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A publicação do teor da investigação do comitê independente na Americanas é peça central na conclusão do maior escândalo contábil de uma empresa privada no país. A coleta de informações pelos investigadores traz novos dados e detalha o que já havia sido divulgado sobre a suposta manipulação dos balanços pela diretoria da rede varejista.
A palavra “fraude” não é usada nenhuma vez nas 266 páginas do relatório, num cuidado do comitê em não expressar juízo. Mas não faltam, no entanto, fortes indícios de que havia um esforço deliberado da diretoria para esconder uma situação financeira em rápida deterioração.
O relatório relaciona as irregularidades à cúpula de ex-diretores da empresa ao mesmo tempo que diz não ter identificado a participação de membros dos conselhos de administração e fiscal, assim como dos comitês de auditoria e financeiro de Lojas Americanas, da B2W (ex-braço digital do grupo) e da Americanas (criada com a fusão das duas primeiras).
A investigação do comitê revela que essa fabricação de uma realidade financeira paralela estendeu-se até as vésperas da revelação das “inconsistências contábeis”, em 11 de janeiro de 2023.
Apesar de admitir limitações no trabalho, o comitê formado por Otavio Yazbek, Eduardo Flores e Antonio Luiz Manso diz que a investigação, que levou cerca de um ano e meio, ocorreu num “ambiente de independência”. O órgão teve os nomes escolhidos pela empresa, com a garantia de autonomia nos trabalhos.
Em determinado ponto, em setembro de 2022, quatro meses antes da descoberta da fraude, os investigadores localizaram anotações do então diretor financeiro, Fabio Abrate, um dos investigados hoje pela Polícia Federal, em que ele fala de “ideias” para tentar sair daquela crise gigantesca.
Abrate escreve alguns pontos, citando, por exemplo, a opção de fechar capital da Americanas, vender o negócio, buscar um sócio para transformar dívida em ações ou se juntar a um concorrente global.
Dois meses depois, em novembro, Abrate sinaliza ter consciência de que a situação era crítica e que os diretores poderiam ter de enfrentar um processo criminal. O executivo pergunta, por mensagem no WhatsApp, a um diretor, se o contrato de seguro de responsabilidade civil de executivos e diretores era público, e solicita verificação da cobertura de responsabilidade criminal e a dinâmica para escolha de advogados.
O relatório mostra ainda fechamento de linhas milionárias com banco no cartão de crédito, muito acima da média do mercado.
A rede emitiu dois cartões de crédito com linhas de até R$ 750 milhões junto ao Banco do Brasil, sendo parte aprovada, em 2015, em mensagem por e-mail, pelo conselho de administração. De 2017 a 2018, o conselho autorizou o aumento do limite para até seis vezes o valor inicial, atingindo R$ 300 milhões em 2018. Seriam para gastos do “centro de custos corporativos” da B2W.
Em 2018, a linha equivalia a mais do que a geração de caixa da empresa em um trimestre inteiro. Procurado, o BB não comenta o tema.
Outro avanço do relatório refere-se à receita na operação de venda on-line. Era sabido que a empresa alterava o faturamento de serviços que vendia para lojistas no seu marketplace para melhorar a margem com serviços. Mas, no relatório, o comitê diz que a companhia duplicava os valores de comissões cobradas, em negócios como Americanas.com e Submarino. Na época, a comissão na empresa ia a até 19% do valor da venda.
Também são anexadas no relatório trocas de mensagens entre Paulo Lemann, membro do conselho e filho de Jorge Paulo Lemann, com o diretor Marcelo Nunes, hoje um dos delatores da fraude. Isso ocorreu em novembro de 2022. É a primeira vez que se tem conhecimento de transcrição de conversas entre Paulo Lemann e a diretoria.
Paulo Lemann pede que certas explicações sobre o balanço anual de 2022 fossem apresentadas na reunião seguinte do conselho e do comitê fiscal, que trataria de resultados e consumo de caixa.
“No [capital] de giro, você consegue mais transparência da piora de normalização do pagamento a fornecedores, antecipação fornecedores e aumento de estoque?”, pede. Paulo Lemann continua enviando mensagens ao diretor, solicitando mais dados para a reunião.
Também, na mesma época, há troca de e-mails entre a diretoria e Eduardo Saggioro, membro do conselho e sócio da LTS, empresa do trio de acionistas Jorge Paulo Lemann, Beto Sicupira e Marcel Telles.
Assim como Paulo Lemann, Saggioro também diz que na reunião seguinte com conselho e comitês seria tratado o tema do caixa. E sugere que “o time da LTS” pode ajudar “com a narrativa”, que incluiria, por exemplo, falar de cenário concorrencial difícil e dizer que o efeito negativo em caixa é pontual.
“Essa análise e a maneira de explicar os resultados [na reunião] pode ser útil não só ao conselho, mas também ao release de resultados. Se o Marcelo [Marcelo Nunes, ex-diretor] precisar de ajuda com essa análise a narrativa, o time LTS está totalmente à disposição”, escreveu Saggioro.
