Por Sérgio Tauhata — De São Paulo
12/09/2022 05h03 Atualizado há uma hora
Uma conjunção de fatores mantém o dólar nas alturas neste ano. A moeda americana está nas máximas em duas décadas, num cenário que deve se estender ao longo de 2023, segundo especialistas ouvidos pelo Valor. O cenário reflete o aperto da política monetária dos Estados Unidos neste momento, mas também a fraqueza de outras divisas.
Segundo relatório do Bank of America (BofA), a moeda dos EUA está em seu momento mais forte desde o início dos anos 2000, em termos nominais, na métrica do índice ICE US Dollar, que compara a divisa dos Estados Unidos com uma cesta de pares globais. Quando se retira a inflação acumulada no período, a cotação atual equivale àquela vista no começo dos anos 1980, diz o banco. Além disso, a última vez em que o dólar esteve tão alto em relação ao iene japonês foi no fim dos anos 1990.
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O dólar índice, que reflete o valor da divisa americana em relação a uma cesta de moedas, acumula alta de 13,6% neste ano.
A fortaleza do dólar tem como grande pilar o aumento de juro promovido pelo Federal Reserve (Fed, o banco central americano). “A moeda dos EUA está forte em uma visão cíclica e tende a permanecer assim tanto quanto o Fed permanecer no modo ‘hawkish’ [inclinado ao aperto monetário]”, afirma o economista sênior de mercados da Capital Economics, Jonas Goltermann. “Então, nesse sentido, em algum momento, quando o ciclo da política monetária começar a apontar para um afrouxamento, a situação do dólar tende a se normalizar. O problema nessa visão é que existem fatores estruturais na equação.”
De acordo com Goltermann, a situação dos preços e da disponibilidade da energia, especialmente na Europa, é um componente “mais fundamental e de longo prazo”. O economista acrescenta que o cenário está se consolidando a favor do dólar porque os EUA são um exportador de energia, enquanto Europa e Ásia são importadores. A Capital Economics projeta taxa de US$ 0,95 por euro e de US$ 1,10 por libra no fim de 2022. A casa enxerga ainda um câmbio mais depreciado nos meses seguintes, alcançando uma relação de US$ 0,90 por euro e de US$ 1,05 por libra na metade de 2023.
O dólar índice, que reflete o valor da divisa em relação a uma cesta de moedas, acumula alta de 13,6% neste ano
O estrategista-chefe de investimentos da BlackRock para a América Latina, Axel Christensen, reforça que, quando se fala em taxa de câmbio, é preciso sempre olhar os dois lados e não apenas o que ocorre “na terra do dólar”. Para o especialista, muito do que está acontecendo com a divisa americana, naturalmente, tem a ver com a economia dos EUA, que continua forte, e com o rumo dos juros. Os dados de emprego, ressalta, “mostram um mercado de trabalho ainda muito apertado lá em termos de geração de empregos e, mesmo quando a taxa de desemprego sobe um pouco, é principalmente porque mais pessoas estão procurando emprego e não por não acharem vagas”.
Porém, a perspectiva de o dólar voltar a se depreciar ante outras moedas “depende em boa parte do que está acontecendo do outro lado”. Conforme o estrategista da BlackRock, “o rali do dólar deve continuar diante do atual ambiente [global], ainda que, logicamente, não seja um rali eterno”. Mesmo que os Estados Unidos entrem em recessão devido ao aperto monetário, se a economia europeia permanecer ainda mais fraca, o dólar tende a sustentar a recém-conquistada paridade em relação ao euro, observa Christensen.
Goltermann, da Capital Economics, avalia que o impasse energético na Europa pode durar anos. “Provavelmente nunca voltaremos ao [patamar de preços] de há dois anos”, diz. A transição para se libertar da dependência do gás da Rússia “significa que os países da Europa provavelmente terão de pagar mais [daqui para a frente]”, acrescenta o economista.
A Capital Economics projeta uma taxa de US$ 0,95 para cada euro e US$ 1,10 por libra no fim de 2022
Na visão do economista-chefe da Western Asset no Brasil, Adauto Lima, com o inverno chegando ao Hemisfério Norte e com o fornecimento de gás russo interrompido, muitos países da zona do euro, em especial a Alemanha, poderão ter de realizar algum movimento de redução de produção para economizar energia. Essa possibilidade de racionamento “é terrível para o euro”.
Isso num momento em que os EUA têm uma perspectiva de desempenho econômico muito melhor que a do bloco europeu. “Se o Fed terá de restringir a atividade [nos Estados Unidos] para controlar a inflação, a Europa vai restringir porque a demanda vai colapsar”, diz Lima.
Embora o dólar possa se fortalecer acima do euro e se manter desse jeito enquanto durar a restrição energética, o economista pondera que esse cenário tende a se reverter adiante. “Vejo como algo transitório e, quando a situação da energia na Europa se resolver, [a cotação entre dólar e euro] volta ao normal.”
O chefe de gestão de portfólio da equipe de soluções de investimento da Franklin Templeton, Daniel Popovich, chama a atenção ainda para o diferencial de juros entre EUA e as principais economias europeias, favorável ao dólar. “O Fed tem mais espaço para se manter mais ‘hawkish’ que o Banco Central Europeu”, pondera. “O momento de aversão ao risco no mercado internacional tem favorecido principalmente dólar e Treasuries [títulos do Tesouro americano].”
