A depender do resultado das eleições americanas nesta terça-feira, 5, a convergência da agenda Estados Unidos-Brasil pode estar sob pressão, assim como a estabilidade das relações bilaterais. Especialistas ouvidos pelo Valor afirmam que boa parte da solidez das relações econômicas tende a se manter, independentemente de quem vencer, mas o risco de descompasso em áreas como clima, direitos humanos e geopolítica pode crescer.
Os EUA ocupam a primeira posição do ranking de países que mais investem no Brasil. Na arena comercial, o engajamento também é crescente – as exportações brasileiras para o mercado americano atingiram recorde neste ano, contribuindo para a redução do déficit comercial brasileiro com os EUA.
Além da área econômica, as relações entre os países, hoje lideradas pelos presidentes Joe Biden e Luiz Inácio Lula da Silva, convergem em temas transversais como clima, mas não estão livres de divergências.
“As relações bilaterais atingiram um estágio de maturidade dentro dessa agenda Biden e Lula, com convergências em temas como o meio ambiente e direitos humanos, principalmente no que diz respeito a trabalho digno, com iniciativa das Nações Unidas e da Organização Internacional do Trabalho (OIT) para a regulamentação de atividades por aplicativos”, afirma Cristina Pecequilo, professora de relações internacionais da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).
“A questão maior continua sendo no campo geopolítico. À medida que o Brasil volta a ter uma política externa de maior neutralidade, maior autonomia e de recuperação dos princípios clássicos da agenda internacional, e não só aplicada às relações bilaterais, surgem uma série de desencontros derivando do fato de que os EUA gostariam que o Brasil apoiasse mais diretamente suas políticas e não divergissem, por exemplo, no caso dos conflitos entre Rússia e Ucrânia e entre Israel e Palestina.”
Soma-se a isso, afirma, o peso da aproximação entre Brasil e China, no âmbito do Brics, na própria relação Brasil-EUA, e a defesa de agendas como a reforma da ordem internacional, que entra em conflito com interesses dos EUA.
Em um governo Kamala, ela afirma, a perspectiva é de continuidade na proximidade em temas transversais até o fim do governo Lula e de divergência em alguns temas geopolíticos.
/i.s3.glbimg.com/v1/AUTH_63b422c2caee4269b8b34177e8876b93/internal_photos/bs/2024/b/Y/Y6LyECQMyZRwJBVGwJhw/arte05bra-103-eua-a12.jpg)
No caso de um governo Trump, prevê, há chances de maior protecionismo econômico, com risco de a guerra China-EUA se acentuar e pressões para o Brasil não aprofundar as relações com a China.
“A vitória de Trump pode levar ainda forças de extrema direita a se sentirem mais representadas para fazer pressões. Com um governo Trump, portanto, certamente será mais difícil para o Brasil transitar nessas agendas transversais.”
Bruna Santos, diretora do Brazil Institute, no centro de estudos Wilson Center, em Washington, avalia que pela primeira vez na história das relações EUA-Brasil há uma sobreposição não apenas de agendas, como também de visões muito semelhantes.
“Ambos são presidentes com mais de 70 anos e se tornaram presidentes depois de uma carreira muito consolidada como políticos, confrontando líderes de uma direita com características semelhantes, casos de [Jair] Bolsonaro e de [Donald] Trump, e tiveram o resultado das eleições desafiadas por manifestações públicas do 8 de janeiro [de 2023] e do 6 de janeiro [de 2021]”, afirma.
“[Além disso], há uma agenda trabalhista [comum], envolvendo sindicatos, ponto central do encontro [dos líderes] em fevereiro de 2023, e também olhando para transição energética como um caminho para o desenvolvimento econômico. E isso é muito único.”
Santos lembra que o Brasil e a América Latina como um todo não são prioridade na agenda de nenhum dos candidatos à Casa Branca, mas a relação do Brasil com os EUA hoje é sólida. “São bons amigos, bons companheiros, bons parceiros. Não são aliados em política externa, mas têm uma relação muito consolidada”, diz.
“O fato de o Brasil ter os EUA como o segundo maior parceiro comercial [atrás da China] é superimportante, assim como o nível do investimento direto americano no país. É uma relação bilateral pautada em produtos de alto valor agregado, o que também é muito importante para o Brasil.”
Os EUA são de longe o país que mais investe no Brasil hoje. O estoque de investimento estrangeiro direto americano passou de US$ 123,9 bilhões em 2020 para US$ 190,8 bilhões em 2021 e US$ 228,8 bilhões em 2023, o maior patamar pelo menos desde 2010, segundo série histórica disponibilizada pelo Banco Central. É mais de quatro vezes o estoque de investimento direto feito pela Espanha no Brasil, segundo país colocado no ranking.
Dados da Câmara Americana de Comércio para o Brasil (Amcham Brasil) mostram que a participação dos EUA no IED no Brasil passou de 11,8% em 2015 para 21% em 2019 e 25,8% em 2023.
A questão maior [entre os dois países] continua sendo no campo geopolítico”
Nos últimos anos, o comércio de bens e serviços entre os países cresceu e houve uma intensificação nos fluxos de investimentos, especialmente em setores como tecnologia e economia verde, afirma Abrão Neto, CEO da Amcham.
“Nossa expectativa é que a trajetória positiva no comércio e nos investimentos bilaterais se mantenha. Os EUA são hoje o principal destino das exportações brasileiras de bens industriais e de maior intensidade tecnológica, como aeronaves, máquinas e equipamentos”, diz.
“Além disso, observamos um novo ciclo de investimentos americanos no Brasil em setores como tecnologia, data centers e energias renováveis. Em 2023, foram anunciados 126 novos projetos greenfield por empresas americanas, o maior volume em uma década. As condições são favoráveis para que esses resultados se intensifiquem.”
De janeiro a setembro deste ano, as exportações brasileiras para os EUA cresceram 10,3%, em relação ao mesmo período de 2023, e atingiram recorde de US$ 29,4 bilhões, segundo Monitor do Comércio Brasil-EUA, elaborado pela Amcham Brasil.
Nos últimos anos, a alta dos embarques para o país contribuiu para a forte redução do déficit comercial do Brasil com os EUA, que passou de US$ 13,9 bilhões em 2021 para US$ 1 bilhão em 2022.
Ele lembra que, a cada dois anos, há eleições presidenciais no Brasil ou nos EUA, uma alternância de ciclos políticos já esperada.
“De maneira geral, governos e empresas dos dois países lidam bem com essas transições. Por trás dos ciclos políticos, existem interesses econômicos consolidados e de longo prazo”, diz. “Além disso, Brasil e EUA possuem uma maturidade institucional e incentivos fortes para manter essa cooperação.”
Ele observa que a ênfase do atual governo democrata em sustentabilidade e clima sofreria mudança importante em uma eventual administração republicana, mas políticas adotadas recentemente como o Inflation Reduction Act e o Chips Act têm apoio bipartidário, o que aponta para uma continuidade qualquer que seja o cenário depois da votação de hoje.
O mesmo vale para a importância dada à disputa geopolítica dos EUA com a China e à resiliência das cadeias de fornecedores, temas que devem continuar sendo prioritários na agenda política americana.
“Para o Brasil, o ideal é buscar equilíbrio, defendendo seus interesses e mantendo parcerias com ambos os países. Mas [isso] será cada vez mais como caminhar na corda bamba…”, conclui Abrão Neto.
Fonte: Valor Econômico

