Proporção chegou a 30,5% em janeiro, maior parcela desde 2021, quando começou o levantamento da CNC
Por Alessandra Saraiva — Do Rio
A fatia de renda das mulheres que é comprometida com o pagamento de dívidas bateu recorde, neste começo de ano. Levantamento da Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC) feito a pedido do Valor mostra que 30,5% do orçamento mensal das mulheres estava destinado a quitar empréstimos em janeiro de 2024. É a maior proporção entre as mulheres endividadas desde o início da série para esse dado, em maio de 2021. O número também é ligeiramente superior à parcela da renda dos homens usada para pagar dívidas, de 30,3%, e da média nacional – homens e mulheres – para o mesmo fim, de 30,4%.
Apesar de as fatias de renda de homens e mulheres comprometidas com empréstimos serem próximas uma da outra, houve, no caso feminino, um crescimento maior. Desde meados de 2023, a proporção da renda das mulheres comprometida vem crescendo acima da dos homens e atingiu a parcela recorde em janeiro de 30,5%. Izis Ferreira, economista da CNC responsável pelo recorte, afirma que o levantamento não costuma ter grandes saltos percentuais, entre um mês e outro: “É uma pesquisa que não tem um desvio padrão alto”, salientou.
Ferreira avalia que para mensurar tendências é importante identificar mudanças na primeira casa decimal. Por essa razão, diz, a diferença na fatia entre homens e mulheres, embora pequena, é significativa. A pesquisa é um recorte por gênero da Pesquisa de Endividamento e Inadimplência do Consumidor (Peic), da CNC. Os dados para a Peic são coletados em todas as capitais dos Estados e no Distrito Federal, com aproximadamente 18 mil consumidores.
Também na Peic a parcela de mulheres endividadas aumentou de 78,3% em dezembro para 79% em janeiro. Foi a mais elevada entre as mulheres desde setembro do ano passado (79,1%) e a maior da série para meses de janeiro. No caso dos homens, a parcela de endividados também acelerou, mas de forma menos intensa: de 76,9% para 77,2% entre dezembro e janeiro.
De acordo com especialistas ouvidos pela reportagem, os números refletem uma “tempestade perfeita” no orçamento da mulher brasileira nos últimos anos. Ao mesmo tempo em que as mulheres continuam a ganhar menos do que os homens, elas tomaram para si mais despesas da casa. Isso ocorreu porque houve crescimento de domicílios chefiados por mulheres, especialmente sem cônjuge, dizem os especialistas.
As mulheres se endividaram para trazer comida para casa”
— Hildete Pereira de Melo
Essa mudança já tinha sido destacada em estudo da pesquisadora da Fundação Getulio Vargas (FGV) Janaína Feijó, antecipado ao Valor ano passado, e feito com base na Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PnadC) do IBGE. No trabalho, Feijó alertou que a participação das mulheres como responsáveis, no total de domicílios, saiu de 35,7% para 50,9% entre 2012 e 2022, enquanto a dos homens caiu de 64,3% para 49,1%. A quantidade de lares com mulheres responsáveis pela família, com remuneração mais alta do domicílio, subiu 72,9% entre 2012 e 2022, e passou de 22,2 milhões para 38,3 milhões de residências.
A necessidade de fazer frente às despesas da casa, com ganhos menores, faz com que a mulher seja mais vulnerável financeiramente – e mais propensa a contrair dívidas, acrescentou Ferreira, “Temos mais mulheres na informalidade, sendo responsáveis por seus lares, pelo sustento das famílias. E isso se reflete em maior endividamento e maior comprometimento [da renda] com dívidas”, afirma.
Hildete Pereira de Melo, professora da Faculdade de Economia da Universidade Federal Fluminense (UFF), concorda e vai além. “A questão do endividamento feminino está mais pesada e acentuada na medida em que ocorreu um empobrecimento da população feminina. A pandemia exacerbou demais essa questão”, ressalta a docente do Programa de Pós-Graduação em Política Social da UFF. Melo destaca a crise econômica causada pela covid-19, que aprofundou ainda mais a necessidade de as mulheres, principalmente as mais pobres, contraírem dívidas. “As mulheres se endividaram para trazer comida para casa”, afirma.
“Estudos mostram maior comprometimento do orçamento da mulher com gêneros alimentícios e itens de primeira necessidade do que os homens”, completa Marilane Teixeira, pesquisadora na área de relações de trabalho e gênero do Centro de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho (Cesit) da Unicamp. Assim como a economista da CNC, Teixeira destacou o crescimento da parcela de mulheres como chefe de família como mais um agravante no endividamento feminino. “[Nesses lares] Ela é a provedora, não somente principal mas a única provedora da família. Não tem opção. Ou se endivida ou não consegue manter [o orçamento da casa]”, diz.
Outro aspecto que contribuiu para o crescimento do endividamento feminino nos últimos anos foi a maior oferta de crédito, principalmente entre a população de baixa renda, acrescenta Lena Lavinas, professora colaboradora voluntária do Programa de Pós-Graduação do Instituto de Economia da UFRJ e associate research do Departamento de Economia da SOAS-Universidade de Londres.
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Essa situação elevou o patamar de endividamento das famílias como um todo. E afetou mais as mulheres, mais vulneráveis financeiramente, explica a pesquisadora que analisa, entre outras áreas de estudo, desigualdades de gênero e de mercado de trabalho.
Lavinas faz algumas recomendações que poderiam ajudar a tornar menos desfavorável o atual quadro de elevado endividamento feminino e, dessa forma, diminuir o deslocamento de renda das mulheres para quitar empréstimos. A especialista ressalta a importância de continuidade na redução da taxa básica de juros (Selic) – cujo processo começou no segundo semestre do ano passado – e do programa federal Desenrola, de renegociação de dívidas.
Mas Lavinas nota que poderia ser feito esforço maior por parte do Estado para prover às mulheres, de forma gratuita, serviços que hoje na sociedade são arcados financeiramente por elas, de forma majoritária. É o caso de creches e cuidados com idosos. “São custos crescentes e que são assumidos, na maior parte, por mulheres”, diz.
A socióloga Graciela Rodriguez concorda. Ela organizou, em 2020, o estudo “O Sistema Financeiro e o Endividamento das Mulheres”, pelo Instituto Equit – Gênero, Economia e Cidadania Global, do qual faz parte. No trabalho, um dos aspectos contemplados foi o forte papel de cuidadoras que as mulheres exercem, no cotidiano das famílias. “Ela, na maioria das vezes, é a grande responsável por levar comida à mesa, por comprar medicamentos, por cuidar dos idosos”, resumiu Rodriguez.
Rodriguez também recomenda um plano nacional de cuidados, que possa ajudar a enfrentar essa questão. “É preciso uma política nacional, de encarar o conjunto da problemática do trabalho não remunerado das mulheres”, afirma. A socióloga diz que o elevado endividamento feminino não tem relação com saber ou não saber administrar dinheiro: “É uma necessidade, para fechar as contas da casa”.
Fonte. Valor Econômico