A visão da Franklin é que há possibilidade de a economia americana entrar em recessão no próximo ano. “Mas vemos uma perspectiva de uma recessão mais suave. Porém, quando falamos de Europa, o cenário é mais crítico, porque a inflação na região está elevada e pode ficar ainda mais alta, principalmente, devido aos preços de energia. O uso geopolítico do gás pela Rússia, a chegada do inverno e a necessidade de o BCE combater a inflação tendem a levar o bloco europeu a uma retração mais severa [comparada aos EUA]”, diz Popovich.
Lima, da Western, compara a situação europeia ao que ocorreu no Brasil em 2001, quando o país enfrentou um racionamento de energia. “No Brasil, quando tivemos o apagão e a restrição energética, o governo fez as empresas e consumidores reduzirem consumo. No limite, se [os países] na Europa estiverem com estoques baixos ou fornecimento afetado, os governos terão de escolher entre desligar algumas indústrias para manter a energia residencial.”
A Schroders alerta para um temor cada vez maior de um potencial racionamento de gás na Europa. “A perspectiva de uma estagflação [combinação de inflação elevada e desaceleração econômica ou recessão] estrutural é alta se um racionamento de gás se tornar realidade. O medo desse cenário tem intensificado a fraqueza do euro”, afirmam os analistas em relatório.
Na análise do diretor de investimentos da Schroders, Pritosh Ranjan, uma mudança na perspectiva de dólar forte por mais tempo viria de uma eventual negociação entre Ucrânia e Rússia, que “resultasse em um afrouxamento das sanções sobre exportações de energia e alimentos russos”. De acordo com o analista, esse desenvolvimento poderia levar a uma perspectiva de arrefecimento da inflação global, bem como impulsionar a confiança e, desse modo, enfraquecer o apelo atual do dólar. “Infelizmente, isso parece algo improvável de se materializar em um futuro próximo, dado que nenhum dos lados está em posição de declarar ter atingido um mínimo de objetivos estratégicos.”
Um alívio parcial para o euro, no entanto, tem vindo da política monetária do bloco europeu, aponta Goltermann, da Capital Economics. “O BCE tem deixado claro pretender, ao menos parcialmente, alcançar o Fed, e isso faz uma diferença. Mas existe um limite sobre o que a instituição pode fazer. O banco central enfrenta dois grandes problemas. Um é o fato de a economia do bloco estar rumando para uma recessão e quão longe pode ir antes que o sofrimento se torne demais. Outra questão é o mercado periférico de títulos de dívida, e se fizeram o suficiente [para evitar uma crise de financiamentos soberanos].”
O economista da Capital Economics explica que, em menor medida, o dólar se mantém forte frente à libra esterlina porque o Reino Unido enfrenta também um cenário econômico pior quando comparado aos EUA. “Existe também [na Grã Bretanha] a questão de preços e fornecimento de energia, ainda que em menor grau considerando a União Europeia”, avalia. “O Banco da Inglaterra [BoE, o BC britânico] já está prevendo uma recessão e, nesse ponto, talvez não seja tão agressivo [na perspectiva de aumento de juros para combater a inflação]”, pondera.
No caso do iene, Lima, da Western, explica que o Japão tem juros estruturalmente muito baixos e até negativos. Com a recente elevação dos juros americanos e a mudança no discurso do Fed para um tom mais duro, a divisa nipônica tende a permanecer mais fraca ante o dólar “pelo médio prazo”. Segundo o estrategista, o BC dos EUA tende a puxar a taxa mais para perto de 4% ao ano. “Mas não vejo esse nível prevalecendo no médio e longo prazos, por isso, mais para a frente [quando houver um novo ciclo de afrouxamento monetário nos EUA], diminui a atração do dólar [em relação ao iene].”
Popovich, da Franklin, lembra ainda que o “quantitative tightening” (QT), ou seja, o processo de redução do balanço do Fed, tende a ter influência de alta sobre o dólar. Mas, pondera, é muito difícil avaliar e quantificar qualquer influência do mecanismo sobre a moeda, “uma vez que não há registros na história sobre um enxugamento de balanço dessa magnitude”.
O dólar poderia ainda se fortalecer em um futuro próximo num cenário de escalada das tensões entre a China e Taiwan. “Em caso de uma invasão chinesa à ilha, a maior probabilidade é de ocorrer uma corrida ao dólar em busca de refúgio”, ressalta o economista da Capital Economics. “No entanto, no caso de uma guerra [em Taiwan], todo mundo perderia, não importa quem se declare vencedor”, diz.
Ipsis Litteris
A escalada do dólar tem como grande impulsionadores a redução do balanço do Federal Reserve (Fed, o banco central americano) e o aumento das taxas de juros de referência nos Estados Unidos. Depois de anos de política monetária afrouxada para estimular a economia, principalmente nos anos da pandemia, o sinal começou a ser invertido para controlar a maior inflação do país em décadas. Mais do que isso, a sinalização da autoridade americana é que os juros permanecerão altos por um bom tempo. Em outras palavras, o dinheiro americano está se tornando mais caro e, portanto, mais atrativo. Ao mesmo tempo, a economia mundial navega num mar de incertezas, com pressões inflacionárias em vários países, risco de recessão, guerra entre Rússia e Ucrânia e, agora, uma crise energética na Europa num momento em que o Hemisfério Norte dá adeus ao verão. O que os investidores costumam fazer em tempos difíceis? Correm para o que é conhecido e seguro, caso dos títulos do Tesouro americano. Nesses momentos, tende-se a buscar refúgio em ativos que são considerados de baixo risco. E o aumento das taxas de juros americanas reforça ainda mais esse movimento porque ajuda a atrair fluxos de capital que, em circunstâncias diferentes, buscariam rendimentos mais altos em outros mercados. Esse fluxo, por sua vez, alimenta a fortaleza do dólar.
Fonte: Valor Econômico

