Os Estados Unidos acusam o Brasil e uma série de outros países de imporem numerosas barreiras contra produtos americanos, em relatório de 397 páginas que o Escritório do Representante Comercial dos Estados Unidos (USTR) publicou nesta segunda, às vésperas do choque tarifário prometido pelo presidente Donald Trump para esta quarta-feira, 2, no que ele vem chamando de “Dia da Libertação”.
Em Washington, pelo que assessores de Trump parecem ter entendido, o chefe quer realmente tarifas elevadas. E a alta tarifária poderia chegar a até 20%, atingindo praticamente todos os parceiros comerciais dos EUA. Mas eles admitem não saber sobre o plano final que Trump anunciará. Negociadores que estiveram em Washington não ficarão surpresos se a subida de alíquota chegar a 25%.
Nesse “Liberation Day”, o regime de “tarifas recíprocas” poderia resultar em US$ 600 bilhões anuais a mais de receita para os EUA, ou US$ 6 trilhões em uma década, pelos cálculos de Peter Navarro, assessor linha-dura que tem o ouvido de Trump. A isso, se somam US$ 100 bilhões anuais vindos especificamente da tarifa de 25% sobre carros estrangeiros.
Embora o Brasil argumente que tem déficit no comércio com os EUA, as quase seis páginas de queixas contra práticas brasileiras listadas pelo USTR pavimentam o terreno para a aplicação de alíquotas mais altas contra produtos brasileiros pela “reciprocidade”.
O governo Trump aponta no documento que o Brasil “impõe tarifas relativamente altas sobre as importações em uma ampla gama de setores, incluindo automóveis, peças automotivas, tecnologia da informação e eletrônicos, produtos químicos, plásticos, maquinário industrial, aço e têxteis e vestuário”.
Reclama que, além disso, as tarifas consolidadas do Brasil são frequentemente muito mais altas do que as tarifas aplicadas, e os exportadores dos EUA enfrentam “uma incerteza significativa no mercado brasileiro porque o governo modifica frequentemente as tarifas dentro das flexibilidades do Mercosul”. Conforme o USRT, “a falta de previsibilidade com relação às alíquotas tarifárias torna difícil para os exportadores dos EUA preverem os custos de fazer negócios no Brasil”.
O relatório “Estimativa Nacional de Comércio (NTE) de 2025” foi enviado a Trump e ao Congresso. “Nenhum presidente americano na história moderna reconheceu as barreiras comerciais externas abrangentes e prejudiciais que os exportadores americanos enfrentam mais do que o presidente Trump”, disse Jamieson Greer, o chefe do USTR em comunicado. “Sob sua liderança, esta administração está trabalhando diligentemente para lidar com essas práticas injustas e não recíprocas, ajudando a restaurar a justiça e a colocar as empresas e os trabalhadores americanos esforçados em primeiro lugar no mercado global.”
O USTR nota que barreiras comerciais escapam a definições fixas, mas podem ser amplamente definidas como leis, regulamentações, políticas ou práticas governamentais – incluindo políticas e práticas não mercantis – que distorcem ou prejudicam a concorrência leal. Isso inclui medidas que protegem bens e serviços nacionais da concorrência estrangeira, estimulam artificialmente as exportações de bens e serviços nacionais específicos ou deixam de fornecer proteção adequada e eficaz dos direitos de propriedade intelectual.
Países podem retomar a negociação sobre etanol após a taxação do dia 2
Nas páginas dedicadas ao Brasil, os EUA apontam como primeira barreira justamente ao etanol. Alegam que entre 2011 e 2017 o comércio bilateral do produto era praticamente livre de alíquotas de importação. Mas depois o Brasil passou a taxar, primeiro em 20%, depois estabeleceu cota, que reduziu o “robusto” comércio, e em 2018 estabeleceu a tarifa em 18%.
“Os Estados Unidos continuam a se engajar com o Brasil para reduzir sua tarifa de etanol e oferecer tratamento recíproco para o comércio de etanol entre os Estados Unidos e o Brasil”, diz o documento.
Há outras queixas. Uma delas, relacionada ao Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) ad valorem de 16,25% sobre a cachaça, ao mesmo tempo em que impõe um IPI ad valorem de 19,5% sobre outras bebidas alcoólicas, inclusive importações dos Estados Unidos.
O texto reclama que nos serviços audiovisuais o Brasil impõe vários impostos sobre produtos estrangeiros. Também faz queixa de que as remessas para produtores estrangeiros de obras audiovisuais estão sujeitas a um imposto de renda retido na fonte de 25%.
O Brasil também restringe a entrada de certos tipos de produtos remanufaturados, como equipamentos de terraplenagem, peças automotivas e equipamentos médicos. Com algumas exceções, o Brasil geralmente proíbe a importação de bens de consumo usados.
Há ainda queixa sobre licenças de importação automáticas e não automáticas, exigências inconsistentes de documentação para a importação de determinados tipos de mercadorias, como equipamentos pesados, regulamentações sobre biocombustíveis, barreiras sanitárias e fitossanitárias e empecilhos nas compras governamentais de empresas estrangeiras. O texto também questiona o respeito brasileiro à propriedade intelectual e problemas relacionados ao combate à pirataria e barreiras à aquisição de serviços e ao comércio digital.
Tentativa de diálogo
Os contatos entre o Brasil e os EUA continuam. Havia um telefonema previsto para esta segunda-feira, 31, entre o ministro das Relações Mauro Vieira e o chefe do USTR, Jamieson Greer. A ligação era vista mais como uma sequência dessas tratativas, mas não se esperava nada bombástico. As partes não divulgaram nenhum comunicado sobre o teor da conversa nem se ela de fato ocorreu.
Como o Valor publicou no sábado, 29, no meio das incertezas em Washington, as indicações americanas apontavam para alguns pontos envolvendo o Brasil.
O país muito dificilmente escapará de sofrer novas alíquotas. Trump, e não só ele em Washington, está obcecado com a tarifa de importação de etanol no Brasil, de 18% comparado a 2,5% nos EUA. Quando ele anunciou a ordem executiva para preparar tarifas de reciprocidade, o primeiro país citado foi o Brasil e o produto foi o etanol.
Nesta quarta-feira, 2, não haveria exceção no caso do aço – ou seja, pelo menos no inicio não haveria sequer as cotas pedidas pelos Brasil. Não se sabe ainda se haverá exceção para as outras tarifas ditas recíprocas. Há seis dias, Trump falou que não queria “exceções demais” no pacote – mas ele sempre pode mudar de ideia na última hora.
Uma barganha entre as tarifas de etanol no Brasil e cota para aço semiacabado nos EUA continuará no radar em Brasília e Washington no após 2 de abril.
Fonte: Valor Econômico

