Por Toni Sciarretta — De Buenos Aires
16/11/2023 05h01 Atualizado há 5 horas
Passou o tempo em que a Argentina poderia salvar o peso, ter um banco central e uma política cambial própria. O país tem um sistema político disfuncional, dominado por interesses econômicos e sem maturidade para implementar medidas impopulares para se defender da inflação e promover um crescimento sustentável. Essa é a visão, em resumo, do economista Emilio Ocampo, principal formulador da polêmica proposta de dolarização definitiva do país, hoje encampada pelo candidato da ultradireita à Presidência, Javier Milei, e que enfrenta ceticismo de economistas dentro e fora do país, segundo relatos de membros de sua própria equipe.
Milei, que pode vencer a eleição no próximo domingo, promete indicar Ocampo para ser o último presidente do banco central do país antes de fechá-lo. O candidato pretende levar o projeto adiante apesar das críticas e da oposição de 55% da população – mais do que os votos de que precisa para ser eleito -, segundo pesquisa Atlas realizada entre 10 e 13 de outubro.
A implementação, no entanto, é incerta porque vários pontos dependem de apoio no Congresso, onde Milei não terá maioria. O presidente da Corte Suprema, Horacio Rosatti, disse que a proposta é hoje inconstitucional porque o banco central tem o dever de emitir e preservar a moeda nacional.
Diante da repulsa popular e da sensibilidade do tema, economistas e assessores da equipe do oposicionista foram proibidos nas últimas semanas de discutir o assunto publicamente e de fomentar polêmica em relação à dolarização. O próprio Ocampo não é visto mais em Buenos Aires nem participa da campanha política.
O economista tem defendido, segundo esses relatos, que o melhor a fazer é instituir um choque severo, dolarizar a economia da forma menos traumática enquanto ainda é possível e criar regras que impeçam que os políticos “coloquem as mãos no dinheiro do povo” e financiem um Estado irresponsável por meio da inflação, que atingiu 142,7% em 12 meses até outubro.
“A inflação é um imposto, um mecanismo de financiamento de governos populistas”, costuma dizer. “A dolarização não vai resolver magicamente o problema da Argentina. Mas é irreversível e vai tirar dos políticos a capacidade de destruir a moeda”, afirmou Ocampo semanas atrás, quando ainda aparecia em público.
Para o economista, o plano de dolarização tem chance de 70% de dar certo, dada as dificuldades no Congresso, Justiça e junto com organismos internacionais como o Fundo Monetário Internacional (FMI). “O problema é que as outras alternativas têm menos de 30% de dar certo”, afirma ele, segundo membros da equipe.
O maior risco previsto, dizem esses interlocutores, é o plano ter inicialmente um sucesso tão grande por acabar com a inflação que a sociedade argentina – e um eventual governo Milei – fiquem tão satisfeitos a ponto de negligenciarem questões mais sensíveis e menos palpáveis como o controle do déficit público. Ocampo também reconhece que terá dificuldades para fazer a comunidade financeira internacional, sobretudo o FMI, apoiá-lo. Deles depende o acesso a dólares que serão necessários para a troca da moeda, que pode levar alguns meses.
O economista e sua equipe sustentam que a dolarização é uma realidade e que existe de fato na Argentina porque ninguém mais quer pesos. Apenas assalariados e os mais pobres ainda não têm acesso a esse tipo de proteção, dizem eles.
Nas contas da equipe, os argentinos têm hoje US$ 175 bilhões em dólares físicos debaixo do colchão (na verdade, em cofres nos bancos), mais US$ 44 bilhões em contas no exterior e outros US$ 19,5 bilhões em depósitos em dólares nos bancos locais.
“Ninguém escolhe a dolarização. É a dolorização que escolhe o país” Alberto Ramos, economista do Goldman Sachs
Já o governo tem reservas cambiais negativas e pouquíssimos recursos em moeda forte, ponto visto como o maior obstáculo para implementar a dolarização. Quanto menor os ativos do governo em dólar, pior seria o chamado valor de conversão dos depósitos em peso para dólar, empobrecendo ainda mais os poupadores.
“As propostas que têm sido comentadas são todas inviáveis. A Argentina é um país que tem um grande volume de ativos financeiros dolarizados, mas isso está em mãos privadas e das empresas. O setor público tem reservas negativas. O Banco Central tem ativos que não se sabe ao certo se podem ser utilizados numa conversão da base monetária por dólares. Para isso, teria que contrair mais dívida. E os mercados internacionais estão fechados para o país”, disse economista Matías Kulfas, ex-ministro do Desenvolvimento do presidente Alberto Fernandez.
“A dolarização é inviável porque simplesmente não há dólares para fazê-la. Os esquemas propostos não atingem os volumes necessários. Não acho que seja uma boa ideia. É um atalho. A Argentina tem que fazer a lição de casa para poder ter uma moeda saudável”, disse Andrés Borenstein, professor da Universidade de Buenos Aires e consultor da EconViews.
Contra a proposta, estão economistas que argumentam basicamente que a dolarização levaria o país a: 1) perder a soberania monetária; 2) ser incapaz de amortecer choques externos; 3) deixar de socorrer instituições financeiras em caso de corrida bancária; 4) depender dos ciclos econômicos dos EUA, que não coincidem com os do país; 5) perder influência nos salários e gastos públicos etc.
No livro “Dolarização: Uma Solução para a Argentina”, escrito por Ocampo e Nicolás Cachanosky, os autores respondem a cada um desses questionamentos, considerando vários deles como de natureza nacionalista. “Se a moeda é um símbolo de soberania, então não temos soberania”, escreveram eles, ressaltando que o peso não tem valor nem credibilidade.
Quanto à política monetária, afirmam que o banco central não tem hoje capacidade nem instrumentos para influenciar no crédito bancário nem no mercado de capitais, que praticamente inexistem no país. Já o Federal Reserve (BC dos EUA) têm influência global nos fluxos de dinheiro a países emergentes, como a Argentina, e poderia ser um aliado em determinados períodos, afirmam. Para socorrer os bancos, os economistas apontam diversos mecanismos de mercado adotados por países que dolarizaram a economia como Equador, Panamá e El Salvador.
Alberto Ramos, economista do Goldman Sachs para América Latina, considera a proposta exequível, porém, com uma série de efeitos ainda desconhecidos como uma inflação residual longa, a depender da taxa de conversão dos depósitos, além de economia em ciclo econômico muito diferente da americana.
Com a proposta na mesa e sem os recursos necessários, Ramos acredita que o dólar de conversão pode ser de duas a três vezes maior do que as taxas hoje de câmbio livre no país. Ontem, o chamado dólar blue foi negociado em 980 pesos – alta de 172% no ano e ágio de 168% sobre o câmbio oficial.
“Dolarização não é uma escolha que você faz; ela que escolhe você. Pode funcionar se tiver uma política fiscal e vir acompanhada de reformas. Mas a Argentina tem sido incapaz de entregar um ajuste fiscal crível”, disse.
Os membros da equipe de Ocampo reconhecem que são minoria entre os economistas, mas afirmam que estão bem acompanhados por nomes como Milton Friedman, Robert Mundell, Rudiger Dornbusch, expoentes da Escola de Chicago, reconhecida pelo liberalismo econômico, além de Larry Summers, ex-secretário do Tesouro dos EUA no governo democrata de Bill Clinton. Todos eles, afirmam, recomendaram a dolarização para países que demonstraram não poder conter a própria inflação.
Fonte: Valor Econômico

