de 2022”, diz Cotarelli.
Nesse cenário, a produtividade média da economia – que deu um salto na pandemia por causa da resiliência de setores intensivos em capital, que são mais produtivos – passou a desacelerar e parece ter voltado ao padrão anterior ao da crise sanitária, nota o banco. Isso, segundo o Itaú, indica que o mercado de trabalho deve voltar a crescer de forma mais alinhada com a evolução do PIB adiante.
“A perspectiva agora é de um mercado de trabalho basicamente de lado no segundo semestre”, diz Cotarelli. O Itaú espera que a taxa de desemprego passe de 8,8% no trimestre encerrado em julho para 9,1% em dezembro e suba para 10,1% no fim de 2023.
O impacto da reforma trabalhista na economia é mais incerto, reconhece o Itaú, mas alguns dados e estudos acadêmicos têm apontado que as mudanças podem ter gerado efeitos positivos no mercado, por exemplo, ao reduzir o ajuizamento de ações trabalhistas e, portanto, os custos. Tudo o mais constante, essa queda pode aumentar a demanda por trabalho sem elevar o custo da mão de obra, o que tende a reduzir a taxa de desemprego de equilíbrio – aquela a partir da qual há pressão sobre a inflação.
Após a aprovação da reforma em 2017, a proporção do emprego formal em relação ao total parece ter interrompido a tendência de queda que ocorria desde 2015, observa o Itaú. “Em 2018, ela ficou parada, o que poderia indicar algum efeito da reforma. Veio a pandemia e ficou tudo muito distorcido, mas agora parece que essa proporção tem estabilizado no patamar próximo de 2018, sugerindo o impacto da reforma para a formalização do trabalho”, diz Cotarelli.
Para Bráulio Borges, economista sênior da LCA Consultores e pesquisador associado do Instituto Brasileiro de Economia (FGV Ibre), o ponto realmente “fora da curva” na relação entre PIB e taxa de desemprego no Brasil foi o segundo trimestre de 2022.
Em um exercício, Borges reponderou a participação dos setores do PIB não pelo seu valor adicionado ao total da economia, como faz o IBGE, mas pelo número de pessoas ocupadas nesses segmentos. No primeiro semestre de 2022, esse “PIB sob a ótica da ocupação” subiu 5%, ante momento equivalente de 2021, quase o dobro do avanço do PIB oficial no período, de 2,7%. Desde 1995, nunca em um biênio o PIB foi tão “pró-emprego” como em 2021-2022, observa Borges.
Essa diferença entre o PIB reponderado pela ocupação e o oficial ocorre, segundo o economista, porque os setores que mais estão crescendo neste ano são intensivos em mão de obra, como serviços e construção civil, mas, em geral, de baixa produtividade – ou seja, eles geram muitas vagas de emprego, mas adicionam relativamente menos valor à economia. “Tenho mais emprego do que PIB”, resume Borges.
Submetendo à Lei de Okun esse PIB reponderado – que Borges ainda divide pela população em idade ativa (14 anos ou mais), para agregar uma noção de “oferta” de mão de obra -, o economista conseguiu manter a aderência da relação entre PIB e taxa de desemprego até mesmo no quarto trimestre de 2021 e no primeiro de 2022. “Mas não dá para entender o comportamento do mercado de trabalho no segundo trimestre pela mera composição setorial”, diz Borges.
No período, foram criadas 4,4 milhões de novas ocupações, ou 18 milhões em termos anualizados, o que seria compatível com um PIB variando em torno de 5%, segundo o economista. No primeiro semestre, no entanto, o PIB cresceu 2,5%, ante igual período de 2021, e a mediana da pesquisa Focus do Banco Central com analistas indica crescimento de 2,7% para o ano.
Também para Borges é possível que esteja ocorrendo uma mudança mais estrutural na relação entre oscilações da atividade e a taxa de desemprego por causa da maior flexibilidade introduzida no mercado após as reformas trabalhistas de 2017. Para ele, no entanto, os indícios nesse sentido ainda não são tão robustos, de modo que Borges aposta mais em um efeito de antecipação de contratações.
“No fim do segundo trimestre já tínhamos o governo sinalizando a aprovação da ‘PEC kamikaze’ e que faria outros estímulos perto das eleições. Isso pode ter deflagrado uma anteciapação de contratação em setores da economia diante da expectativa de que a atividade ainda estaria forte no terceiro trimestre”, afirma.
Essa é uma hipótese que será “facilmente verificável” ou não conforme os dados forem sendo publicados, afirma Borges. A “regra de bolso” dos economistas, segundo ele, diz que, para cada um ponto percentual que o PIB cresce acima da população em idade ativa (PIA), o desemprego no Brasil recua 0,5 ponto. Por questões demográficas, a PIA vem crescendo 0,8% ao ano, enquanto o Focus indica 0,5% de crescimento para o PIB em 2023. “Tem um indício de que o desemprego pode crescer no ano que vem”, afirma Borges.
Nas suas projeções, o PIB sob a ótica da ocupação ainda deve avançar 4,5% em 2022, para um crescimento do PIB geral de 2,8% estimado pela LCA (sem considerar impostos sobre produtos líquidos de subsídios). Em 2023, porém, essa diferença seria zerada, com ambos subindo 0,4%.
Fonte: Valor Econômico