Para o comitê, as informações enviadas pelos ex-diretores ao conselho eram distorcidas. Internamente, o conselho da rede recebia mensalmente acompanhamentos de resultados, compilados em “books”.
Os valores das vendas reportados diária e semanalmente eram alterados por diretores e funcionários para envio ao conselho. Eram mantidas versões das vendas “com ajuste” e “sem ajuste”.
Além disso, não foram identificadas evidências pelo comitê de que aspectos reportados pelos auditores externos sobre ferramentas na possível fraude (como risco sacado e verba de propaganda cooperada) tenham sido levados ao conselho.
No entanto, a investigação identificou que o comitê financeiro localizou, num diretório interno, e-mails enviados por funcionários da Lojas Americanas aos comitê com apresentações de 2013 a março de 2017.
No diretório, havia informações sobre operação de “desconto a fornecedores”, outro nome para risco sacado. Entre 2007 e 2012, foram identificadas apresentações similares em outras sub-pastas.
Após o primeiro trimestre de 2017, não foram localizadas mais apresentações ao comitê financeiro, pois foram retiradas. “Foi identificada comunicação entre diretores de Lojas Americanas referindo que o item havia sido removido das apresentações”, diz o comitê. Sobre isso, membros do conselho disseram ao investigadores que entendiam que era uma operação com caixa próprio, sem linha de bancos, e foram informados de que isso parou após 2017.
O material mostra também que os membros que integraram, entre 2013 e 2023, o conselho de administração da Lojas Americanas e da B2W recebiam, mensalmente, acompanhamentos de resultados. Mas existiam dados alterados, pois eram aplicados “fatores” em cima dos números diários e semanais de vendas, e esse “fator” foi crescendo ao longo do tempo”, diz o comitê.
Os integrantes do comitê ainda buscaram entender como as irregularidades eram criadas.
Quando a rede comprava mercadorias, a varejista incluía o montante na conta de estoques e no saldo a pagar a fornecedores, como é usualmente feito pelas empresas. No momento da contratação de risco sacado, o valor permanecia em saldo a pagar ao fornecedor. A indústria, então, fechava a transação de risco sacado com o banco, e recebia dele o montante com um desconto pela antecipação de recebível. E acabava ali a relação entre fornecedor e banco. Isso, aliás, trata-se de uma transação corriqueira no segmento,
Só que quem pagava ao banco era a varejista, às vezes muitos meses depois. Esse prazo teria chegado a 316 dias, segundo o relatório, e o normal são 60 a 90 dias, apurou o Valor.
Pelo lado da varejista, na hora do pagamento dos valores às instituições, se dava a baixa no saldo a pagar ao fornecedor.
Ocorre que, no balanço patrimonial tanto da Americanas quanto da B2W (braço digital), nas operações de risco sacado, o valor a pagar aos bancos era reduzido pela falsificação de acordos comerciais, as chamadas “verbas de propaganda cooperada” (VPC).
O relatório afirma que a conta de fornecedores da varejista, em 30 de setembro de 2022, estaria subavaliada em cerca de R$ 11,9 bilhões. O montante não estava nessa linha porque a empresa produzia contratos fictícios de propaganda, que melhoravam essa conta. O patrimônio líquido estava subavaliado em cerca de R$ 18,8 bilhões.
Esses R$ 18,8 bilhões eram aparentes lançamentos falsos de VPC no resultado de B2W e da Lojas Americanas de 2013 a 2022, e que tiveram como efeito principal a redução do custo de mercadoria vendida. Quando isso acontece, a empresa consegue elevar artificialmente a sua margem bruta.
Chegaram a ser negociados entre fornecedores e bancos, com anuência da Americanas, operações de risco sacado com base em faturas já vencidas de compra de mercadorias. O Valor havia antecipado, em janeiro de 2023, que bancos emitiam contratos de risco sacado com base em e-mails de faturas vencidas enviadas pela rede às instituições.
O comitê descobriu que bancos autorizaram risco sacado de faturas vencidas há mais de 60 dias, em 2022, e cita no documento contrato feito dessa forma de vendas de uma empresa de salgadinhos, Milho de Ouro. O relatório não informa o nome do banco.
Além disso, há uma troca de mensagens, anexada no relatório, que mostra um diretor relatando a Flavia Carneiro, ex-superintendente de controladoria, que a Motorola tinha notas vencidas, de 2015, e a B2W ofereceu a alternativa de recebimento via risco sacado com um banco.
Só que, para fechar o acordo, a Motorola, “ao contrário de outros fornecedores”, pede que dois diretores estatutários da B2W assinem um termo.
“Vê algum impeditivo?”, pergunta um diretor. Carneiro diz que há risco de questionamento da auditoria, caso ela fosse checar a operação junto ao fornecedor. Procurada, a Motorola diz que não tem conhecimento do relatório e, logo, não tem nada a comentar a respeito.
A Americanas afirma que o trabalho do comitê tem elementos importantes para as investigações e confirmam o divulgado em investigação criminal. Os ex-diretores da linha de frente da rede não se manifestaram. Procurada, a LTS não se manifestou.
Fonte: Valor Econômico

